Poemas, frases e mensagens de Luizfeliperezende

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Luizfeliperezende

O CORAÇÃO DA PEDRA

 
Apesar de o homem ser tanto quanto possível,
diferente da pedra, o seu centro mais íntimo é,
de uma maneira estranha e muito especial,
bastante semelhante a ela (talvez porque
a pedra simbolize a existência pura,
estando o mais possível distanciada das emoções,
sentimentos, fantasias e do pensamento discursivo
do nosso ego consciente).

Carl G. Jung

Olho para o coração da pedra
e tento vislumbrar
o que ela traz de outras eras.

Olho para a pedra com simpatia
o que temos em comum:
minerais nos meus ossos
que se temporizam
e se dissolvem
sob as chuvas dos meus anos.

Ela resiste quase uma eternidade
deve se gabar
diante de minha brevidade.

E nós tão humanos
enquanto elas tão pedras
às vezes os reinos
não se encontram.
Os eretos, ilusoriamente geométricos
e elas, as curvas, disformes e estáticas.

Olho para o coração da pedra
e tento vislumbrar
o que ela traz de outras eras
até o meu tempo.

O meu tempo é sopro
enquanto reino, crente
que sou rei
ignorando que no final
dos meus dias
ela olhará com indiferença
pensando que em sete mil anos
é apenas mais um orgânico
que viu nascer, crescer, viver
e depois retornar ao reino mineral.
 
O CORAÇÃO DA PEDRA

O ASSOBIO MISTERIOSO

 
Uma pessoa me diz que São José dos Campos tem o maior índice per capta de cães no país. Ou seja, a cidade tem a maior taxa de cachorros por dono entre as demais cidades brasileiras. Diz que a sua afirmação é baseada em estatística séria.

-Sabe por que isto, meu caro?

-Segurança – presumo – os cães são vigias eficientes, não faltam ao trabalho, não reivindicam décimo terceiro, nem depósito no FGTS. Eles são mão de obra barata, ou melhor, pata de obra barata, é isto?

- Não, não é isto, meu amigo. O motivo é o fantasma da solidão! Os paulistas têm dificuldades de relacionamento. Em meu estado (Espírito Santo), as pessoas convivem com mais alegria e confiança entre si. Por isto, não têm neuroses, não frequentam consultórios psiquiátricos e nem transferem as suas carências para os animais.

E acrescenta aos seus argumentos:

- Os paulistas pensam demais em suas profissões. Esquecem do lazer e da vida pessoal.

Não tenho certeza sobre a opinião do amigo capixaba, mas uma coisa é certa e contribui para a sua tese: a quantidade de cachorros que existe em meu bairro. E apesar da amizade e simpatia que nutro por nossos irmãozinhos animais, não deixo de achá-los muito intolerantes!

E os inimigos deles são sempre os mesmos tradicionais inimigos: o gato, os serviços públicos (o carteiro, o caminhão de lixo) e algum semelhante que desfile pela rua, acompanhado do dono ou da dona que saem para passear no final da tarde.

A intolerância deles afeta a qualidade sonora do bairro. Quando o caminhão de lixo surge na rua entoando uma vinheta ecológica sobre o lixo reciclado, os cães disparam como uma orquestra sem ensaio, expressando o protesto deles e a hostilidade para com a utilidade pública. Eles nem levam em conta a importância da campanha ecológica promovida pela prefeitura.

Os solos caninos são diversificados. Um deles parece possuir um botão automático que quando é acionado, o latido sai contínuo, igual, incisivo e torturante. Outro cão uiva um blues lúgubre e agourento que até dá arrepios na alma.

Em meio a este caos sonoro, na pausa dos cachorros, ouço um assobio distinto e peculiar. O assobio entoa uma melodia que não é alegre nem triste como o poema da Cecília. Não é qualquer sucesso que a mídia nos bombardeia. É genuinamente original. É esperançoso como se alguém quisesse dizer que não perdeu a guerra, apesar de tudo que possa estar acontecendo.

O assobio não tem hora pra surgir. É no início da tarde ou no meio da noite quando já me deitei pra dormir.

Fiquei curioso. Quem é este ser que me lembra a lenda do flautista de Hamelin? Quem anda pelas ruas como um poeta, assobiando uma bela melodia?

Quem é esse louco, esse desocupado?

Numa tarde de sábado, o assovio soou pela rua. Corri até à varanda e vi um homem que vinha puxando um carrinho de feira. Uma mulher o seguia a alguns passos atrás e um cachorrinho também os acompanhava.

O homem ia verificando nas lixeiras das casas e dos prédios, algum material que poderia ser reciclado como papelão e vidros. Esse material iria vender com certeza em algum ponto de coleta. Era um concorrente do caminhão da prefeitura. Catava o que valia a pena nos lixos e empilhava sobre o carrinho.

Quando passou pela minha varanda, olhou para cima e percebeu que eu o observava. Tentei disfarçar, já era tarde, havia reparado a minha indiscrição.

Mas, logo retomou o assobio altivo, orgulhoso, com aquela melodia de quem não perdeu a dignidade. E seguiu o seu caminho com a mulher e o cachorrinho. O cachorrinho aumentou a velocidade, assumiu a frente, empinou o rabo e o pôs a balançar como uma bandeira em movimento.
 
O ASSOBIO MISTERIOSO

O LOUCO MANSO

 
Foi na antiga Ubatuba, ainda na década de 60, é o que me diz um amigo que tinha casa no litoral. Era difícil o acesso à cidade. Ubatuba ainda era um vilarejo.

A vidinha de Amaro não tinha qualquer novidade. Passava os dias dentro de casa. Ia ao quintal, corria atrás das galinhas e depois ficava sentado numa cadeira debaixo de uma mangueira tentando pegar mosquitos no ar.

Precisava de acompanhamento para ir ao banheiro, pra se lavar, pra se vestir e pra comer.
Algumas vezes foi levado à praia pela família para colocar os pés sob as espumas das ondas do mar. Mas Amaro nunca saiu de Ubatuba. Não teve amigos. Nunca namorou e nem experimentou o corpo de uma mulher. Nasceu daquele jeito e ponto final.

Às vezes ficamos sem entender, porque há vidas assim. Porque Deus permite existências cheias de privações. Isto nos faz refletir sobre as graças que recebemos. E também nos faz pensar sobre os destinos. Há por detrás dos destinos, um mistério. E cada um tem o seu que é intransferível.

O batente da janela tinha marcas dos cotovelos de Amaro. Depois de um dia quente, após o jantar, ele colocava os cotovelos sobre a madeira e fazia um discurso desprovido de lógica e concatenação para os ouvidos normais.

Amaro xingava. Soltava impropérios. Mexia com quem passava na rua. Não falava coisa com coisa. Estabelecia monólogos. Tornava a xingar. Parecia agressivo.

Quem o conhecia não dava bola. Passava quieto. Fazia parte da rotina da cidade. Amaro ficava horas na janela. Depois de muito esbravejar, estava apaziguado e a sua mãe o colocava para dormir antes das 9 horas da noite.

Naquela hora, na antiga Ubatuba dos caiçaras, o mar bramia e soprava sobre a cidade silenciosa sem os ruídos dos automóveis e da civilização. E sobre o mar, as estrelas piscavam no imenso céu escuro.

Naquela hora, Amaro simplesmente dormia o tranquilo sono das crianças e dos anjos.
 
O LOUCO MANSO

TEMPEST

 
O interior do homem
imita a natureza
ou é o contrário?
por que dentro
também temos
vulcões
ventos
dias calmos
ou turbulentos
e tempestades...
tempestades!
e como chove...
como chove o coração!
 
TEMPEST

O DESTINO DA LOUÇA

 
A criança chorava com febre
Dormiu no mesmo lugar que os ratos
e a mãe quase não dormiu
O chefe da fábrica
não deixava passar o menor defeito
nos pratos
Além de pagar mal
não tinha a menor consideração
pelas horas que ela dava o sangue.
E então, ela o maldisse do fundo do coração.

Depois de embalada no container,
as louças vieram balançando
no navio no meio do mar
Antes disso, no porto
os marinheiros foram
se divertir com as moças.
Falaram até em greve, motim,
pois não tinham o dim-dim
para escolher as mais graciosas.
Um dos tripulantes
se envolveu com Chen Shou
a amante de um traficante
que tinha grande negócio
de ópio.

No quarto com cortinas de bambu
ele dormiu em tatame
e além da clara cútis
viu que ela tinha uma borboleta azul
tatuada na púbis.
Amarrado em arame
amanheceu boiando nas águas escuras
de Xangai, na parte sul.
Não sabia que Chen Shou
quer dizer suave manhã.

Após o jantar
sob a água e o sabão
a louça
escorregou de minhas mãos
e se espatifou na pia.
Foi quando prestei atenção
nos arabescos do prato
Pensei nas pessoas que bolaram
esse desenho de flores
em sua arte utilitária
Foi também quando li num dos cacos:
Made in China
Foi aí que imaginei essa história
que acabei de contar nessas linhas acima.
 
O DESTINO DA LOUÇA

FALANDO DE ARTE

 
Filho,
de tudo fiz um pouco:
escrevi poemetos
tentei sonetos,
instrumentos, aprendi
e toquei alguns minuetos.

Mas ainda acho
a mulher,
a mais difícil
das Artes!
 
FALANDO DE ARTE

O WOODY DA PADARIA

 
Toda figura famosa costuma ter o seu sósia. Estes sósias estão espalhados pelas ruas do mundo. Às vezes vamos encontrar numa cidade qualquer do interior, uma pessoa que é a cara do presidente dos Estados Unidos.

Na infância, alguns destes sósias chegavam a me confundir. Havia um senhor que era igualzinho ao "comedor de hambúrgueres" das histórias de Popeye. O que é mais perturbador ainda, misturar personagens de histórias em quadrinhos com pessoas da vida real.

Eu ficava meio pasmo quando via Mahatma Ghandi subir uma escada presa a um poste para fazer algum reparo na rede elétrica.
Numa padaria, próxima à minha casa, encontro sempre o cineasta Woody Allen trabalhando como caixa.

- Bom dia, Woody!
- Bom dia.
- Woody, você gosta de cinema? - pergunto. E ele balança a cabeça, como quem diz mais ou menos.
- Quais tipos de filmes, você costuma assistir?
- Os filmes de Jean Claude Van Damme e Arnold Schwaznegger.

Neste momento, nossa conversa é interrompida e alguém grita do balcão:
- Gol do Verdão!
Woody comemora. Bem, Woody Allen é palmeirense e gosta de filmes com muita adrenalina. Além disto, o que mais faz na vida?
- Minha curtição são jogos eletrônicos.
- E você, não gosta de música? O Woody Allen verdadeiro gosta de jazz e toca trompete em alguns bares de Nova York!
- Gosto de música, sim. Zezé di Camargo e Luciano.
- E namorada, Woody, você tem?
- Sou noivo - ele responde enquanto conta o dinheiro do caixa com muita habilidade.

O que eu tenho com isso - pensei. Estou bisbilhotando muito a vida particular de nosso amigo Woody Allen. Celebridades não gostam de ter a privacidade invadida.

Neste momento, entra na padaria uma moça com traços delicados e pede sorvetes ao balconista. Percebi que Woody ficou embaraçado com a presença da moça. Aí ele olhou nos meus olhos e confessou em voz baixa:
- Ela é a minha grande paixão! E é irmã de minha noiva. O que eu faço?

Respirei aliviado. Agora faz sentido. Em alguma coisa a cópia se assemelha ao original. Uma vida emocional atribulada, pelo menos isto eles têm em comum.
Deixei a padaria e da rua ainda escutei os torcedores comemorarem um gol contra o Palmeiras.
 
O WOODY DA PADARIA

BLANCA LUNA

 
blanca, blanca luna
sai da penumbra
e me deslumbra
na noite escura
com a tua alvura

blanca, blanca luna
no céu desliza
na terra me realiza.
 
BLANCA LUNA

O MISTÉRIO DE UM ROSTO

 
Se eu penetrar este mistério
será o portal?
Será o amor, a silhueta
de um belo rosto?

Sentirei algum desgosto?
Se eu penetrar este mistério
se desvendar este mistério
perderá a magia?
Ou talvez esse rosto
ficasse sob um véu
sempre sob um véu
o céu pode esperar
restando aos olhos
a janela da alma
a função de condensar
toda a força de um olhar.
 
O MISTÉRIO DE UM ROSTO

PAIÉRRALI

 
Ninguém pretendia ficar “zapeando” diante da TV no quarto do hotel. O grupo que estava ali era formado por cientistas e pesquisadores de várias partes do mundo que participavam de um congresso científico.

E se formou a roda em torno de uma mesa: conversas soltas, discutindo-se assuntos diversos e até se buscando uma certa descontração.

Meu compadre Brandão conversava com alguns físicos. E fez uma pequena provocação:

-Vocês físicos estudam o Maya que para o oriental é a ilusão. Todo este mundo fenomênico é Maya.

- Ou seja, vocês estudam a ilusão.

- Como pode um cara estudar a explosão de uma estrela que aconteceu há dois milhões de ano-luz?

- O outro, um indiano, estuda poeira cósmica!

- Isto é trabalho? Trabalho pra mim tem que ser algo mais prático. Assim como o médico que opera o
paciente, o motorista que dirige o ônibus e o contador que contabiliza os patrimônios de uma empresa. Bens palpáveis: ações, apólices, contas, apartamentos, carros...

E Brandão continuou a argumentar:
- O que muda em minha vida, se uma estrela explodiu há dois milhões de anos-luz?

Um dos físicos respondeu calmamente:

- A ciência pura não tem que responder imediatamente a fins utilitários. Mas o que se estuda, pode um dia gerar alguma descoberta importante para a humanidade.

Mas aquele grupo não queria discutir propriamente ciência naquele momento. E o grupo começou a ressaltar a cultura de cada um dos representantes ali presente. Começou com o italiano. E temos uma afeição especial pelos italianos, tão presentes na formação do Brasil pela miscigenação, cultura e culinária. Digo que sou descendente dos Thiengo para o italiano que parece um pouco com o Omar Sharif quando contracenava com a Sophia Loren. Aliás, Omar Sharif nasceu no Egito. Conhece algum Thiengo na Itália?

- Ah!! Muitos – ele responde.

- Um bando de picaretas?

- Non, non, tutti buena gente!

Italianos, imperialistas na era dos Césares, mas deixaram muita coisa boa para o mundo: Da Vinci, Galileu, Fellini, macarroni, cinema Paradiso de Giuseppe Tornatore. Ora, aí está a alma latina. Humana e emocionada. Isto está fazendo falta pro mundo.

E também nos lembramos de Roberto Bagio.

- Viva Roberto Bagio pelo pênalti perdido na Copa de 94 e o Brasil foi tetra!
- Agora vamos falar sobre a Grécia! E olhamos para o cientista grego que queria conhecer a constelação do Cruzeiro do Sul. Fizemos um esforço pra mostrar-lhe a constelação. É uma coisa importante e ele queria aproveitar a oportunidade de estar no hemisfério sul. As luzes remotas da cidade atrapalhavam um pouco a visão.

Será pouco falarmos em Platão, Sócrates, Cícero, Demócrito como as contribuições da Grécia para o mundo?

- Viva os filósofos gregos!

Na outra extremidade da mesa, estava um norte americano com um boné na cabeça. Escutava calado, sorria e acompanhava as conversas. Perguntamos se ele estava conseguindo acompanhar a nossa conversa num inglês latinizado.

- Yeah! Yeah!

Assentada sobre a mesa estava a mulher russa que se chama Marina, como na música do Dorival Caymmi. Era uma mulher loira e alta, assim como penso que deve ser uma russa. E falava, e argumentava como quem tem vodca correndo no sangue.

- Vamos falar da Rússia. Quem leu Dostoiévsky? – perguntei.

Ninguém se habilita a responder que leu Dostoiévsky, com a exceção de Marina. Ela leu por obrigação, no colégio, assim como éramos obrigados a ler José de Alencar e Machado de Assis, no Brasil.

E alguém se lembrou de falar em Yúri, o primeiro homem a ver que a nossa casa é azul e redonda. Marina diz que ele falou outra coisa que foi marcante, além de dizer que a Terra é azul:

- Paiérrali!

- Paiérrali? O que significa isto?

- Há de seguir, a pé, a cavalo, de moto ou de caminhão. Não importa como. Há de seguir, sempre.

Tiro a carteira do bolso e anoto num pequeno pedaço de papel a palavra e o significado.
Não sei onde a conversa mudou de rumo e caiu no desvão da religião, aquilo que está presente em
cada povo de uma forma particular, íntima e inexplicável.

Marina foi firme na afirmação: - Coca cola também é religião!

- I don’t agree! – rebateu o norte americano.

- Coca cola também é religião!

Meu amigo Brandão falou que aquilo era o reinício da guerra fria. Era de madrugada. As plantas respiravam o orvalho da serra e os galos já anunciavam o dia. Após uma foto com todo o grupo, um rapaz mexicano de cavanhaque e sem bigode, falou que “fotografias aprisionan el alma, como hablan el indígenas”..

Estávamos todos com as almas aprisionadas. Mas devíamos seguir:

- Paiérrali!

- Paiérrali! - Todos responderam alegremente.
 
PAIÉRRALI

EUS (à la Pessoa)

 
Olho fotografias de 20,
30 anos atrás
Vejo os eus que não existem mais.
Vejo como se visse
amigos que não encontro
há muitos carnavais.

Olho as fotografias
e vejo
esses eus
que um dia foram meus!
 
EUS (à la Pessoa)

COISAS PARA LEVAR

 
Deste planeta, se pudesse,
gostaria de levar algumas coisas:

O cheiro de terra molhada no início da chuva.
A visão esplendorosa de uma noite estrelada.
E o som da passarada ao amanhecer.

Se pudesse, gostaria de levar
algumas coisas deste planeta:

O cheiro, a cor, o gosto de muitas frutas:
a manga-rosa, o abacaxi, o pêssego e a uva.
A visão do mar - ah olhar para o mar - sem parar.
E o som da algazarra da criançada quando sai para
o recreio da escolinha municipal.

Não vou me estender na lista das coisas que gostaria
de levar.
Esses itens acima já seriam um bom início.
 
COISAS PARA LEVAR

CORAGEM

 
Paina desgarrada
da árvore
voando sozinha
no céu azul de inverno

que aventura
que coragem!
 
CORAGEM

APEGO MATERIAL

 
Se eu tiver que partir
vou chorar por deixar
meus bens materiais.
São os meus livros
de poemas:
Cecília, Pessoa, Drummond, Vinicius
que habitam o criadinho de cabeceira
e leio no aconchego sob a luz do abajur.

Se eu tiver que partir
vou chorar por deixar
minha violinha de pinho liso
e cintura feminina
meu violão de voz doce
e companheiro de todas as horas.

Ah... os bens materiais
Se assim posso chamá-los.
Como ainda estou preso a este mundo.
 
APEGO MATERIAL

PELOS TRILHOS DE BOSTON

 
Orientais e latinos na estação
esperando o bonde.
Um casal me olha
O marido me lembra Pete Townshend,
guitarrista do The Who.

O bonde barulhento
trafega pelos trilhos de Boston
É a primavera da Nova Inglaterra
se parece com o inverno
do meu sul de Minas.

As moças claras usam shorts curtos.
Com o olhar do estrangeiro curioso,
observo este povo.
Pelo menos três pessoas no vagão
estão debruçadas sobre livros.
A moça lê um romance.
O rapaz lê sobre o nazismo.
E um outro rapaz lê “Viagem a Ixtlan”,
de Carlos Castaneda.
E uma moça
carrega um livro do poeta T.S. Eliot.

Eu me equilibro com as malas
e o motorneiro, um homem negro,
reclama dos passageiros que obstruem
as portas do bonde lotado.

A moça do livro de T.S. Eliot sorriu e conversou comigo:
- é estudante de literatura no Boston College.
Num outro banco, vejo um homem de gravata borboleta
parece professor de química (em Harvard?).

Boston é a terra dos Kennedy
e também dos fantasmas.
O escritor Jack Kerouac é de bem perto:
Lowell.

Andando a esmo, entrei no cemitério.
Num dos túmulos tinha um canhão
da Guerra da Secessão – o herói descansa lá
sob as árvores e o canto dos pássaros.
Procuro o túmulo de Edgar Allan Poe,
do poema do corvo.

Apenas alguns rouxinóis
saltitavam e cantavam no cemitério.
Subitamente
um passo-preto surgiu a minha frente
e me guiou de volta pra rua.
 
PELOS TRILHOS DE BOSTON

NAVEGAÇÃO

 
há muito mar
no navio

há muito vento
no ar

e o vento
o vento correndo no mar

e o tempo
o tempo
mudando
o tempo todo.

há muito mar
no navio...
 
NAVEGAÇÃO

ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE

 
ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE
 
Não fui tão monstro como supôs a memória
ebriada de rancor.
Não morri das espadas como minha consciência
insistia em construir meu caixão de remorsos.
Mas jamais fui herói.
Fui sempre pintado com a cor das tintas transparentes
e sendo assim,
ninguém jamais pensou no caos vivo que corria dentro de mim.
Nem no pânico e terror das minhas emoções de bambu
que rangiam ao vento.

Deslizei, não sei como, por caminhos pouco comuns
tais como encanamentos de pias, bueiros, porões & tetos.
Tiro a camisa e torço o sangue das trilhas sem glória.
Não repetirei quantas vezes morri de fome e de sede.
Quantas vezes minhas mãos nada tinham a afagar.
Não falarei da neblina de tédio que cobria a minha cidade.

Lembrarei apenas do menino que nasceu puro amando
o colorido das manhãs azuis...
Do menino que não disse palavra e viveu
o eterno verão de um pônei selvagem.

Vim a nascer depois um cacto calado e paciente na espera do amor.
Crescia em mim a natureza da solidão
dando liberdade para que ocupassem o meu corpo
todo o mato, galhos & cipós.
Eles não faziam mal algum, nem incomodavam o coração
que já estava igual a uma velha casa fechada e abandonada
no meio das jabuticabeiras.

Moisés seguia pelo deserto guiado por uma nuvem
e nós, na condição de mendigos
apenas abríamos as bocas de misericórdia
quando chovia o milagre.
Eu amava a moça que perseguia os mistérios da Lua.
As estrelas se alegravam em nós
no alto dos montes.
Os ufos nos cumprimentavam à distância.

Mas ainda sinto pelas noites perdidas no mofo
em que meu corpo era como um armário velho e envergado
e meu cérebro funcionava como uma maquininha burocrática.
Bichinho social?! Me esqueci das essências:
- Que navegar no mar do peito, é muito mais necessário.
- Que navegar nos teus olhos é muito mais necessário.
- Que amar é muito mais que necessário!...

Ainda me inspiro às margens do Verde.
Ainda construo polígonos de estrelas às margens do Verde
e vejo a canoa deslizar.
Ainda faço guerra às margens do Verde.
Minha aldeia é tolhida e mesquinha como eu mesmo.
Mas a minha certeza no céu é bem maior.
E além do mais,
sempre terei que me ajoelhar diante do Princípio.
 
ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE

O DIA EM QUE VINÍCIUS DE MORAIS CANTOU EM TRÊS CORAÇÕES

 
Houve uma época que queria ser Vinicius de Morais. Era o homem que vivia a poesia integralmente. Essa minha crise de identidade também se estendeu a John Lennon. Mas aconteceu primeiro com Vinicius.
E Vinicius foi a Três Corações, minha cidade natal. O ano? 1976. Ainda em plena ditatura. Onde? No cinema da EsSA, dentro do quartel – até hoje o único teatro da cidade. Os músicos: o violão do Toquinho, um baixista (não lembro o nome) e o baterista-compositor Mutinho (muito elogiado por Tom Jobim). Toquinho estava de cabelos longos (como era comum na época).

Antes de Vinicius, levaram para o palco um carrinho com uma garrafa de whisky, copo e um baldinho de gelo – como se fosse uma anunciação – uma certeza de que o poeta entraria em cena. Diziam, que além da voz, o whisky era o seu outro instrumento.
Quando Vinicius surgiu e se acomodou diante da mesinha, tive a impressão de que uma luz escura se abatera sobre o poeta. Estava lá o artista com os seus pecados, seus amores rompidos, suas idas e vindas. Ali estava um homem erudito, mas que carregava todo o peso e a experiência de histórias e desencontros.

Mas o show transcorreu leve. Os sucessos se seguiram: Regra Três, Pela Luz dos Olhos Teus, Tarde em Itapoã, Testamento, Gente humilde, Samba da Bênção, Samba da Volta, Sei Lá a Vida tem Sempre Razão e muitas outras.

Como já falei, era tempo de ditadura. E o show foi num quartel do exército. E eu sabia que o Samba de Orly (parceria com Chico Buarque e Toquinho) tinha duas versões, uma delas autorizada pela censura: “Vai meu irmão /pega esse avião / você tem razão de fugir assim / desse frio / mas veja o meu Rio de Janeiro / antes que um aventureiro lance mão. Pede perdão, pela duração dessa temporada” –. E a versão não autorizada dizia tudo igualzinho com a exceção que concluía diferente: “Pede perdão pela omissão, um tanto forçada” – que se referia ao exílio no exterior que muitos artistas foram obrigados para não serem presos no Brasil.

No ar, uma tensão quando chegou o momento de cantar o verso. Naquela época não havia a liberdade que hoje temos para falarmos ou postarmos na internet o que quisermos. A menor crítica ou provocação ao regime poderia render repressão, prisão ou até tortura. Mas Vinicius não se intimidou. E lascou com todas as sílabas em bom som, a versão proibida: “Pede perdão pela omissão, um tanto forçada”. O poeta deu o seu recado. Saímos do show com a alma lavada.
 
O DIA EM QUE VINÍCIUS DE MORAIS CANTOU EM TRÊS CORAÇÕES

PORCELANAS CHINESAS

 
Tuas porcelanas chinesas
estão diante dos meus livros
o que faço, um cara rabugento
como eu
que procuro um livro
e deparo com as tuas porcelanas
chinesas?

como não havia reparado
nesta delicada arte
de figuras coloridas:
um pavão, aves, flores
e a moça
de quimono escarlate

que troglodita
sou eu
que não havia reparado
a arte bonita
de tuas porcelanas chinesas?
 
PORCELANAS CHINESAS

QUINZE MINUTOS

 
Chego à rodoviária. Faltam quinze minutos para a partida de meu ônibus. Às vezes, quinze minutos podem representar muito tempo para quem está ansioso para viajar.

Não dá para fazer um lanche com tranquilidade, temos que ficar conferindo a hora no relógio. Normalmente o entretenimento é observar as pessoas que partem e as que chegam. É um instante de abstração. E minha abstração é quebrada quando um senhor se aproxima e pergunta onde fica a plataforma do ônibus que sai para Roseira.

- Plataforma vinte e cinco, senhor, é a próxima.

E subitamente, este senhor começou a dizer que estava com muitas saudades de sua esposa, falecida há um ano.

Olhei com mais atenção em seu rosto e pensei: deve ter tomado umas "canjiribas" a mais. Ele tinha os olhos vermelhos, de quem havia chorado, mas não distingui evidências de embriaguez.

E continuou falando que nasceu em Minas Gerais, na cidade de Cristina. Veio criança para o estado de São Paulo. Trabalhou a vida inteira no campo, cuidando do café, tirando o leite das vacas. Ficava muito tempo no mato, feito um bicho, vinha pouco à cidade. O filho é motorista de caminhão, o que considera uma profissão arriscada, fazendo frete na Dutra.

E queixou-se que sentia muita falta da mulher. Viveram muito bem juntos, trinta e cinco anos, um cuidando do outro. E fazia um ano, naquele dia que ela o deixou sozinho neste mundo.

E depois se desculpou pelo desabafo e com a passagem na mão se encaminhou para o ônibus que havia estacionado.

Fiquei pensando na amizade entre cônjuges ou amantes. Toda a amizade, é muito importante, é claro. Mas, fiquei pensando nessa coisa que costumamos chamar de companheirismo que acontece entre duas pessoas. Tristeza maior dos que perdem esta relação é a dos que nunca a experimentaram.

E também me questionei se não tenho cara de padre ou de psicólogo. Não é a primeira vez que uma pessoa desconhecida se aproxima e revela as suas particularidades.

Em menos de quinze minutos, no final de uma tarde de sábado, um cidadão me conta a sua vida e as suas amarguras. Um cidadão que provavelmente jamais verei. Realmente, quinze minutos pode ser muito tempo.
 
QUINZE MINUTOS

Luiz Felipe Rezende