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LONGA EXPOSIÇÃO

 
 
LONGA EXPOSIÇÃO

Ela ficou ali, parada, contra a parede. Parecia ensimesmada, imersa em pensamentos tão profundos que nada no mundo a poderia tirar d'aquele transe. Era uma figura nítida: calma-mas-arguta, dir-se-ia. Só contra o fundo opaco, seu rosto se destacava com uma juventude elegante de moça que se quer mulher feita, evitando adereços que a mostrassem como as garotas de sua idade, muito pelo contrário! A elegância a que se obrigava n'aquela tarde exibia mais a pessoa viajada e vivida que ela se desejava do que quem realmente era.

Eu, confesso, fiquei observando-a longamente. Ela não se mexia; eu tampouco. De certa maneira, meus olhos se lhe tornaram duas objetivas abertas em longa exposição para, reunidas, lhe captaram a imagem n'um instantâneo d'alguns minutos. Sim, eu lhe fotografava como se fotografa as estrelas à noite! Isto é, sem pestanejar nem mudar de foco.

Completamente obcecado por sua beleza muda, eu lhe registava o rosto e o corpo inteiro: Vestia um conjunto champanha, esvoaçante, que caia negligente sobre seu corpo para lhe receber aquele e ali as saliências de suas formas. Além d'um cinto dourado, permitira-se adereços verticais como brincos de filigranas pingentes em conjunto com um colar idêntico a pender sobre o decote profundo. Tinha um corpo pequeno, mas com curvas generosas que agradeciam a brisa do verão tropical que vinha fresca ao fim do dia. Seu rosto, todavia, parecia concentrar uma calma contida de quem luta interiormente com graves resoluções. Estava maquiada, obviamente, mas o vermelho dos lábios finos e o negro do delineado do olhos castanhos eram traços finos, desenhados, não pintura. Com efeito parecia desenhado, não pintado.

Quando finalmente saímos d'aquele transe, do nada, ela me olhou diretamente, surpreendendo-me. N'uma fração de segundos ela percebeu que eu a observava e me encarou. Eu sustentei o olhar, apesar de avexado em ser descoberto, e esperei. Ela explodiu n'um sorriso aberto e espontâneo e imediatamente se virou, caminhando em direcção ao pórtico de entrada do edifício. Eu a vi abrindo a porta de vidro e desaparecer na rua da metrópole alvoraçada com o vai-e-vem de pessoas e autos no fim do expediente.

Nunca mais a vi, mas em minhas retinas ficaram gravadas o negativo de sua solitária -- e uma inadvertida! -- longa exposição.

Betim - 08 03 2020


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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