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Diario de oficina & pensão - X

 
Freitag*, 14 - Onze dias para o natal.

- Vou esquentar um pouquinho o motor do carro - sussurrou Seu Obina com sua voz rouca de fumante inveterado. Minuto depois ouço o barulho do motor esgoelando-se para pegar e nada - o fedor de gasolina.
Seu Carlitos ou Baixinho sentou-se meio escabreado, ontem cedo encharcamos a cara com "Caninha do Engenho" - Fiquei louco, muito louco mesmo. Quarta a noite. bebi umas cervejas com Jean Gaspar no bar do Irmão na Praia Grande. E emendei com o Baixinho, não deu outra pirei e não comi nada. Seu Obina levanta e faz o sinal para seu Raimundo, caminhoneiro aposentado parar. São velhos parceiros. estou com a boca amarga e um mal-estar tremendo.


Aleluia! Aleluia! Uma solda e dez reais no bolso. A mão tremendo e suando a bicas. Um rapaz de moto trouxe o cabo da embreagem


A noite nos meus humildes aposentos na Pensão Vince - Ainda moído pelo resquício alcoólico das três latas de Glacial que bebi no mercado, enquanto observava peixeiro Lucas acondicionar os peixes na caixa de isopor e os cobria com uma camada de gelo.
Ouvindo um bom jazz. terminei a releitura de "John, Chauffeur russo" de Alphozine Zephirene ou Max du Veuzit.


Freitag* é sexta-feira em alemão




Sabado, 15 - Dez dias para o Natal


Um casal de pombos andava de asas dadas no asfalto orvalhado da rua 16.
- Seu Tri - saudou-me efusivamente o motorista Amadeus de dentro do ônibus, que parou para embarcar um passageiro, foi meu mestre na arte de soldar na época da casa grande da rua Afonso Pena, arranca o coletivo buzinando.
- Seu Raimundo! - gritou Seu Obina da calçada aproximando-se devagar com um cigarro, sentando-se na cadeira. Colocou o cabo de embreagem, deu uma volta no possante, mas o motor ainda engasga e sofre para subir a ladeira de Lourival, a gasolina quase na reserva - Aos pouco vou consertando-o. - Conformou-se.
Um belo jumentinho pachola de olheiras brancas passeia tranquilamente no meio da pista, parando aqui e acolá e sem sair da frente dos veículos. Seu Chico, o garçom desceu de um carrinho e o jumentinho parou para olha-lo subir em direção a casa dele. Cumprimentou-me de longe com a língua engrolada de álcool. Seu Raimundo, o baixinho arreliado da bicicleta parou abruptamente e comentou algo a respeito do tranquilo animal. O ônibus desviou dele.
Meu sofrimento terá fim, somente quando eu morrer. Um livro que queria reler era "Ainda resta uma esperança" do austríaco J.M.Simmel - o recomeço após o fim da segunda guerra numa Viena devastada pelos bombardeios aliados e a dura luta pela sobrevivência.
- O tempo está ficando enferrujado - disse Seu Obina olhando para o céu encoberto por grossas nuvens plúmbeas.
Trouxe Gorki "A Mãe" de l909 para estuda-lo um pouco. Seu Obina esquenta o possante. Seu Costa, o barbeiro do lado varre pacientemente a calçada e o nariz começa a avermelhar devido o forte cheiro de gasolina. Minuto depois Seu Obina manobra, dando de ré para tira-lo da garagem e atravessando-o na pista, engarrafando o trânsito. Aos trancos e barrancos consegue movê-lo bem devagar e sobe lentamente a temível. ladeira com uma fila de carros atrás buzinando. Nos tempos áureos, teve vários carros que deixava seus vizinhos boquiabertos, lembro de uma reluzente Chevrolet S-10 - cabine dupla a diesel.

Começo da tarde, ainda na oficina enxugando a segunda lata de kaiser que o parceiro Cesar Bude me ofertou. Delegado que as comprou e o ferrou cinco reais para inteirar um litro de vodca para a Night. Mr. Wolf acompanha-me, ainda pouco passou todo garboso pastoreando as cadelinhas da rua 23 e agora vai embora, urina no matinho que viceja no beco e desaparece. Seu Obina recolhe o possante e Claridio trocou a câmara da bicicleta.

Samuca, o pedreiro pagou mais uma lata.

Quase no final da tarde, mesmo sem nenhum tostão bebi três latas de Kaisão pagas por parceiros enquanto estava na oficina. Se dissesse para a sra. Vince, não acreditaria, suporia outra coisa. Emperiquitei-me todo para dar uma volta, mas depois do café com pão - desistir preferi uma boa leitura no Almanaque Abril e um pouco de Kerouac.
Pensei em digitar, ainda chocado com o suicídio do filho do Cabo Alcides. Comecei a ver o filme "Memorias do Cárceres", baseados no livro homônimo de Graciliano Ramos que li em 2014 - quatro horas de exibição e o livro mais de 800 páginas.
Chove sobre a vila, no quarto ao lado as netas do senhorio metem bronca, enquanto ela janta sozinha na sala, assistindo a novela das sete. - Escrever é tudo para mim é a realização da minha vida, é o remédio para todos os meus males psicológicos que me torturam constantemente. Há um paralelo entre Graciliano e Dostoiévski, ambos foram presos por suas convicções políticas e escreveram sobre elas.

Domenica, 16 di dicembre - Nove giorni per il natale

Esqueci este caderno na pensão e tive que voltar para apanha-lo, deixando Seu Obina de vigia. Como todas as manhãs esquentou o motor do possante. O inquilino da garagem de Cardozo abre o portão e minutos depois sai com o veiculo. A passividade do Mestre Graciliano ramos, bem interpretado pelo ator Carlos Vereza é magnifico - um homem tranquilo, cônscio da sua genialidade literária
Un poco de l'italiano para desenferrujar a mente. Io voglio imparare lingua italiana, una lingua musicale.
- Ei, professor! sauda-me Dona Iracema, ex-musa dos papudinhos, baquiada pelo tempo, magra e a pele enrugada acompanha umas irmãs da Igreja Universal.
O fartum forte da urina exala do fundo, todos que passam na calçada, botam a mão discretamente no nariz, assim como o carrasco SS nazista Himmler fez ao visitar o campo de concentração e extermínio de Auschwitz na Polônia
São dez horas da manhã e o céu escureceu rapidamente. Para aumentar a autoestima nada melhor que reler a prosa fluídica de Kerouac numa cidade perdida na Califórnia, com uma pequena mexicana de um metro e meio procurando emprego na colheita de uva. Motos passam em alta-velocidades como disputassem um racha. Pela quarta vez Seu Obina tira o possante da garagem. É um tira e bota, que deve amar é Dona Maria, sua esposa.

Il pomeriggio in camera mia (a tarde no meu quarto)

"Quando tudo está perdido, de repente surge a baleia branca Moby Dick e salva os dois irmãos do perigo" - e foi assim que aconteceu comigo. Fechei a oficina ao meio-dia, subia o morro sem gravata e sem esperança, apenas chegar na pensão, deitar-me e isolar-me de todos e ler um bom livro. O subconsciente, consciente de que nada mudaria o curso da manhã de lisura, não vinha triste, mas conformado com a sina, quando, de repente na altura da residência do locutor Collozinho, o Sr. Kanf descia na cargueira parou do outro lado e chamou-me. A princípio não entendi nada e ele insistia acenando-me para mim atravessar a avenida. Atravessei e ele começou a meter as mãos nos bolsos dianteiros da calça jeans como se procurasse algo.
- Um momento - e puxou um maço de notas amarfanhadas e catou duas cédulas de dois reais e estendeu para mim. Sorri, meio sem graça e sem entender nada. relutei em aceita-las Insistiu e as pós na minha mão
- Não é preciso, Seu Kanf.
- O senhor merece até mais Seu Raimundo.
- Tudo bem já que é assim aceito, mas não pense que o ajudei pensando nisso.
- Não senhor, eu sei, o senhor é gente boa.

Nos despedimos, agradeci e a luz do vicio acendeu dentro de mim, desguiando-me dos meus propósitos. Ferrei mais dois reais da Sra. Vince e fui para o mercado degustar umas latas de Glacial.
Talvez um dia descubro a grande história que devo escrever que me fará um best-seller. Mas enquanto não acontece, sou obrigado a dormir nesse colchão, matar os mosquitos enjoados que voejam e zunem a noite toda nos meus ouvidos. Mas fazer o quê? Ir em frente, fechar as narinas, tapar os ouvidos e escrever sem cessar e desenvolver meu próprio estilo sem copiar ninguém. Tenho um ponto ao meu favor, sou íntimo das palavras escritas. Escrevo da maneira que quero, é verdade que estou a milhares de anos-luz da maturidade literária. Mas um dia chego lá. Será que o genial pintor holandês Vincent Van Gogh também tinha essas crises existenciais por não vender nenhum de seus belos quadros? Posso não ser um bom escritor, mas estou esforçando-me para sê-lo. E assim vou trilhar até meus últimos dias, sempre em busca da luz.... como Goethe.

 
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efemero25
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