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Textos de Quarentena 21

 
Mas sinto falta da vida, de ver a minha cara, de tocar em alguém, sentir alguém a tocar-me. Sinto falta de ser gente agora que sou um mero espectro. O que me sobra é a memória, mas nem sei se essa ainda é real, tal é o desnorte. Lembro-me ainda de quando era miúdo e ouvia os meus pais a conversar sobre tantas coisas, por vezes discutiam, talvez por desacordo ou porque é assim que deve ser um casal, sei cá, nunca fui casal de ninguém e por este andar nunca serei, se nunca mais conseguir sair daqui. A não-vida confunde-me, faz-me deambular o pensamento por temas que nunca achei possíveis de existir, coisas enigmáticas como a própria vida e o que as pessoas achariam dela depois de mortas e enterradas.
Afinal o que é isso de ser «pessoa»? Quais são os requisitos para sermos considerados gente entre outras gentes? Sempre me ensinaram que deveria ser moderadamente moralista e, de preferência, deliberadamente pouco ético se quisesse chegar longe na vida, se quisesse pertencer à verdadeira elite dos que são verdadeiramente gente. Ensinamentos que sempre tentei pôr em prática – a maioria sem sucesso. Deveria ter sido daqueles «snobes» empertigados que papagueavam as palavras dos senhores doutores importantes, mesmo se nãos conhecesse, tipo advogado (matreiro, astuto, mas inconveniente e maldoso sempre que necessitasse).
A minha sina para hoje deveria ter sido, uma bela de uma loiraça, comigo no quarto, ao som de Chopin em frente da lareira e com uma bela garrafa de Château Briand. Para rematar, mas só depois do sexo, um Cohiba agraciado com uma leve massagem de Cognac Marnier ou até mesmo de Bushmills Black. Mas não, aqui andam estes vultos estúpidos de volta de mim, a saltar de espelho em espelho, como se estivessem numa missão quase impossível de morte ou de vida.
Não-eu, eu quero voltar! Juro emendar-me.
Nem consigo chorar, verter uma lágrima só que seja, nem consigo borrar-me de medo no meio deste «nada». Serei o único aqui que consegue pensar, formar ideias? Nada da vida é mais que simples interrogações, perguntas sem resposta.
Fui ouvido, estou de volta a uma realidade que já conheci, que já vivi, mas que de repente se me tornou estranha, acabei de experimentar o maior período de reflexão da minha vivência. A acalmia e o silêncio daquelas horas de cativeiro dentro de mim próprio deram lugar à azáfama diária das cores e dos sons, da Lua e do Sol, sinto-me alienígena no meu próprio chão. Talvez tudo isto me tenha feito bem e tenha limpo a minha falta de ser… humano.
De repente sinto que sei mais que muitos, mas também que a ignorância é um bem que deve ser preservado, ela dá lugar à aprendizagem e ao querer ser, à capacidade de reconhecer o valor do «não» e deste conseguir negar-se a si mesmo, saber concordar na negativa para espicaçar a dúvida e crescer. Sou de novo gente!


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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