Uma carta de amor à moda antiga
Reconheço seu esforço. Imagino que teve tanto trabalho para escrever esta carta, mas suas palavras não puderam ser lidas. Queimei-as nas chamas do lampião de querosene. Poderia ter usado a chama de uma vela, mas não havia nenhuma calhando. Então... Se tivesse mandado um e-mail, tenho certeza que não jogaria meu note Vaio novinho na lareira. Penso que cartas são mais reais e românticas quando transformadas em fagulhas e cinzas.
Ler no papel sempre dá sono. Vislumbra-se logo de início o número de palavras que transportam a mensagem real. Acontece, na verdade, que a primeira impressão é da letra, cor da tinta, tamanho da carta, essas coisas que dão vantagem ao texto digital. Um envelope com endereço escrito sobre régua, letrinha feia de dar dó, já é um mau começo. Depois, aquelas folhas de cadernos espiral cheias de coraçõezinhos bregas, dobradas como um mapa do inferno. Meio ultrapassado, fora de modo, assim como lamber a cola o envelope para fechar. Nem falo nada sobre lamber o selo...
Mas, mesmo sem ter lido sequer uma única maldita palavra, tenho a certeza que mentiu por demais. Se bem que, na verdade, quando se tem a intenção de criar alguma falsidade, o discurso será vazio, não importa o meio. Não se criam certezas levando-se em conta o modo de enviá-las. O conteúdo sempre será considerado, mas para mim, não poderia ser mais impróprio ter transmitido pensamentos para o papel, indeléveis palavras devassáveis e de certo modo permanentes. Bom que não são resistentes às chamas.
Não sou anjo
Com certeza não sou anjo,
daqueles de asas alvas e camisolão.
Mas, me arranjo,
lavando diariamente a consciência com água e sabão.
Vez em quando vejo um fiapo de alface
preso nos dentes enquanto faço a barba,
mas resolvo tudo na mesa do café
depois de enfileirar guardanapos
e o açucareiro sobre a mesa.
Na saída enquanto ajeito o nó
da gravata listrada de tafetá,
aproveito para espanar o paletó
tirar uma mancha de pó.
Saio para a rua levando minhas fraquezas
ativadas desde o despertar.
Passo o dia normal e cadenciado,
até que no arrebol antes da lua cheia,
aproveito para espantar carrapatos
das asas entrelaçadas sob o paletó de tuide azul.
Saudades de um Dunhill
No silêncio gritante
da minha sepultura
únicas companheiras
são as névoas densas,
mesmo em pleno dia,
sob um céu de anil,
trazendo saudades imensas
de uma tragada num Dunhill.
vamos beber
vamos beber,
venceremos os embaraços,
o álcool correndo nas veias
aquece o peito
adensa músculos letárgicos
aguça sentidos.
sob a blusa apertada
os seios ficam mais densos
com o sangue que circula
regado à vodca.
estaremos prontos para o mundo
mas não se arrependa
dos acontecimentos.
sempre vai poder ouvir sinos
recostada em meu peito.
O que é mais importante?
Minha querida, agora me diga,
sem ouvir aquela sua amiga,
o que é mais importante:
na salva de prata brilhante
os cristais impecáveis perfilados
ou a bebida espumante derramando
num festivo brinde com nossos amigos?
Lírios choram
Corpo suado
na incansável procura obstinada
dos girassóis,
até já meio descrente,
tenho incidente,
incessante no rosto cansado
inclemente sol.
Amarga realidade,
sonhos não são dourados
o coração
também não é escarlate,
nem há
carmesim algum nos sorrisos.
Enquanto anseia
tua alma pela visão
de rosas
- plácidas rainhas do canteiro,
quedo-me somente
a contemplar a floreira
onde lírios
choram molhando as paredes.
cometa impudente
Acabrunhadas,
tímidas estrelinhas
- num canto de céu,
coram envergonhadas,
ante a lúbrica visão
da cauda em chamas
de um cometa impudente.
o ciclope corrupto
Diziam que era austero o ciclope,
exímio acrobata e filantropo,
impudico residente em Madagascar.
Corrupto, bateu recorde,
apondo rubricas pérfidas
nos projeteis inúteis,
sem caracteres válidos,
porém profícuo
em proveito próprio.
Agora posso te beijar
Agora eu posso finalmente
te dar um abraço.
Agora sei que livremente
posso te beijar,
fazer a mais efusiva saudação
Não vais me repudiar,
tenho certeza que não,
agora que vês a face dos anjos
estendida nesse teu caixão
peço licença
Peço licença
aos teus mortos.
Queria apenas deixar
uma coroa de flores
sobre as alegrias sepultadas
nas ilhas do teu esquecimento.