Poemas, frases e mensagens de freitas.antero

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de freitas.antero

in-controlo

 
hoje vou nu,
despido de mim
e do que de ti há em mim.

só assim poderei olhar-te
sem que o peso do que de mim há em ti
me impeça de te olhar como te olho no meu silêncio

vou nestas botas gastas
para que não me fuja o trilho
aquele por onde vou até ti
e enquanto caminho assalta-me o acto de traição
que vou perpetrar sobre o teu corpo

mas não andará, já, o meu corpo traído

vou estar no mesmo lugar
sentado, de frente para a porta
e quando tu entrares
vais parar um segundo para ver que ali estou
e vais abrir um sorriso
e eu vou morrer.

depois vais-me contar o teu dia
os teus nãos e os teus sins
pois sabes que sempre te ouço

mas hoje não vou ouvir as tuas palavras
só o som que produzem
hoje vou ouvir o teu corpo
todos os meus sentidos pousados em ti
e enquanto falas
olho a tua boca e os teus olhos
e sinto a tua pele nua na minha

e vou querer entrar dentro da tua pele
e pousar-te uma mão no coração

e as tuas mãos, que não param de se expressar,
tocam-me e mostram-me o teu calor

e a dada altura vais estranhar as minhas botas
e eu vou dizer-te que só as calço quando os pés me ardem.

depois invento-te o meu dia
porque não te consigo dizer
que o meu dia foste tu
mesmo quando vestido

quando chegar a hora de te ires
vais aquecer-me a face com um beijo
e, como sempre, dirás
um beijo para o melhor amigo do mundo

e assim que te perder para a porta
vou sentir-me mais nu do que nunca
 
in-controlo

D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

 
António e Luísa
E
Os gatos da rua parda

Miado número três

“And it’s your face I am looking for on every street”
Mark Freuder Knopfler

Os gatos que conversavam à porta da tasca parda, com um olho no tasqueiro e outro na sardinha que, na borrasca, acalentava o estômago magro de qualquer um, fosse gato ou tareco, nunca tal houveram murado. Nem nesta noite nem nas noites das nove vidas. Espalharam a notícia num miau. Havia um louco que dançava ao som do acordeão de um louco ainda mais louco do que ele.

Ficaram na primeira fila.

O instrumento tocava de forma sublime, pensamento na lua pelos olhos alienados do louco tocador. E cada nota era uma palavra, um sentimento, uma risada, uma lágrima, um temor ou um alento. António, o louco menos louco, dançava ao som delas, sem cigarro, sem cerveja e sem disfarce, somente ele, tal como era, só a certeza da certeza de estar certo do seu querer.
A melodia entranhou-se-lhe nos sentidos, deixando-o extasiado, tal como o marinheiro no mar sereno e enlevado das noites arco-irisadas de ópio. Embalado pelo canto do acordeão, António levantou âncora e zarpou rumo a bom porto. Com ele foram os gatos, corpo de baile felino, que não queria perder o apogeu daquela dança.

Ao virar a esquina da rua da oferta, António estacou, ao ver a orgia de pernas altas e nuas. O timing perfeito da hesitação, que o apanhou desprevenido num volutear risonho, confundiu-o um pouco deixando-o momentaneamente sem vontade de dançar. A coreografia deste stop motion foi quase perfeita, não fosse a sardinha presa pelo rabo à boca de um felino revirar os olhos em sinal de contestação, pois pela boca é que morre o peixe.
Pelo pé parecia ter morrido o querer de António, a julgar pelo passo dado atrás, mas as treze mãos direitas dos treze gatos que não eram pardos, nem tão pouco parvos, continuavam levantadas à espera do passo em frente. Lá mais atrás, na praça da loucura, o acordeão continuava a falar.

António levantou a cabeça e enfrentou o seu destino.

Treze suspiros se ouviram em uníssono e se quedaram mudos a um canto, expectantes.

Seios fartos em mãos ávidas, pernas abertas em pernas fechadas, por entre fumaça que passava de mão em mão, de boca em boca. Sorrisos falsos e cativantes que alimentavam as faces compostas e estudadas da oferta, sorrisos patetas e lascivos que expunham a luxúria da procura.

Por este plateau passeou António os seus olhos, em super-slow motion, captando cada pormenor, cada gesto calculado, cada olhar no olhar de outro. Sentiu-se deslocado. Subitamente apercebeu-se de que não era desta forma que teria de enfrentar os seus medos. Revoltou-se consigo mesmo por tamanha fraqueza de alma. E aquela música não pára! António escutou-a, vinha em crescendo, sempre a subir, sempre a falar com ele, sempre a aclarar-lhe a mente.

Então, viu-a!

Por uma nesga de corpos, António viu o olhar de Luísa fixado em si. Um olhar indefinido, tal qual o era a razão por que aquela mulher ali estava. Tal como ele, ela estava deslocada daquele tempo, daquela noite. Luísa, aconchegada na sua sombra, viu naquele homem a procura que tanto desejava, e no entanto, não queria que ele a procurasse. Mas a sua alma já pulava de alegria! Tira esse olhar de indefinição e mostra-te! Não vês que ele é igual a ti?

António percebeu que ninguém a olhava, tal qual ninguém o olhou a si, apesar de estar a escassos passos de ninguém.
Ela era igual a ele!
Ambos eram transparentes no sentir, sem luxúria, sem fingimento. O disfarce que cada um trazia colado ao corpo, não disfarçava a genuinidade do seu ser. Por isso eram invisíveis aos disfarces que por ali se vangloriavam. Que quem não sente não alinha o seu ser! Ao pensamento afloraram-se-lhe as notas do acordeão, sim, agora tudo fazia sentido! A música estava no seu apogeu. António sentiu chegado o momento! Era só um passo, o primeiro!

Foi então que um gato miou.
 
D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

Amoris

 
As poesias de amor são impossíveis.
E o amor impossível vira sempre poesia.

E eu estou cansado de ouvir de amor!
Se ao menos falassem do Amor! Se ao menos falassem!
Colocam o amor num pedestal ornamentado dos mais absurdos adjectivos e não sabem que o Amor somos nós.

Que se fodam as rosas e as flores e a seda.

A seda é a palma da mão na pele. E a pele treme.

Que se foda o luar sentado à beira mar, numa noite de verão, com os cabelos sedosos a esvoaçarem ao sabor de uma brisa que traz um qualquer cheiro inventado.

O importante é o lugar sentado ao nosso lado.

Se ao menos falassem do Amor.
O Amor é sangue, é ranho e baba.
É rasgar a carne e, depois da dor, voltar a rasgá-la.
 
Amoris

coisa imperfeita contínua

 
e levou-me os sonhos, dizia.
o meu corpo quebrado
e sem nada.

sobrou-te Um pesadelo.
há mais sonhos.
estão sempre a vir. mais e mais.
alguns reinventam-se
outros nascem pela primeira vez.

e, por fim, adormeceu.
 
coisa imperfeita contínua

do som do riso ao cair

 
...

a minha mãe costumava dizer
que eu achava graça ao cair de uma folha

era sempre a rir

agora zango-me com o vento que faz cair as folhas.

disse.
 
  do som do riso ao cair

D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

 
António e Luísa
E
Os gatos da rua parda

Miado numero dois
“But the night was young and so were we dancing”

António

E no limiar desta noite estava António, com um pé na soleira e uma mão no ferrolho, que a dúvida ainda lhe sussurrava e a hesitação oferecia-se languidamente. António rejeitou a dúvida e permitindo, por segurança, que a hesitação o acompanhasse, entrou.

Cigarro nos lábios acabado de acender - refúgio seguro para as palavras que não querem ser ditas- e olhos fixos em nada para não se denunciar.

Duma tasca ambulante colheu uma cerveja para lhe aquecer o ânimo e lhe compor o disfarce. Só faltava descobrir o quarto onde queria entrar.

Olhou a noite à procura do sinal. Um grande gato preto fixava-o, impassível. António mirou-o e sentiu aquele olhar trespassá-lo e varrer o seu interior. O gato moveu-se e miou-lhe para o seguir. António especou-se, atónito, e logo o gato lhe rosnou e, virando-lhe costas, entrou numa ruela.

António sentiu as suas pernas mexerem-se e seguiu pela ruela. Ao virar um esquina fumosa, um Escobar falsificado perguntou-lhe se queria produto mas nem precisou responder, que o dito cujo logo percebeu que António ansiava outra oferta. Da cerveja que quase lhe caiu da mão pelo susto que tremeu, António bebeu mais um trago para serenar as pernas e continuou noite adentro.

Luísa

Às vezes a vida é um lugar severo, sombrio, sujo e solitário, como o é o pedaço de necessidade onde agora se encontra Luísa. Ela perscruta as esquinas da rua da oferta em busca da sorte que uma qualquer procura se lhe venha a oferecer. A sua oferta é um bem maior e, para bem dos seus pecados, ainda ninguém apareceu ao seu canto.

Luísa sabia que caminhava sobre o limbo de um abismo peçonhento do qual não conhecia o fundo, mas tinha consciência de que o veneno que dele exalava podia ser fatal, embriagando-a de tal forma que, sem que desse por isso, lhe iria corromper a alma tornando-a num carbúnculo sem brilho. Mas a recompensa valia o risco, pois a imagem do que amamos é como a nossa sombra, segue-nos por toda a parte. Aconchegou-se no seu fino casaco e mirando os três gatos que lhe faziam companhia, que mais pareciam sentinelas duma noite trágica, continuou a espera.

António

Depois da terceira cervejola, António conheceu a transfiguração. Sentia-se grande. Maior. Conquistador mor de todas as conquistas, que o seu peito aberto e inflamado de brio ébrio faria frente a todas as adversidades que lhe quisessem trazer infortúnio. Até o seu passo rígido e calculado, que marcava passo, era agora um passo de bailarino, ágil e solto e leve, que a hesitação se cansou dele e ficou à conversa com a indecisão num tira-teimas irresoluto, a ver quem incutia mais dúvida a quem nada sabe.

António já não tinha dúvidas, esta seria a noite da sua libertação. Nunca mais a humilhação se iria apoderar do corpo. Como da vez que veio em olhos de mulher, causada pela inacção do seu corpo na noite em que se deitaram a amar. A humilhação de ver estampada naqueles olhos a desilusão e a rejeição levou-o a esconder-se de si. António queria amar, mas a sua própria desilusão fez com que nunca mais se aventurasse a amar para não se expor a padecer.

Não, esta noite não.

E cada vez mais convicto do sucesso porvindouro foi à sua procura, que a excitação se espreguiçou pelo corpo todo e se levantou entre as pernas.

Luísa

Luísa já dava a noite como perdida, que ninguém aparecia à esquina do seu canto. Debateu-se tão ferozmente com o seu ser, acabando por vencer uma contenda que ambos perderam, e agora que sujeitou o seu corpo a ser personagem principal num filme negro labiríntico, mais parece que não passa de um mero e insignificante figurante. Sujeitou-se a sofrer pelo seu corpo e ninguém entra em cena. Mas Luísa não sabe que o seu íntimo não desistiu de ganhar o jogo.

E a jogada triunfante está a chegar, em passo de bailarino.
 
D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

short stories #1

 
é o destino.
outros dizem: sorte, ou falta dela. dizem que o caminho já está aberto, prédefinido. então para que serve a escolha, o livre-arbítrio, o arrependimento e o remorso?

seja o que for, Luís mudou.

entrou no bar e escolheu a mesa da esquerda.
a noite estava animada e ele sentia-se eufórico.
Ana, rapariga nos vinte e dois, corpo cheio de energia e capaz de tirar toda a energia a quem quer que fosse, foi atende-lo.

que desejas?

desejo os teus olhos, disse Luís.

e para que os queres tu?

vem comigo e eu digo-te.

não perdes tempo, riu-se Ana.

Luís bebeu, riu, saltou e dançou.
ao sair virou-se e acenou a despedida e viu os olhos verdes de Ana sorrir-lhe um adeus.

às quinze e vinte e três do dia seguinte tocaram-lhe à porta. Luís deparou-se com uma pequena caixa de cartão, deixada na soleira.
tinha escrito na tampa, em letras negras:

tens mais dois desejos
escolhe-os bem

Luís abriu a caixa e viu o verde de dois olhos que já não tinham tempo.
 
short stories  #1

xadrez

 
e no auge da batalha:

oooooooooh! meu amor
oh, que bom.
foi tudo maravilhoso. o presente. o jantar. a música. e agora este calor imenso.
amanhã quero igual.

ó foda-se, lá estás tu com essas merdas.
 
xadrez

num dia bem de morrer

 
num dia bem de morrer
corriam pela calçada um homem e uma mulher,
de forma desenfreada.

a sete pés ao quadrado
fugiam doutros pés,
uns que andam de lado e às vezes ao revés.

pairaram na encruzilhada, lugar sempre de horror, que a dúvida está emboscada
para bem servir o amor,
os tais outros pés, sem dedos.

que não sabendo caminhar,
enredam os dias do medo,
a quem por bem se quer dar.
 
num dia bem de morrer

crónicas dos novos dias

 
dia primeiro

são cinco e trinta e oito da madruga-quase-dia do primeiro dia. e de repente a cama adquire uma qualidade de quase transcendência. deito-me. uau, que bom!

acho que ainda não lavei os dentes! foda-se, lá se vai a transcendência.
um palavrão. que por acaso até é pequeno. foda-se. seis letras e um tracinho. hipipapaquigrafo é maior. e o nome do senhor que trata do nariz e da laringe e do ouvido é ainda maior.
do senhor ou da senhora.
não quero começar o ano sendo acusado de machismo ou, pior ainda, de misoginia.
para que conste: eu sou absolutamente a favor das mulheres. em todas as posições.

dentes lavados. merda de dentes que nunca ficam branquinhos. o tabaco.

cama. caminha!

são cinco e quarenta e seis.
e à minha volta as luzes e o fumo e a música e os corpos ainda dançam. e o champanhe. mais champanhe. e minis. e saias minis. por acaso havia poucas. merda, quem foi o burro que se lembrou de pôr house?
celebrar um ano que finda ou um que começa?
as duas coisas, vá. começa-se às dezanove ou vinte do último dia e espera-se pela hora zero e grita-se eeeeeeeeeeeeei e dão-se beijos e tal.
e não se lembram as coisas boas do anterior. e as más. o que se fez. o que não se fez. o que não se devia fazer e o que se devia.

e enquanto o sono não nos engole começamos a pensar nas coisas que temos de fazer e que não vamos fazer.

amanhã vou deixar de fumar. é sempre uma das medidas a serem tomadas. é isso, vou deixar de fumar. mas o que vou fazer ao tabaco que ainda tenho? não o posso deitar ao lixo, isso seria desperdiçar dinheiro. pronto, quando este acabar deixo de fumar. mesmo. e, assim, pode ser que os dentes fiquem branquinhos. está decidido.

concretizar sonhos. é o que deve ser. o resto fica para o ano que vem.

e as luzes já enfraqueceram. não há mais ninguém a dançar, só a minha cabeça. devagarinho.

e.

o resto do dia na companhia da família. as coisas do costume. algumas dores de cabeça. alguma falta de vontade para estar a horas à mesa. segunda parte da celebração. grande almoçarada. depois a molenga da tarde. conversas e outras coisas que tal. vou ao piano martelar os últimos acordes da tarde.

ligo o carro e venho-me embora. e logo ali começa o vazio. que aumenta à medida que como a distância que me separa da minha casa. vazia. e quando, finalmente, me sento nesta cadeira, o buraco enorme que se fez faz-me ver, mais uma vez, que afinal a celebração é a família.

mais visitas à família.
é uma das medidas para o novo ano.
 
crónicas dos novos dias

colisão frontal de um voo a destempo

 
quis voar antes das asas e agora temo perder o céu.

e este pensamento não se desvia de mim.
teima em colidir-me. de frente.

e por cada vez que o faz eu procuro-me nos escombros.
ergo-me por onde ele passou.
só assim o matarei.
para sempre.

resta-me esperar pelas asas. Depois…
depois, tomarei os ventos ascendentes, devagar,
e cada vez mais alto atingirei o pico de voo.

que o azul ainda seja.
 
colisão frontal de um voo a destempo

memento

 
sim.
já fumei escondido.
o cigarro teve outro sabor. atrevido.
foi fogo e medo e dedos trémulos.

e a primeira vez que a pele se me acendeu
a terra tremeu. as mãos queimavam e o corpo ardia
o isqueiro tinha olhos verdes
foi fogo e medo e dedos trémulos.

os dedos continuam
e quando faíscam, as primeiras memórias sobem
não afogam.
e o mais à frente é fogo e medo e dedos trémulos.
 
memento

incandescente

 
A noite. A cidade. Os passos. Os nossos passos.
Engolimo-nos na cidade desta noite.
Fizemos do tempo sofá.

Ainda trago nas mãos o cheiro das horas que abraçamos.
Nos dedos todos os segundos. Contados. Acesos.
Na palma da tua mão o meu rosto, esculpido nas palavras que dissemos.
Soltas.
Sem outro significado que não o que os sentidos colheram.
Mesmo naquelas que não dissemos e que os olhos atiraram para dentro do corpo.

E o tempo - no sofá. À espera.

O relógio acordou.
Mostrou-nos que as horas também abraçam. Os minutos. Os segundos.
E outras e outros virão.

Só os dedos das nossas mãos sabem se irão ser contados.
 
incandescente

D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

 
Da série Doutras Noites

António e Luísa
E
Os gatos da rua parda

Miado número um
We can start a fire "Even if we're just dancin' in the dark"

A noite insinua-se na linha do horizonte, os gatos anunciam-na pela calada enquanto afiam os bigodes para mais uma noite de fado. As ruas esgotam-se das cores cambiantes do ocaso solar pintando os cantos de sombras. Os pombos arrulham ao som das guitarras que se afinam para mais uma conversa desgarrada. Os corpos cansados do rebuliço insano das horas que não passam anseiam a fechadura do descanso que, aberta aos tropeções se fecha para o tempo de outra noite.

Noite fechada com porta aberta para outras vidas. Vidas escondidas na penumbra do ser diurno, perscrutando cada segundo que as amarra à luz do dia, ansiando por se vangloriarem no salto sem glória que morre na entrada do ocaso catapultando-as para a luz da noite.

Luz fingida, perturbadora de cada passo, demovendo-os amiúde de seguir o seu trilho, atirando-os por atalhos sem saída. Arrastadas nesses passos vêm vidas atalhadas de angústias, de sentimentos mal sentidos ou por sentir, de desesperos aflitos desesperados por um pedaço de conforto que lhes cale os olhos molhados pela tortura de outras portas outrora abertas e agora fechadas. Ou de outras por abrir, que a algumas nem sequer se foi bater por medo, por vergonha, ou por coisa nenhuma! Há outras que permanecem entreabertas, somente à espera do último empurrão que cego, surdo e mudo, não encontra o caminho e esbarra na parede da dúvida que desavergonhada e na sua vil petulância, impede o ente de alinhar o seu ser.

Cruzada essa porta nocturnal e entrado na imensa sala da carência e da necessidade, que se transforma à medida do que se pede, buscam-se, numa dança de outras músicas, corpos incertos que de tão certos dos mesmos sentidos sem sentido se perfilam alinhados no seu desalinho.
Depois fazem par numa dança que, prendendo os movimentos à desilusão, à solidão e a outras "ãos", faz sombra às sombras da vida. As danças são muitas e de variados estilos, e há pares para todos os gostos e feitios: Baco e Afrodite, Mari e Juana, Henry and June and Jean and Nin.

Numa sombra parada espera a oferta, de um canto escondido avança a procura e ambas imploram uma dança sem dor. No final da breve dança o par deixa de o ser, a procura vai insinuar-se a outra carência e a oferta continua a oferecer-se a outras procuras que o queiram ser.

E no limiar desta noite estava António.

freitas.antero
 
D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

apotegma

 
disse ele:
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

deus não quer nada.
se deus quisesse alguma coisa não estaria ali aquela criança, de olhos molhados, e lábios pousados no seio seco da mãe.
e nem a mãe estaria de olhos molhados por ter somente um seio seco para pousar nos lábios do filho.

o homem não sonha.
o homem abomina os sonhos. Os sonhos são castelos no ar.
dezenas, centenas, milhares, milhões de castelos a voar, a voar, e a caírem.
a caírem.
a desfazerem-se em pó no chão do pesadelo.
do homem-pesadelo. Do pesadelo-homem.
o criador da não-obra.

a obra nasce quando a árvore fura a terra e corre para o céu.
quando o choro de uma criança irrompe do útero da mãe a reclamar os seus castelos no ar.
quando o sol ri ao mostrar o azul do céu e chama a árvore e a criança e lhes mostra a obra.
quando a terra faz amor.

depois, tudo cai no que deus não quer e no que o homem não sonha.

merda de mensagem!
 
apotegma

D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

 
António e Luísa
E
Os gatos da rua parda

Miado número quatro

"As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão"
André Gide

Albano Malhado

Na ténue fronteira entre a loucura e a sanidade, esgrimem-se argumentos e quem impera é a razão. Louca ou não, que a loucura também tem razão na loucura que a razão tem.

Albano, o que transporta a luz, o louco tocador, pressentiu a tortura pelo bafo da inveja que avançava em passos de homem.
Forçou um pouco mais o instrumento, falta pouco, o momento está a chegar. Sentiu o cansaço do instrumento, ou talvez fossem os seus dedos a não responderem. Albano sabia que já tinha feito o necessário para enganar a escuridão à espera que António se aprumasse, sabia que estava na hora de ele se descobrir no homem em si.

Mas seria frustrante se, após todo este esforço, a vida de António e Luísa escorregasse para o abismo. Albano sabia que cada um teria de alinhar o seu ser com o seu querer, que teriam de enfrentar os seus fantasmas de frente, mas temia que António não estivesse pronto.

Albano não desarmava e continuava a martelar os botões, a melodia estava a chegar ao seu apogeu. Tocava e tocava! Os seus dedos eram guiados pelo seu querer, mas o que tinha de ser foi, e o Mi bemol que deveria ter sido transformou-se num Ré de meter dó.
Albano ficou furioso, tudo seria diferente agora.

Desapareceu na esquina da loucura e apareceu na da oferta.

Mesmo a tempo de miar.

freitas.antero
 
D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

doxomania

 
Belo!
Sou tão belo!
Que belo que sou!

Estes Dedos
Estas Mãos
Tão belos, tão belas!

E estes Lábios
E esta Boca
Tão belos, tão bela!

Que belo que sou!
Sou tão belo!
Belo!

Eu sou omniparente!

Vai-te foder – vomitaram todos os Espelhos da Sala.

Foi encontrado morto junto de uma fonte,
Com metade do dedo médio na boca.
 
doxomania

exercitação #01

 
eu sei que não devia
querer teus olhos
noite e dia

poisar em mim

como quem queria
ver meus olhos
noite e dia
 
exercitação  #01

da magia da magia

 
Não vou dizer que te amo.
Seria um tiro. Mais que no pé.
Vou dizer que amo o momento de poder dizer que te amo.
Talvez outro tiro. Se tiveres o gatilho leve e não acreditares
Que o tempo nos guarda tempo.

Tempo? Tempo? Gritas tu.
Vira que vira
Sonho no sonho
Sonho e mais sonho
Vira que vira –

Pesadelo.

Tantos tiros. Tiros no tempo que to roubou.
Carregador vazio e guardas o gatilho.
Já não acreditas na arma. E viras as costas ao tempo
Porque moras no pesadelo.

É então que o relógio acorda
E por magia te dá corda
Mas vais limpar a arma
Porque ainda não abriste a porta da tua última morada.

Presentes o sol, a luz, o vento
E ouves o tempo no seu murmúrio
Dizer-te que ainda lá está
Abres a porta
E começas a amar o momento de eu poder dizer que te amo.

Porque o que há de mágico na magia é acreditar nela.
 
da magia da magia

da Glótica

 
e a tua língua ainda não me disse um beijo.
 
da Glótica