Poemas, frases e mensagens de Bruno Sousa Villar

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Bruno Sousa Villar

Indie

 
O amor dura rigorosamente 3 minutos e 30 segundos,
mais ou menos a duração dos limites do que pode ser
entendido de uma clássica canção pop.

Em tempos áureos foi um hit com direito merecido a muito airplay,
circulava exaustivamente em repeat pelas vagas hertzianas,
fez furor e culto, angariou groupies dirigentes de um clube de fãs
respeitosos e devotos da sua discografia e das apresentações ao vivo
que guardavam religiosamente bootlegs caseiras de raridades, lados-b
e inéditos.

Era indie rock dançável mais ou menos alegre mais ou menos triste
mais ou menos absurdo como sempre vi os pavement.

Hoje quando se vasculha a montanha de pó frio da memória em
busca dos discos preferidos percebe-se que a fnac já não os vende
remetidos foram ao fundo de catálogo de uma label que mal subsiste
no mercado fonográfico actual, à custa da carolice pelas velhas preciosidades.

Se procurarmos pacientemente será possível desencantar
um exemplar imaculadamente conservado de um
7 polegadas amarelo limão; uma peça de coleccionador
que jamais soará no gira-discos doméstico dos puristas do vinil,
destinada a engrossar a prateleira da estante de um acervo
de um museu de vícios privativos e intransmissíveis.
 
Indie

Longe do Coração

 
mulher velha. aposentada. mãe de três. padecida de dores. costais. era muito velha. a mulher. via mal ao longe. precisava de óculos com lentes. progressivo era o longe. precisava de apêndices ópticos. a mulher.não tinha apêndice. "também não serve para nada". dizia. A mulher.muito velha. via muito mal ao longe. mas não gostava dos óculos. como o apêndice que não tinha. ignorava que tudo faz falta.A mulher.muito velha.com dores costais muito velhas. por vezes esquecia-se dos óculos. pousados na mesa de cabeceira. com os medicamentos da manhã. A mulher. muito velha. não lhe doíam as costas. não tomou os medicamentos. estava esquecida da dor. não servia para nada. a dor.como o apêndice. os óculos esquecidos na cabeceira.ora a mulher. esquecida das costas. muito velha. via mal ao longe e. algures no poema da mulher muito velha. um pássaro madrugador cega.
 
Longe do Coração

Pelos Ares

 
Os dias reciclavam-se em larga escala,
como os livros tenebrosos de tão maus,
que não doavas a instituições de solidariedade
social acolhedoras de órfãos que mal sabem ler e escrever.

Quiseste queimá-los os livros e as pessoas
neles, de tão mau o seu teatro tenebroso,
mas os livros ardem mal, e as pessoas há muito
se consomem pelas línguas dos livros,mas não
são pessoas, não são fogo, ou melhor, não são fogo
de queimar, são fogo pálido ou fumo nauseabundo, como os dias,reciclados o fumo branco das manhãs, das noites o fumo negro.

O fumo é o meio termo entre o líquido
e sólido,gasoso é o seu sismo,na escala
de richter quando se suava mercalli,
efervescente o seu reverso,fumo,fuga de gás
em habitação de amantes
a tomar um banho de água tépida,
os corpos a servirem de esponja e hidratante,
shampoo sobre as palavras opacas,
diariamente lavadas por isso de raiz apodrecida,
como a água,morna,como os dias,
todos reciclados,como os livros e as pessoas nos livros.

Que são tão ruins quanto as de fora dos livros,
e ardem mal como os livros,e são fumo,
fuga do gás dos amantes esponjosos,
hidratados pela água morna,como os dias,
a fuga de gás reciclado em larga escala,
a água,morna,de argumentação tíbia,morna,frouxa,
como os livros,arde mal nos corpos hidratados
dos amantes gasosos,não aquece nem arrefece.

São diplomáticos, ficam-se pelo meio,
mas eis senão quando,como depois do fogo,
alguém se lembra de acender um cigarro
de recompensa e vai tudo pelos ares,
menos os corpos gasosos em fuga
das palavras da raiz apodrecida dos amantes,
como as pessoas e os livros,ardem mal,
diariamente lavados,pela água morna,
não aquecem nem arrefecem.
 
Pelos Ares

Nocturno em Sódio Maior

 
Era um músico que não reciclava,
promovia a inseparação das notas
melódicas dos sons dissonantes,
e chorava desprotegendo
o rosto do ambiente,com
instrumentos estranhos:
alaúde;kora;e tablas.

Era um músico que quando tocava,
na assistência da grande sala de
concertos ouvia-se o choro por inteiro,
sódio e solidão perfeitamente irmanados.

E algo tremeluzia no fundo do arco
das suas íris,pois quando chorava,
o resultado final corria em forma
de rio selvagem,homogeneidade indomável
de dor e alegria rumo à ponta do farol
da língua,guia turístico do sal.

Era um músico crente de que quem recicla
sofre pior,porque incompletamente.
 
Nocturno em Sódio Maior

Quase Barcelona

 
Um dia comprei um livro.
O título era "A rapariga que morreu por um livro"
Era uma vez um rapaz nu e era uma vez uma rapariga nua,
Era uma vez um jardim,
Era uma vez um banco de jardim
O rapaz nu e a rapariga nua liam um para o outro livros de poemas
O rapaz nu lia para a rapariga nua
Era uma vez uma rapariga que morreu por um livro e acordou
no jardim rodeada de centenas de pavões
Era uma vez o rapaz nu e o jardim
Era uma vez o rapaz,era uma vez o jardim
O rapaz não era nu e não era livros de poemas e não era a rapariga nua.
Um dia comprei um livro
O título era
"Sou o banco de jardim rodeado de centenas de pavões"
 
Quase Barcelona

Mestres Ilusionistas

 
Encontramo-nos dentro das portas,

recolhidos em retiro espiritual
de umas seiscentas páginas russas,

Há uma chamada,corremos a capturar

a voz que o ouvido telefónico omite.

Ao fim do terceiro toque,desliga-se o silêncio
na surdez do sinal.

A felicidade é por certo um engano,e em matéria de magias,favorecemos mais os mestres ilusionistas russos.
 
Mestres Ilusionistas

Se tu quiseres

 
Se tu quiseres
podemos fingir

podemos sofrer
um acidente

de viação
na estrada
de piso molhado
de silêncios
e recalcamentos

ladeira abaixo

e eu não te dizer
antes
de sermos
desencarcerados:

-Sempre te odiei.

enquanto ouves
as últimas palavras
de um moribundo

segurando-me a cabeça
ensanguentada.

Se tu quiseres
podemos fingir

posso dizer-te ave
reprimindo
o gosto
pela caça.
 
Se tu quiseres

O Carregador de Violoncelo

 
Como este violoncelo
as costas carregam,
parte de um corpo sentado
sobre o selim de uma
bicicleta ferrugenta
em idade de reforma,
o grilo,

sépia falante das nossas
consciências de cães de palha
perdidos em teses e explicações,
enverga um smoking de retalhos
manchados e cartola que crocita,
abre o debate sobre a religião,
a censura,a guerra,os crimes
contra a humanidade,
as sevícias semânticas,

carregam o violoncelo
as costas,
o chapéu crocita,
a bicicleta voga contadora
entre a poeira sépia
da longa e sinuosa
estrada perdida e
a lonjura fulgurosa
da espuma das estrelas,

voga desgovernada
entre o infinito
onírico e o real,

ferrugenta,velha,
antes torce que quebra,
e conta histórias.

Inspirado parcialmente pela fotografia do Henri Cartier Bresson que serve de meu actual avatar.
 
O Carregador de Violoncelo

Anti-Aderente

 
Sabes,sei que é estúpido,
romântico como eu,e o
romantismo é coisa

passadista,como um velho
lembra uma bafienta moda
obscurantista deus,pátria,
família.

Mas a minha pele sofre de
conjuntivite: ama-te autocolante.

eu sei,mas não me incomoda que

exerças o teu
direito
de opção por frigideiras e outras
superfícies anti-aderentes,

em detrimento das lágrimas quando
fuzilam à queima-roupa os nossos
corações desvendados encurralados pelas
paredes do corpo.

Autocolante é erro propositado,obrigado.
 
Anti-Aderente

lugares santos

 
Voltei a casa

como se vai

pela primeira vez

virgem

em peregrinação

a um lugar santo

por devoção ou

por cumprimento de

um poema -

uma promessa .
 
lugares santos

Bushido

 
Como a flor da cerejeira,
não esperámos
presos ao ramo da árvore
até murchar,
não ganhámos raízes;
deixámo-nos tombar na neve
no apogeu da beleza,
de casaco preto e de
cachecol vermelho,
o inverno do nosso
contentamento.
Fomos como os samurais,
de espadas nos punhos
trespassámo-nos
um ao outro
na flor da idade,
através de um domínio
perfeito do corpo e do
espírito, pelo treino regular,
não para vencer,
mas para não
sermos vencidos.

Simbologia

Originária da Ásia, na cultura japonesa (chamada de Sakura no ki) sendo o significado de Sakura flor de cerejeira a cerejeira era associada ao samurai cuja vida era tão efémera quanto a da flor da cerejeira que se desprendia da árvore.
 
Bushido

As Sete Maravilhas do Mundo

 
Convences-te de que és
uma rapariga simples,
despretensiosa,mas

eu fito-te e observo
em êxtase,sete maravilhas
do mundo,porquê?,

perguntas,desconfiada,

ora,não sabes?,cada
semana compreende

sete dias e mais
afortunadamente o
processo volta

trezentos e sessenta
e cinco dias,sou mais

felizardo,se for ano
bissexto,são sete,as
maravilhas,tu,escusado

será dizer,o mundo.
 
As Sete Maravilhas do Mundo

Movimentos

 
Aos 3 vivia fascinado pelos comboios
e pelas viagens que se podiam fazer neles.

Mais ou menos aos 8 entrei pela primeira vez num,
a memória envernizou o momento,as paisagens
e a luz eram sempre diferentes,pensei já
nessa altura que o movimento era um grande arquitecto.

Hoje percebo que a metáfora da viagem mais não é que a
da metaformose dos anos reconstruindo-nos,cada vez mais
desassossegados,mais certos que só em marcha,
conseguiremos chegar ao ponto de intersecção do ferro cruzado dos nossos caminhos.

Por isso renovamos perdas e danos a 300 km /h por dia.
Somos piores que cobras.
 
Movimentos

Em Terra de Estranhos

 
Desembarcou do autocarro cor de ferrugem, onde até os mosquitos o estranhavam, ao princípio da tarde, perto das quatro horas, em companhia de cães, gatos, vendedores de rua, polícia armada até aos dentes de morte a tiracolo, conversas agitadas pitorescas de mais velhos e menos velhos, rugidos de motas, moscas,muitas moscas, casas amarelas arruinadas, a revolução a cair de velha, quando lhe pediram lume :não fumava,porém, como não sabia falar a língua local, tomaram a recusa por um insulto vil.
Ao regressar ao conforto e simpatia da unidade hoteleira construída à alegria e segurança de turistas estrangeiros endinheirados. Sentia-se mais sozinho que nunca, perdido numa ilha de incomunicabilidade, mesmo que, recordavas, naquele instante de desconfiança, ignorância, estranheza, medo, de lume pedido, tenhas muito provavelmente , por um problema de expressão, resistido à/ao amizade, angústia, amor, morte, delito menor. Recordavas agora, feliz, por tudo não ter passado de um conto policial de fantasia sul-americana que acabaste de ler , europeu estendido sobre a cama feita num quarto de hotel bafiento de uma cidade asiática.
 
Em Terra de Estranhos

13:00

 
13:00 tertúlia taberna do manel penalties vinho
carrascão cervejas caracóis amêijoas à bulhão pato

15:20 praça do rossio mundo funcionário público pressa física vozes gestos.

15:30 homem terceira idade poeta surrealista quase pobre vive por caridade lar artistas idosos livros vendem fortunas

15:45 rapaz dezassete dezoito boné lacoste brincos
rosto sem expressão voz de desafio

16:10 bairro alto beco sem saída

16:12 terror dezassete dezoito anos rapaz assalto
com arma branca

15:20 testemunhas corpo homem oitenta e cinco anos
jaz cadáver poça de sangue poeta quase pobre livros vendem fortunas

15:50 local crime autoridades policiais testemunhas perguntas respostas quem era era poeta

15:51 : era poeta mas era louco e bebia testemunhas maldizer escárnio risos inem cadáver hospital.

15:51 (um ano depois)caso encerrado processo arquivado falta de provas rapaz libertado oitenta e cinco anos poeta quase sem-abrigo morto era louco mas bebia livros vendem fortunas.

O poema em questão é um decalque na forma,não no conteúdo,de um outro do pablo garcia casado.
Não existe plágio,porque senão ninguém escreveria sonetos.Há uma admiração formal.
 
13:00

Espantalho

 
medos têm-me

[nada de novo sob o sol]

mas não me espanto

[eclipse solar]
 
Espantalho

OS Cantoneiros de Alexanderplatz

 
Saíam à noite,já depois,muito depois,
de o mundo dormir e carregavam contentores
pesados atulhados de objectos biodegradáveis como pulmões negros.

Saíam à noite,já depois,muito depois,de o lixo
por cores haver sido criteriosamente separado por
nós,ainda que mal - percebê-lo-íamos mais tarde.

Saíam depois,muito depois dos sacos pretos depositados nos ecopontos através de um gesto
tranquilo de sabermos perfeitamente estar sempre
a fazer a coisa certa,quando ensacávamos na sua devida cor os resíduos da cidade do ex-grande-muro.

Os materiais recicláveis ; conteúdos padronizados
cromaticamente,a saber:

Amarelo - plástico e metais (desejos)
Azul - papel e cartão (doçuras)
Verde - vidro (agruras)

Saíamos à noite,já depois,muito depois de
homens de mulheres de crianças do mundo
descansadamente dormidos,mas começámos
gota a gota de cerveja morta a perder as
memórias ecológicas e desesperados,reinventávamos
anatomias,inteligência,ordens e silêncios:

Desistimos da amizade ao ambiente,de tanto nos
matarmos a colocarmos as devidas coisas nos seus
devidos lugares.

Quase à porta da primavera saímos antes do mundo dormir em sonhos americanizados e brincamos às guerras com bolas de neve ,apontamos sempre ao coração,esse ex-grande-muro graffitado,cidade-estado superpovoada de slogans revolucionários que em dias de limpeza sazonal nos recordamos para o nada que também não servem.
 
OS Cantoneiros de Alexanderplatz

Mãe

 
Mãe,pára o carrossel dos cansaços.

Deixa-me descer,de tão eu que sou.

Mãe,não me comove mais o ruído rumoroso das
engrenagens,deixa-me descer.

Não conheço o sal,jorge,
apenas a amêndoa amarga realidade
que diariamente bebo depois do café
sem açúcar no café da esquina dos desenganos,

Mãe,cala os mistérios e os passatempos da dor

Insuporto-me em realidade,mãe,

na alegria e na tristeza,com um livro
menos dispensável no fio crematório das horas.

Mãe,os sinos ensurdecem-me a pele rubra
e,irritado,amuado,só quero descer do carrossel.

Mãe,pára o carrossel,pára-o,por favor,

Deixa-me des-ser do mundo e ver longo,muito longo

como antes não me comportava como os cegos
pelo tacto têm outro um mais puro pensar.
 
Mãe

Eflúvios de Liberdade

 
Da de Alexandria à Torre do Tombo,
de permeio a de Babel,se houvesse

Todas e quaisquer bibliotecas consumidas
pelas chamas numa transcontinental noite de cristal

Os homens são imerecedores do fogo dos deuses.

Que ardam artificialmente.Que esse seja o seu suplício infernal e sejam esquecidos pela
letra L,até que amanheça novo admirável mundo novo.
 
Eflúvios de Liberdade

Fotografias

 
Era tudo
o que ele
mais queria:

Em vez de
pôr termo
à vida
ou fazer
de conta que
enlouquece de

palavras-
escritaslidas-

visitar o mar
de uma dessas
cidades litorais
que ficam bem
nas fotografias
cujo ar é próprio
dos idos trinta

Saiu do carro e
acto contínuo
acendeu um cigarro,
como se o ar
subjugado
pelas dimensões
do habitáculo
do automóvel
se prolongasse
pelo cancro pulmonar
do cilindro branco
que ardia.

Acendeu-se
noutro
cigarro
e lamentou
a respectiva
incapacidade
de verter
uma lágrima ante
o prodigioso
espectáculo das ondas
escurecidas pela
noite que não fazia,

Lamentou não
conseguir
comover-se
exteriormente
pela perpétua
perda
das pequenas coisas,
como a imagem
de uma cidade
que ficava bem
numa fotografia
dos idos trinta

Não se comoveu,
por isso,não viu
subir o nível das
águas no mar.

Ainda que
natural,
a catástrofe
era outra.

Não tinha mais
cigarros:
não pôde continuar
a morrer.

O ar livre
provocava-lhe
claustrofobia,

Para segundo azar,
esgotara-se-lhe o gás
no isqueiro;

não pôde queimar
os seus trintas,
ele que ardia
tão bem
nas cidades
litorais das
fotografias.
 
Fotografias