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“As várias que nunca foram”, um conto em prosa poética, com ecos do existencialismo e do drama moderno, ou não? Por Chris Katz - Donzela do Gelo

 
“As várias que nunca foram”, um conto em prosa poética, com ecos do existencialismo e do drama moderno, ou não?

Foi o que disseram sobre ela. Nunca se soube ao certo quem falou, mas a frase colou na boca da cidade como chiclete velho no asfalto.
Ela caminhava pela rua como quem esperava sempre um fim ou uma revelação. Usava vestidos de outras épocas e carregava cartas nunca enviadas em uma bolsa vermelha que ninguém tocava. Diziam que tinha sido bailarina, freira, médium, fugitiva. Diziam que não era nada disso. Diziam que inventava.

O padeiro jurava que ela chorava olhando os pães, como se lembrasse de alguém que nunca mais voltou. A professora do colégio acreditava que ela era muda, até ouvir sua voz certa vez, ao telefone, falando em francês com alguém que respondia apenas com silêncio.

Ninguém sabia seu nome. Apenas a viam sentar-se todos os dias no mesmo banco da praça, ao meio-dia, como se esperasse um julgamento. Ou um milagre. Ou talvez um amor o tipo de amor que só acontece quando duas metades da mesma ferida se reconhecem.

Um menino perguntou à avó quem era aquela mulher.

A avó olhou por alguns segundos e respondeu:

— Aquela? Aquela é feita de pedaços que ninguém quis guardar.

Então ele ficou olhando mais um pouco, curioso, como quem contempla um livro fechado, tentando adivinhar o enredo pela capa gasta. E por um segundo, quase viu as mil que ela talvez fosse.

Mas depois passou. E ninguém mais olhou.




Na terça-feira seguinte, o banco ficou vazio.

O padeiro notou primeiro, mas não comentou. Só assou menos pães.
A professora levou flores, sem dizer pra quem. O menino, agora um pouco mais velho, correu até o banco e colocou ali um botão de rosa amassado que achou no chão.

As pessoas não comentaram. Na cidade, o desaparecimento era hábito gente sumia como sonho mal lembrado. Só que aquela ausência era diferente. Não doía, mas latejava.

No sétimo dia, alguém deixou uma carta no banco. Papel dobrado com um fio de cabelo dentro. O bilhete dizia:

“Mil coisas não cabem num nome só.”

No oitavo, veio o homem que tocava flauta nas tardes cinzas. Sentou-se no banco vazio e tocou uma melodia estranha, cheia de notas que pareciam soluços. Depois disse, pra ninguém:

— Ela era um espelho em movimento. Só via quem estava pronto pra se ver.

Na nona noite, a cidade sonhou com ela. Todos. Ao mesmo tempo. Sonharam com as versões de si que abandonaram. Sonharam que eram múltiplos, errados, belos. Sonharam que podiam ser tudo. E acordaram chorando.

Na décima manhã, o banco desapareceu.
Não que alguém o tivesse levado. Ele apenas... não estava mais.
Como se tivesse cumprido sua função de esperar.

E o que ficou ali foi um espaço não de ausência, mas de presságio.

Agora, vez ou outra, quando o céu pesa e o vento parece antigo, alguém diz tê-la visto: no reflexo de um vitral, no vulto de um trem,
na dobra de uma cortina.
E sempre, sempre, a frase volta a surgir em algum canto:

"Eu sou mil coisas e talvez nada seja." Mas nunca mais no tempo presente.
Na madrugada do décimo primeiro dia, um homem de chapéu escuro parou diante do espaço onde antes havia o banco. Ficou ali por horas, em pé, sem dizer nada. Parecia escutar algo que não vinha de fora.

Tirou do bolso um envelope amarelado, já gasto nas bordas. Abriu com delicadeza. Dentro, um recorte de jornal antigo com uma foto dela ou de algo que lembrava ser ela. E atrás da imagem, escrito à mão, tremido: “Me encontre quando puder me ver.”

Ele sorriu com os olhos rasos.
Depois, sem pressa, sentou-se no chão.

E esperou.

No céu, nuvens começaram a se dissipar, como se um véu invisível fosse sendo retirado pouco a pouco. Uma brisa morna soprou, trazendo com ela o cheiro de alguma infância esquecida. As árvores estremeceram, mas não caíram folhas. Apenas silêncio.

Quando o primeiro raio de sol tocou o chão onde antes havia o banco, ele disse, quase sem voz:

— Agora entendo.

E então… ele não estava mais ali.

Nem o espaço.
Nem o tempo.

Só a cidade ficou levemente diferente, como se uma história invisível tivesse enfim se encerrado. Um ciclo que ninguém sabia que existia, mas que todos, de alguma forma, sentiam.

E quem passava por ali, dali em diante, jurava que havia algo estranho naquele pedaço de calçada. Algo leve, mas antigo. Algo ausente, mas cheio. Como o fim de um amor que nunca começou. Ou o começo de um que nunca vai acabar.

Um novo banco foi recolocado no mesmo lugar, e permanecia vazio.

Mas dias depois, uma jovem começou a sentar ali com um caderno no colo. Não falava com ninguém. Trazia o olhar inquieto e os pulsos marcados de tinta. Escrevia como se tentasse salvar alguém que estivesse afundando dentro dela.

Numa manhã de quarta, uma senhora passou por ali e disse:
— Esse banco tem saudade.
A jovem ergueu os olhos. A senhora já ia longe, como se nunca tivesse estado ali.

As folhas das árvores continuaram a cair no mesmo ritmo.
O mesmo menino do balão agora com cabelos maiores e um livro debaixo do braço parou diante da jovem e perguntou:
— Você conhece a moça que vinha antes?

Ela olhou para ele, sorriu:
— Conheço.
— Era sua mãe?
— Não.
— Então era quem?

Ela fechou o caderno devagar.
Olhou ao redor.
E disse:

— Era todas que eu ainda não sou.

O menino assentiu, como se dessa vez entendesse.
Deu-lhe o balão vermelho.
— Pode ficar.
E foi embora.

O banco, então, já não estava vazio. Estava vivo.
Cheio de presenças invisíveis, de cartas não enviadas, de mulheres que não foram mas que, em silêncio, continuam sendo.

Fim.

Por Chris Katz, a Donzela do Gelo










Sou Mundos!


Chris

 
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Enviado por Tópico
A.Maria
Publicado: 01/08/2025 20:18  Atualizado: 01/08/2025 20:18
Da casa!
Usuário desde: 24/02/2025
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Mensagens: 402
 Re: “As várias que nunca foram”, um conto em prosa poétic...
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Muito bacana! Com esse seu talento só o de Beatrix e KaiqueNascimento, abraços!




Enviado por Tópico
efemero25
Publicado: 01/08/2025 20:29  Atualizado: 01/08/2025 20:29
Participativo
Usuário desde: 18/07/2025
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Mensagens: 22
 Re: “As várias que nunca foram”, um conto em prosa poétic...
Muito bom, parece comigo - todas as manhãs eu sento num banco da praça das sete palmeiras e fico analisando e já até escrevi um livros - "Vila Embratel - Praça Sete palmeiras" - amazon - adoro as praças