Com um sim se diz não. No vagar dos tempos Entre o espaço cidral dos teus dedos abertos Há um tear mecânico Onde nossas mãos ávidas Quiseram tecelar um tapete de orelos Com os trapos dos momentos partilhados. Foram as nossas palavras a urdidura Que fomos esticando Mas o pente liço atrofiou-se uma manhã E os fios quebraram-se.
A poesia do teu corpo ficou fechada Com todas as vontades viradas do avesso Não penetrei a poesia da tua flor Nem cada detalhe do teu corpo desalinhado Os beijos, a língua, a saliva, o suor, a pele molhada O falo túrgido Esmoreceram Num campo de cardos. Eu sei que cada um de nós um dia chegou a imaginar Os nossos corpos fundidos Num vaivém em suaves entregas No fio de trama do tear Onde tecido seria a nossa carne E os nossos sentidos entregues a um amor sem regras.
Ficou o desejo mudo O que faz de nós meros filatelistas Que nos preocupamos com os pormenores mesquinhos Da integridade da serrilha de um selo. O desejo mudo Esmaga-se à noite no silêncio do travesseiro, Olhos abertos na escuridão Ao vaguear pelo firmamento de tecto do quarto, Sente-se o vazio de um corpo ao lado Que respira e dorme profundamente E o desejo de noite não é o desejo do dia E o desejo cala-se E a lua consente E o sono chega E manhã que há-de chegar não será mais uma vez A manhã Que com um sim se diz sim Ao que sempre se disse não.
Tira-me a noite O que o dia me dá. Podem ser as manhãs frias Debruadas em rendas de nevoeiro, Pode o dia despontar afogado Em insonsas lágrimas de chuva, Ou o sol ser apenas Um bordado num lenço de namorados, Sei que a ti chegarei, Sei que tu me terás. Podem cantar as cotovias na tarde outonal, Odes de morte e penúria, E mesmos os cães abandonados Nos jardins dos lamentos, Podem uivar maus presságios, Nada nos pode demover. Abraçados, coloco uma rosa nos teus lábios, Amoras silvestres nos teus olhos, Que me esmagam com imensa ternura. Toda a negritude da noite está dentro do meu peito, E espero com a paciência de uma fera ferida O despontar do dia. Enlaço o fio que nos une Durante a tua ausência em nós de macramé, E escrevo o teu nome à luz de um candeeiro, Mil vezes, e mil vezes me dou perdido, Angustia-me a sonância da caneta a roçar o papel, Sei ser esse o som do teu corpo junto a outro corpo, A revolver lençóis, Em afagos, e gemidos contidos. Maldigo a noite Enquanto espero Que o dia me dê O que a noite me roubou.
Não sei quantas vezes tentei alcançar O espaço vazio para além dos teus braços. Não sei! Apenas sinto o frio das estrelas perdidas no espaço. Não sei quantas vezes ergui a minha mão Com vontade de tocar os teus dedos. Não sei! Apenas sinto a urticária das anémonas na minha pele. Não sei quantas vezes te olhei Para alcançar os campos de trigo nos teus lábios. Não sei! Apenas vejo uma crisálida que recusa a borboleta. Não sei quantas vezes fiquei atento Para escutar o teu silêncio. Não sei! Apenas sei, são mais os dias em que desejo morrer Do que as noites em que vou vivendo.
Receio dizer-te o quanto eu te desejo, Medo que desdenhes deste sentir, E deslumbres nele um simples anseio Na esquina dos corpos contornados. Tenho um pensamento quando a noite se deita E se espraia para lá de mim, Desfruto o teu rosto no horizonte junto aos meus pés, As palavras saltam de minha boca, Trazem a maresia dos mares, As negras algas dos teus olhos. Afago este papel branco, Com a mesma ternura que toco a tua pele, Desenho a lembrança do teu sorriso, O som suave da tua voz E com palavras doces Desenho a tua boca. A minha imaginação é um pássaro Com penas de caruma seca, Asas de silêncio, Esta noite se escutares o seu canto, Abre a janela e deixa-o entrar, Ele transporta no seu bico A papoila do meu querer.
Trazes em ti o aroma da terra fresca, O vento que agita os trigos ainda nascentes, O voo das andorinhas ao fim da tarde Enquanto te despes e danças para mim. Os teus braços abrem-se em asas, Os teus olhos esperam pelos meus olhos, As tuas mãos ficam nas minhas E o teu sorriso pergunta ao meu Pelos trilhos dos nossos desejos. O tempo deixa de ser tempo No tempo em que nos envolvemos num abraço, E os sonhos adormecem no calor dos corpos, Trementes e envergonhados pelo desejo adiado. As nossas bocas aventureiras, Perdidas na ânsia de se tocarem, Abrem-se na agitação das nossas línguas, Em beijos húmidos e profundos. Libertamos as mãos, E elas procuram novos caminhos nos nossos corpos. Abrimos as portas que há em nós, Entras em mim, eu entro em ti, Há um lago de eternidade no fundo dos teus olhos, Deste-me o abismo do prazer E eu aprendi a soltar gemidos Quando a flor do teu corpo Aperta em laço húmido e quente O fruto que te entrego a pulsar. Acabamos sempre náufragos, abraçados, Na praia dos lençóis desalinhados. Com uma concha madre pérola Escrevemos na areia... … AMOR...
Por aqui aos pouco me fui chegando, Trazia as mãos nos bolsos, ar tímido, A manipular algumas palravas entre os dedos - Do mesmo modo que no meu tempo dos calções curtos, Perna fina, garraio de rua, No bairro operário às portas da grande cidade, Brinquei e chocalhei berlindes. Ou percorri as tabernas, o esconderijo dos indigentes, Nariz no chão, cão de caça, No farejo de carteiras de fósforos: Traziam fotografias de monumentos, Comboios, Plantas, Automóveis, Cães e gatos, As mais cobiçadas, caricaturas de jogadores da bola. - Por aqui (repito para retomar o verso que ficou estático) Fui soltando as palavras, acetinei cores, Recuperei aguarelas que nunca pintei, Trouxe conversas que nessa rua ouvi – e então não as entendia. Mas ficaram como lenho em madeira verde dentro de mim. Aqui libertas deslumbrei todas as suas explicações, Senti a pele arranhada pelo sal da terra, A raiva e a fome esquecidas. Pergunto-me se devo aceitar o assédio da escrita, Ou esmorecer na tinta e na pedra consumida Deste velho coreto onde me sento? Um dia ainda vou escrever poemas de amor!
Gostava de te dar um jardim Com flores desenhadas em digitinta Pela minha mão criança - de formas e cores Simples e ingénuas Como é este tempo em que me esgoto à tua espera.
Hoje sem vontade de escrever. Por esse motivo faço mais uma reposição
Cerzia os remendos da noite passada Os primeiros raios de sol. Ela sabia-o: Os tumultos assim vividos Não enchem os jornais da manhã. Na noite que agora termina A mulher desvendou novos mundos num outro corpo, Que entrou e saiu da sua cama, Até aí uma ilha deserta. Percorreu com os dedos, Num arremesso de volúpia nocturna, Zurzia pela luz amarelada emitida do velho candeeiro ainda acesso, A memória do corpo do homem, Que ela encontrou náufrago a deambular à porta do café A cantar velhas canções de marinheiros. (sempre fora e ainda é uma mulher tímida. Gracejou consigo. A variação de uma letra numa palavra tudo muda - É a maquina simples de Arquimedes. E mudou a letra Tímida – Temida. Sim, ela hoje sentia-se uma mulher temida) A arfar em cada toque o medo e o prazer, Excitante na descoberta de cavernas e coitos Escondendo nos húmidos corpos - os musgos de indecisão, Deu-se à descoberta das cavernas mais profundas Onde avançou no desvendar de pinturas rupestres De um desejo há tanto esquecido.
Nesse instante ela sentiu que era o centro da galáxia. Talvez uma estrela, Ou um cometa de cabelo esvoaçante. Para ela essas definições cósmicas pouco importavam. Envolta num turbilhão, o seu corpo feito vulcão - explodiu, Espalhando pela atmosfera uma poeira fina Com um odor de flor de amendoeira. Pela encosta a lava arrefecia, lenta e pegajosa. No mesmo modo como entibiavam os lençóis Agora na cama abandonada. Pontapeou as roupas que a pressa da noite espalhou pelo chão, Apeteceu-lhe cantar. Observou o seu corpo nu ao espelho Ainda havia beijos a florear no seu peito. Sacudiu os cabelos para afastar o passado ainda morno Com a mesma subtileza de quem acaricia as pétalas de uma rosa.
E o segredo da noite passada voltava de mansinho Nas patas almofadas de um gato matreiro. Imagina que as paredes brancas do seu quarto (sempre gostou de paredes brancas), Nesta manhã despertaram com uma cor rosa pálidas… «as paredes podem manifestar surpresa e espanto» - sussurrou, «e mesmo algum pudor». Não escondeu com um sorriso malicioso desenhado nos lábios, Gemidos e sussurros ainda ecoavam por toda a casa.
Ela por fim desceu à rua. Avançou para a rua dos Murmúrios. Das janelas dos prédios sussurravam línguas maliciosas, Olhos por trás dos cortinados refogavam espertezas e maus-olhados Os gatos vadios pareciam receosos de tanta bruxaria, Escapavam-se por baixo das escadas do destino E procuravam desesperadamente serem pardos à luz do dia. Havia olhos que recuavam para o interior das casas Intrigados e espantados, No deslumbramento dos passos aligeirados Com que a mulher ia vencendo a calçada.
Ela interroga-se! Divaga nas palavras e nos pensamentos. A memória é tudo o que fica para trás? “Esta forma de andar de olhos no chão, Com receio de enfrentar o futuro, Como se este fosse o sol de uma manhã de primavera Encadeia e obriga-nos a fechar os olhos, E por isso caminhamos dia-a-dia de olhos cerrados. A quem levanta os olhos e enfrenta o futuro chamam utópicos. E as memórias? São essas a nossa retaguarda? Representam elas os caminhos percorridos? Ou são apenas velhas fotografias descoloridas? As memórias são as pétalas de uma flor espalhadas no chão.”
“Sim as memórias são pétalas lançadas ao vento… que se dane a flor”…
Já cresce a flor do silêncio no segredo dos meus lábios
Vou semear o silêncio nos meus lábios, E olhar os sinos difusos dos campanários Que badalam angústias de barcos naufragados. Pergunto aos pássaros mortos nas grades dos cemitérios, Se este meu caminhar não terá despertado em ti tantas duvidas, Agora que me faço à estrada Depois de ter submergido do teu poço Onde devagar entrei. Tenho no meu alforge, o doce paladar dos teus lábios, A manta suave da tua pele O cheiro das flores campestres do teu corpo. Não me tentes descortinar ou compreender Quando a minha silhueta se perde nas pernas entre abertas Das madeiras do banco do jardim. Não é justo, que perdida a guerra, Que desertado do campo dos mortos infindáveis, Me erga em estátua de soldado desconhecido No centro do jardim. Aqui, o meu suor é o orvalho da erva retardada. Hoje eu sei, pior que os jardins proibidos, São os jardins que perdemos nas mãos entrelaçadas. O sol da manhã afunda e retalha as rugas do meu rosto. Vou ao fundo do lago, Escondo-me entra as carpas vermelhas, Para que ninguém, nem mesmo tu, Encontre uma réstia do meu sorriso. Amanhã, quando pela manhã percorreres este jardim, Estou certo, folhas secas iram adejar aos teus pés. Sem saberes, no entanto, não serão folhas, Mas sim, estes meus poemas que me atrevo a escrever, Para logo de seguida os rasgar E os dar a comer ao vento. Já cresce a flor do silêncio no segredo dos meus lábios.
Ensejos de amor ardente Corpos segredam os seus desejos Suados, famintos, cansados Um verso, um poema, uma sinfonia de prazer Vagueio na orla do teu corpo Vivo as alucinantes fantasias Sons que desvendo, indescritíveis e lascivos Alimento da minha euforia Mãos desobedientes e tão atrevidas Tua língua na minha boca, entrega louca Minha ternura, meu sonho Fez-me teu, eu me dou a cada embate teu Caminhante, desbravo o teu interior selvagem Padeço em realidade inebriante Gemidos desesperados, incontidos Teu calor resgata-me da salubridade Dedos ávidos pelos teus segredos Minha boca no teu seio, Minha amazona em chamas, feiticeira, Faz-me poeta no teu corpo, homem na tua cama.
Amo-te nos teus gestos, Nos teus segredos, No teu sorriso, Na tua voz, Na tua poesia, Na escrita partilhada, Nas agruras do dia-a-dia, Amo-te naquilo que és. Sim! Eu te amo num todo, e em tudo... Amo-te no ar que respiramos, Na luz difusa da madrugada, Na noite e nos dias que te afastam de mim, Amo-te nos teus silêncios, Na tua exaltação, No teu ar de espanto quando uma raposa cruza o teu caminho, Amo-te quando fazes do palco de um teatro A rota de todos os mundos. Amo-te quando vencemos distâncias Nos tocamos e fazemos amor na colcha das palavras. Amo-te mesmo que por vezes eu me odeie se alguma dor te induzo. Amo-te no sol escondido na neblina da praia, No risco de espuma que as ondas abandonam no areal. Amo-te naquele banco de automóvel onde o teu corpo se junto ao meu e os nossos lábios se entreabriram num beijo em flor. Amo-te na forma como nos amamos, Há no teu corpo a serenidade da primavera, O cheiro a terra húmida quando recebe as primeiras chuvas, E eu, rosa do deserto vou florindo a cada gemido teu.
Meus poemas clandestinos Escondem-se atrás das cristas das ondas Esperam que a noite chegue. Em silêncio imploram à lua Que encante o farol que vigia a tua costa. Com papel de seda faço barquinhos de papel, Acosto na falésia do teu corpo que respira baixinho. Constaste-me do segredo - há uma gruta onde escondes um tesouro. Eu ingénuo, perguntei-te onde estava o mapa para o alcançar? Colocaste os teus dedos sobre os meus lábios, E num bordado em ponto cruz obrigaste-me ao silêncio, E sorrindo sempre me foste dizendo: - Desce, desce, desce devagar, Segue sem medo, Descobre calores e aromas, O meu corpo ao tremer, Quando os teus lábios tocarem os meus, Levar-te-ão ao caminho do segredo.
Olho-te de frente na outra face quadrada Da mesa do café onde pela primeira vez nos sentámos juntos, Os nossos braços dão encontro às nossas mãos, Os dedos num toque tímido tocam-se, Sentimos um lume brando nos nossos corpos. Sobre a mesa duas chávenas de café, um pacote de açúcar enrolado. Os nossos lábios desenhavam aguarelas de desejo.
Saímos, Vulgares exploradores, Sem mapa, sem bússola, sem olhar a estrela polar, Com vontade de descobrir recantos Torná-los nossos. Com a tua mão na minha mão, Vamos pela cidade feita em cada encontro dos nossos corpos, Há avenidas que percorremos rápidos, Ao deitar pelo chão as roupas que nos guardam os segredos, Há ruelas que os nossos dedos tacteiam, Há um beco a que me levas, Onde as paredes são de seda, Sinto-me lua no teu lago quente e húmido, Entrego-te a minha luz Que me devolves reflectida no teu êxtase.
Sinto-te como flor, Neste acto de te possuir, Bem-me-quer, malmequer, Pétala a pétala, Vou entrando em ti, As nossas bocas abrem-se, Abraças o meu corpo Sabes sempre, Adivinhas sempre, onde quero estar! Depois vem o Sol, uma onda no areal dos nossos corpos Em salpicos salgados.
Os meus olhos fecham-se nos teus olhos, Brinco com os teus cabelos, Uma brisa fresca caiu sobre os nossos corpos, Suavemente, A despedir-se de nós….
Deslizo pelo teu rosto Beijo-te os lábios E os nossos corpos adormecem.
Na tua ausência vou processando a minha morte. Sempre que partiste, eu morri um pouco De tal forma que agora só me resta morrer. Olho para as minhas mãos e já não as entendo como sendo minhas Os meus olhos já foram mar E são agora uma barca abandonada no meio do areal.
Não receio o fim de tudo, A menos que o fim seja o vazio dos teus braços. Alguém me disse que a minha morte será um novo princípio - Cada um bebe da fonte que quer - respondi! - Por mim, bebo da fonte onde não há medo do medo. No entanto, sinto medo… sabes? Os meus sonhos, já não são balões de hélio com mil cores e formas variadas. Mantive-os teimosamente presos a mim com finos cordéis. Há agora um medo profundo. De tanto os ter seguros na minha mão, Quando chegar o momento, Receio já não ser possuidor da capacidade de os largar, De os deixar viver sem mim. A minha demência transforma-se numa prisão E esta numa sombra, numa ausência.
Envelheço nos textos que vou descobrindo esquecidos em velhos cadernos. Rasgo os poemas para me libertar da ousadia Que um dia tive de me sentir poeta. Devolvo aos amigos, A todos os que esporadicamente me deram os bons dias E a todos aqueles outros rostos que nunca esconderam o seu ódio por mim, As suas palavras que usei em semente nas folhas brancas deste caderno. Cheiro o teu perfume de mulher amada Que guardei no segredo dos meus dedos. São facas frias a mergulhar nesta carne seca, A recordação dos beijos que não soube dar, Os beijos que deixei vazios numa fonte de água. A morte vingou-se em mim.
Todos os livros me angustiam. Os que li e os que não li. Alimentei em mim A ideia de um dia deixar o meu nome na lombada de um livro, Seguramente esquecido na prateleira de uma livraria. Prevejo, que essa será mais uma dessas ideias Que fui alimentando e que irá ficar pelo caminho, Tal como a árvore que plantei E para a qual já não terei tempo para que ela me olhe de cima.
As rugas, os cabelos brancos são abismos Para os quais vou perdendo a capacidade de ganhar impulso para os ultrapassar. Compreendo agora que acordei tarde Nesta ideia de esculpir em cada palavra os teus cabelos, Os teus olhos O teu sorriso maroto A tua pele rósea que os meus dedos aos poucos vieram a descobrir.
Quero-te herdeira do meu sorriso, Mesmo que o deixes abandonado numa parede de tijolos já desfeitos pelas chuvas. Desejo que ao olhar o mar, Nesse mesmo instante saibas que nunca te esqueci. Ali está o mar que vimos de longe, Ali está o muro de pedra da memória E aí estão todas as coisas que só a ti disse. Quero-te legatária de mim.
É de outono que me vou vestindo. As memórias, velhas fotografias Em que os nitratos de prata vão cedendo ao tempo E aos pouco caducas e castanhas Essas memórias vão esvoaçando Para além de mim. A pele enruga-se no acetinado dos cogumelos Que brotam silenciosos E depois desmerecem - Deste modo sinto o meu sexo. Desalento o desejo E espero que as chuvas outonais Levem nas águas furiosas dos rios renascidos O meu deleite. Sei, Sou apenas o uivo de um lobo A tartamelear as xácaras do tempo. Escuto os sons da floresta Nesta manhã de orvalhada, Os meus pés desvendam Os murmúrios das folhas secas, No meu caminhar na direcção do inverno.
Eu não tenho terra. A minha cidade não é uma terra. A minha cidade podia ser a minha terra. Mas quando regresso a ela Não tenho onde regressar. Falam-me em regressar às raízes. Na minha cidade até as raízes dão folhas Nos cotos dos plantámos chacinados Nos jardins públicos. Não sei da sensação de um dia voltar às raízes, Cresci na urbanidade, entre o espaço livre Das pedras da calçada portuguesa, Naquele espaço livre em que se vão depositando As beatas dos cigarros fumados até à exasperação. A minha cidade não pode ser a minha terra. Embora já tenha provado o sabor da terra. Brinquei como outros meninos que como eu não têm terra, Provei do chão a côdea do pão envolto na terra, Corri atrás de galinhas – doidas varridas Flausinas a bambolear as coxas - Onde depenicavam as ervas numa praceta de estacionamento. Eu não tenho terra, Não sei o que é saltar pelos campos, Sentir o paladar do leite acabado de mugir. Mas sei do sabor do ranço dos carapaus fritos Da taberna do carvoeiro. A minha cidade não tem o som da terra, O chiar choramingas das rodas dos carros de bois, A voz do avô Rambóia a conduzir Majestático do cimo da bebedeira os animais pachorrentos: - “OH! OH!” Se a minha cidade fosse a minha terra, Seria uma terra muda.
Vinte e um poemas rasgados Amontoados Num caixote de lixo Misturados Nas mais singelas contradições. Arrependimento? Talvez! De fita gomada na mão Estou tentado a juntar pedaço a pedaço A dar nova sustância aos poemas. Mergulho nesta espécie de poesia Que é a minha escrita Esperneio, faço o pino Ranjo os dentes Derrubo a prisão dos poemas Cada verso uma semente de bardana Com os seus pequenos ganchos Prendem-se-me à pele Mordem-me a carne. Comi da minha poesia Fixei um ponto no horizonte Senti-me profeta De poucas sabedorias Mas senhor das minhas filosofias Fiz escravas as formigas e nelas me fiz transportar ao teu encontro Mas não te encontrei em lugar nenhum Onde andas minha inspiração? Escrevo é verdade E considero-me culpado Mas, o que querem ganhei uma paixão Pela delinquência da escrita
Quero segredar às pedras, Às árvores, Às flores selvagens, Ao riacho que corre suave, Aos pássaros que cantam No silêncio de uma tarde verão, Que tenho saudades do teu corpo, Da tua pele branca e macia, Dos teus dedos aventureiros A percorrerem os abismos do meu corpo, Dos teus braços firmes Raminhos de oliveira, Das tuas pernas Margaridas que docemente me enlaçam, Do teu sexo, Frágil Papoila Junto ao meu trigo em ascensão e graça, Abraçados num ramo de espiga.
Por vezes sentimos que todos nos olham Afaga-nos o incómodo de sermos nós, Que tudo está mal. Desagradamos a todos os que se cruzam connosco. A roupa que vestimos atrapalha A camisa parece querer sair das calças, As meias escorregam e enrolam-se por baixo dos calcanhares, Os sapatos achinelam A sola emita o som irritante de um patinho de borracha, A camisola parece estar torta A malha deformou e encolheu após a lavagem, O casaco prende os movimentos. Tudo começa mesmo antes de sair de casa, O cabelo ganhou uma forma esquisita, Empinou-se para um lado, Acachapou em cima, encaracola atrás. Não há pente nem secador que consiga domar tão irreverente atitude.
Já na rua descobrimos que ocupamos espaço, A nossa imagem está por todo o lado. A nossa sombra acelera por baixo dos pés, Passa-nos à frente Expõe a nossa silhueta na nudez da calçada. Procuramos um refúgio nas sombras dos beirais E com isso temos o secreto anseio de nos livrarmos da nossa sombra. Mas, tanto esforço depressa se mostra inglório. Olhamos para o lado, Eis a nossa imagem assediante nas montras dos estabelecimentos E como um azar nunca vem só, Se na noite anterior choveu As poças de água são o espelho da nossa alma.
Cáusticos, não inventamos novos hábitos, A bica matinal no mesmo café de sempre Onde o empregado ao descortinar a nossa chegada na contra luz da entrada Em artes de contorcionista e de adivinho lança o nosso pedido para lá do balcão. E mesmo que não seja esse, nessa manhã, o nosso desejo, Embrulhamos a nossa vontade no papel pardo da delicadeza E aceitamos com um sorriso contrafeito o que nos é colocado na frente.
Quando pensamos que estamos a salvo de olhar a nossa imagem- o inevitável acontece! Na parede do café há sempre um espelho meio escondido por trás de garrafas Estrategicamente colocadas com o risco do nível a meio ( há um em papel amarelado com uma letra em tons de gordura que informa: "as garrafas expostas são para consumo desta casa"), A nossa expressão aparece reflectida no preciso momento Em que levamos a chávena à boca (e sentimos o velho incomodo de alguém que nos olha, admirado, Parecendo querer dizer-nos que estamos a enfiar o nariz na chávena), E se olharmos com mais atenção, O espelho reflecte outro espelho mesmo nas nossas costas, Reproduzindo até ao infinito o nosso rosto, Nesse momento somos a memória viva do rótulo do fermento Royal. Não vale a pena fugir ao inevitável.
Em dias assim, o mais ajustado É fazermos parte de um rio de gente anónima Sem nascente nem foz.