Poemas : 

Clariciana III

 
E então como seria agora? O que faria a partir do momento da tomada de consciência? Havia momentos em que essa solidão buscada feria-lhe o peito, era como uma fisgada na alma. Escolhera para si um mundo a parte para livrar-se de todas as suas dores. O muro em torno de si era enorme e impenetrável. Qual tamanha foi a surpresa ao descobrir que ela também estava do lado de fora. Seus sentimentos bordados e engomados para servir-lhe melhor agora estavam descortinando-se e ela tentava desesperadamente desvencilhar-se deles. Sentia urgência em agir diferente, agir como deveria sempre ter sido. Perdera o contato com muitas pessoas que amava criando sua redoma. Redoma frágil e carente. Redoma facilmente desmoronável porque na ânsia de proteger-se esquecera de fortalecer os alicerces. Negar seus verdadeiros sentimentos para proteger-se, ao contrário do que esperava, acabou fazendo com que ela afastasse do que era. E agora perdia-se dentro de si afastada de seus verdadeiros valores. Ainda havia valores? Quais seriam os introjetados a partir de uma projeção? Precisava separá-los, separar o joio do trigo. Tudo isso atortoava-lhe profundamente. Pensou então que haveria de descobrir um modo que fizesse uni-la a sua criança interior, aquela que fizera adormecer quando sentiu-se adulta. Sim, sentia que ela estava lá esperando por si de braços abertos. Perdoar-se por seus erros talvez ajudasse nessa empreitada. Era a culpa o que lhe mobilizava e era dessa culpa que deveria livrar-se em primeiro lugar. Sempre teimosa fazia questão de escolher caminhos tortuosos. Não queria e não podia ouvir conselhos porque era a dona da verdade, da sua verdade fantasiosa. Sempre seguia pela estrada que a experiência alheia advertia-lhe de ser errada. Queria ver para crer e assim experienciava o caminho da dor. Deveria entregar-se ao que realmente era. Seguir seus instintos, sempre que ignorava-os tudo acabava muito mal. Mas a recusa estava ali agora diante de si e essa recusa causava-lhe repulsa. Curioso como às vezes tinha clareza e a lucidez diante do óbvio trancado a sete chaves no seu inconsciente. Tudo aquilo que construira para livrar-se da dor voltava agora para cobrar-lhe seus falsos e inúteis investimentos. Estava em uma fase de sua vida em que era encarar ou morrer sendo o que não é, e isso causava-lhe náusea e vertigens. O peito apertado zombava das largas vestes que tentavam afrouxar-lhe o mal-estar. Tudo o que acontecia, noite e dia, vinham lembrar-lhe de que esta era a hora de virar a mesa. Não havia mais como adiar diante do constatado. E assim longos suspiros e pensamentos preparavam seu retorno.


A paz surge quando reflito no papel o que sinto.
Meu caderno é meu espelho.

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LucianaSilveira
 
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Enviado por Tópico
Maria Verde
Publicado: 12/08/2009 21:20  Atualizado: 12/08/2009 21:23
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 Re: Clariciana III
Oi Luciana,

Destes o nome de Clariciana III, assim entendo que seja inspirado em Clarice Lispector?
Clarice Lispector abusava da subjetividade e da linguagem em seus textos mais sofisticados, diluindo a percepção do "aparente". Em seu conto, não acho que seja poema, essa subjetividade não aparece, porém, é muito bem escrito! Em terceira pessoa de narrador onisciente, com pinceladas intimistas interessantes. Parabéns!
beijo.

Maria verde


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 12/08/2009 22:08  Atualizado: 12/08/2009 22:08
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 Re: Clariciana III
Nunca tinha visitado seu cantinho, sorry, e tenho a reconhecer que o seu texto está muito bem elaborado, denso e delicado. Gostei muito.

Abraço
arfemo