9
Um moreno de cavanhaque, bem afeiçoado aproximou-se do bacana galante estendeu-lhe a mão. Um aperto de dor. Abraçaram-se afetuosamente e os olhos mourejaram de tristeza e surpresa:
- Com foi?
- Compadre, foi horrível.
- E não havia nenhuma salva vida ou barcos?
- Nada – desabafou contrito o bacana galante, assoando o nariz com um lenço de seda que tirou do bolso da camisa.
As pessoas, amigos e colegas não disfarçavam seus sentimentos. Todos sussurravam expressando os seus pesares ou enaltecendo as boas virtudes do mestre Salomas, sempre esperto e falante
- Mestre Raimundo vou-lhe apresentar os meus amigos libaneses das farmácias, são todos bacanas e cada um tem uma drogaria. – Apertávamos o segundo ‘baseado’ da tarde no estreito e antigo quarto das empregadas no fundo do quintal, agora seu e com seus pertences e o improvisado aposento. A velha cama, a estante e seus velhos badulaques. Cartas, livros, enciclopédias, folhetos explicativos, o enferrujado fuzil de repetição pendurado no armador de rede. Uma tela naife e as roupas amontoadas num cesto no canto - Vamos primeiro no Supermercado Lusitana da rua de Santana, pesquisar uns preços e depois passaremos numa das farmácias deles. Eles são uns bandos de carcamanos filhas da puta, mas são gente boa – Vestiu uma camiseta branca e o ‘chaule’ na borda da velha cômoda em madeira trabalhada. O radinho branco destilando um reggae das antigas, uma verdadeira pedra de Gregory Isaacs.
- Mestre, o reggae é reggae. É a onda certa. Por isso o Clube de Paraquedismo vai organizar o primeiro “Parareggae”, Já temos local todo pronto. Falta apenas alguns detalhes técnicos. Sió, o senhor já viu uma plantação de cactos? – balancei negativamente a cabeça, enquanto dava mais um ‘pau’ na ‘macaca’ – Venha, faz o favor. = Saimos do quartinho, sem porta e nem janela. Um vaso de barro pintado toscamente pendurado num suporte de ferro na parede – Sió, vou lhe arranjar uns pés para o senhor planta-lo na sua casa nova da Vila Embratel, rente ao muro par fuder com os ladrões que o pularem.
- Como vai, mestre Raimundo? – Entrou alegre e todo riso na oficina, não lhe dei muita atenção, estava com a cara enfezada e chateado, soldava uma ancora – O que o senhor tem, mestre? – agachou-se ao meu lado
Contei-lhe o ocorrido, no dia anterior no feriado no aniversário da cidade, o primo dele matou um louco com um tiro. que tentava roubar uma calha do carro dele na travessa Feliz;
- O quê? Deu um grito de espanto, levantou-se e saiu apressado, voltando minutos depois mais tranquilo:
- Sió, o home era ladrão, Chego lá minha tia chorando por um lado e a minha prima para outro.. Disse-lhes para lhes confortarem, que não se preocupasse, eu também já mandei um filha da puta pro inferno e não me arrependo nem um pouco – E saiu cabriolando pelo beco.
Epilogo
-Mas como presidente do Clube de Paraquedismo Icarus, vou procurar as autoridades e cobrar satisfação e justiça. Houve falha por parte deles – nenhuma lancha, nada num domingo de verão isso é impensável – Declarou solenemente o bacana galante também conhecido como “Pequeno Defeito” diante de um minúsculo grupo de três pessoas em pé um pouco afastado.
Os coveiros suados cavando a cova e o olhar tristonho e lacrimejante do irmão olhando para o caixão a beira do buraco:
- É meu irmão, tu vai embora – lamentava agachando-se ao lado com a mão no esquife, a voz embargada pela perda de seu único irmão, os presentes entreolharam-se surpresos pelo aquele ato de amor fraternal nunca dantes mostrado – É meu irmão, nunca mais nos veremos.
Todos presentes choravam silenciosamente, todos ali presentes amavam essa grande figura e eu e Karl também vertemos sutilmente as nossas lagrimas.
Os coveiros saíram da cova, amarraram o caixão e o desceram lentamente. Todos em volta do buraco retangular. Fernardim foi o primeiro a jogar um punhado de terra e os outros o seguiram, inclusive nós também.
“Lamentamos informar que o Corpo de Bombeiro do Estado do Maranhão não foi convocado e nem notificado pelos organizadores do evento”
“ O Sistema Mirante informa que o trágico acidente ocorrido na manhã de domingo na Praia do Caolho, não tinha nenhum vinculo e nem responsabilidade dos organizadores dos Jogos de verão promovido todos os anos por este sistema. Tratou-se de um evento isolado do Clube de Paraquedismo Icarus”
- Resolvemos tudo na ultima hora – confidenciou Pequeno Defeito tentando justificar o injustificável – Não tinha nada programado, foi um improviso, um triste improviso.
Um revoada de andorinhas sobrevoou silenciosamente o cemitério do Gavião. Os coveiros pediram licença e os presentes afastaram-se e começaram a jogar a terra com as pás. Olhares incrédulos, o baque surdo – os coveiros impassíveis a dor dos presentes executavam normalmente até encherem a cova. Pronto acabou e todos se foram em grupos ou sozinhos, ficando apenas eu e Karl sentados num tumulo, o crepúsculo triste e inesperado. Um sino badalava na capela anunciando o fim do expediente e o fechamento da necrópoles. Sem muita pressa e silencioso enrolamos um baseado com lagrimas nos nossos tristes olhos, acendemos e demos umas longas puxadas e jogávamos a fumaça sobre a cova e simbolicamente deixamos uma enorme bia ainda acesa para nosso inesquecível e amado amigo fumasse enquanto seguia para o seu céu judaico.
Vila Embratel, 1994