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Re: Comentário a "Nos teus vocábulos " - de Abissal
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2/10/2021 14:11
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Estava a reler o poema da Abissal (adorável!) e lembrei-me de cenas de uma série que comecei a ver ontem na HBO:
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Criado em: 9/2/2022 19:15
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin
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2/10/2021 14:11
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Sem risco, há poesia? Sem vertigem, sem assombro perante as nossas altitudes e pofundezas?

A propósito, hoje soube que Chico Buarque deixou de cantar “Com açúcar, com afeto” (link).



Ao que parece, agora só se pode fazer canções sobre o que deveria ser -- não sobre o que é e o que foi.

O que vale é que não tenho muitos leitores, caso contrário, qualquer dia, alguém se lembraria de me dizer que este poema deveria ser apagado e que eu deveria substituí-lo por outro, com uma personagem mais pró-ativa...

Criado em: 8/2/2022 9:03
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Comentário a "memórias do cubículo.", de zaisth
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2/10/2021 14:11
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Veja a transcrição do poema no final deste comentário ou aceda aqui ao texto publicado originalmente pelo autor.

Desta vez, aventurei-me por um poema mais longo do que aqueles que costumo comentar. Escolhi-o porque me deixou uma forte impressão assim que o li pela primeira vez. Regressei depois várias vezes para o reler e continuo a descobrir nele novas ideias e sensações. Fica aqui o meu percurso de leitura nº 6 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link).

Estamos perante um conjunto de oito segmentos, relacionados tematicamente. Cada um deles tem o seu título: "o homem nu", "desamor", "o escuro", "a cela", "o futuro", "memórias", "de(z)mandamentos" e "o fim do começo".

O título geral lembrou-me imediatamente as "Memórias do Cárcere", de Camilo Castelo Branco, os apontamentos que escreveu quando se encontrava na Cadeia da Relação do Porto, a aguardar julgamento por crime de adultério, acusação nascida da célebre paixão que manteve com Ana Plácido. No poema de zaisth, a reclusão é outra: um "eu" que se encontra entre o "cá dentro" e o "lá fora", sem sabermos dizer qual deles é real ou qual deles é desejado ou, melhor ainda, qual destes mundos o "eu" é.

Todos os poemas são escritos com recurso exclusivo a minúscula, o que permite uma grande maleabilidade do verso, como já tivemos oportunidade de comentar a propósito do poema "Homilia", de Simonekarinna. A pontuação está quase totalmente ausente -- o que também contribui para construção de ambiguidades -- sendo o ponto curiosamente reservado para os títulos e para o final do poema onde, em termos práticos, acrescenta muito pouco ao significado global do poema. Deste modo, parece limitar-se a fazer o mesmo que o "tenho dito" no fim de uma declaração.

O primeiro segmento é intitulado "o homem nu". De imediato nos recordamos do mito do Génesis, do Homem e do pecado original, em que Adão e Eva se deixam convencer pela serpente e comem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nessa altura, abrem os olhos (pormenor importante) e reconhecem-se nus pela primeira vez.

No poema de zaisth, há uma redefinição do mito, em que se abrem os olhos para o fruto, mas verificamos uma falta de ação do "eu": a maçã encontra-se caída no chão, ainda viçosa, mas é deixada a apodrecer e, em jeito de justificação, diz que "por detrás da grade [...] a vida acontece". O sujeito poético parece estar enclausurado a contemplar o conhecimento que lhe foge. Ele reconhece-se nu, é certo, no entanto, limita-se a acontecer, ou seja, a existir sem compreender o mistério que avista do seu cárcere (o verbo acontecer tem qualquer coisa de fortuito -- afinal de contas, a forma correspondente latina "contingere" tinha como um dos significados "caber em sorte").

Este ser contingente encontra a sua identidade na sua escrita, na sua poesia, que na essência não é mais do que saliva, humor em estado líquido que se deposita no chão poeirento e que desaparecerá em breve. Porque, concluímos nós, a essência desta poesia é feita de momentos, não de eternidades.

O segundo momento deste poema tem como título "desamor". Da prisão onde o "homem nu" se encontra, consegue descobrir uma passagem para ver mais longe: o amor. Trata-se de uma "janela indiscreta" e é impossível não relacionar o poeta com o protagonista do filme homónimo de Hitchcock, limitado a um espaço diminuto que é, simultaneamente, um lugar de curiosidade e de imprudência, de deslumbramento e de perigo.

Talvez seja por isso que na segunda estrofe deste segmento surja o conhecido mito de Sísifo, condenado a repetir eternamente o suplício de carregar uma enorme pedra até ao cimo de uma montanha. Ao atingir a meta, a pedra rola declive abaixo e o castigo recomeça. Não é difícil compreender a comparação do amor a esse castigo, como se a chegada sublime à meta da paixão não fosse mais do que o início de uma longa queda.

Preso na sua cela, o "eu" experimenta uma "fúria crescente", talvez por sentir a ausência, a solidão, de onde vem o desejo de esquecimento, com a imagem muito nítida de si mesmo "riscando na parede". A palavra "cela" aponta para dois contextos que vale a pena mencionar: o da cadeia e o religioso, ambos interligados pela ideia comum de algo penitencial. Ou seja, não se trata apenas de uma punição, mas também de uma via para a redenção, para uma suposta regeneração interior. Como vimos no início, talvez haja aqui uma alusão ao próprio ato de criação poética, que permite converter a dor e a frustração em algo belo e fecundo.

Na última estrofe deste segmento, o sujeito poético admite que o que se passa fora da cela, para quem está dentro dela, é uma encenação, parece irreal. Haverá aqui alguma reminiscência do mito da caverna? A forma verbal "encenava" terá um valor de verdadeiro passado ou de simultaneidade em relação à forma "sinto"? O "eu" terá vivenciado o amor no passado, parecendo-lhe agora algo distante, quase como se fosse uma peça de teatro a que assistiu? Ou estará, no presente, a imaginar algo que nunca teve, tendo acesso a uma nostalgia de um ideal impossível, que apenas a poesia lhe permite experimentar?

Chegámos à terceira parte -- intitulada "o escuro" -- que é o meu segmento favorito. Escrito numa linguagem límpida e luminosa, tem início com a figura de um cão cego que sente a presença do seu dono. Imediatamente nos vem à lembrança a imagem comovente de Argo, o cão de Ulisses, que espera vinte anos pelo seu regresso e que morre assim que o reconhece. No poema, a cegueira do cão, paradoxalmente, contamina o sujeito poético, envolto na escuridão, e simultaneamente permite o reconhecimento da sua identidade (aquilo a que damos o nome de anagnórise, na tragédia clássica).

Desse ponto de vista, a verdadeira escuridão do título é aquela que cobre o "eu" e que consegue ser desvendada -- e, de certa forma, desfeita -- pela simplicidade de quem "quer sentir e não pode". Há uma luz que passa a envolver o "eu", uma luz que não sabemos de onde vem, a quem pertence, como surge... Referir-se-á ao amor, essa janela aberta ao mundo, que encontramos no episódio anterior? Referir-se-á à escrita, esse elixir que torna suportáveis frustrações e receios? Referir-se-á ao leitor que, sentindo cada palavra, pressentindo os seus mistérios, dá efetiva existência à poesia? Não sabemos, mas pressentimos aqui uma espécie de gratidão, num dos poucos momentos felizes desta sequência de poemas.

Em "a cela", quarta parte do poema, facilmente nos identificamos com o "eu", que encontra um espaço de liberdade no seu cárcere pessoal. O "aqui", com que dá início a este segmento, parece indiciar, como em momentos anteriores, o espaço da poesia: é ela também, tantas vezes, o lugar exíguo e miserável onde podemos ser "fruta podre", um mero "número" entre muitos outros, mas, ao mesmo tempo, algo intemporal, "que não conta o tempo".

Ter como nome jerônimo faz sentido neste contexto: significando literalmente "nome sagrado", designa um santo cristão que era eremita e tradutor bíblico, alguém que estava entre a pobreza voluntária absoluta e a riqueza do pensamento e da comunicação mística, próximo do espírito daquilo a que chamamos poeta.

Segue-se-lhe o quinto segmento, "o futuro". Porquê "o futuro"? O poema não utiliza este tempo verbal, nem existem vocábulos que apontem para esta ideia. Será talvez uma estranha ironia, dizendo que a situação sombria dos poemas anteriores se mantém inalterável e que não há nada a esperar: é esse o futuro inexorável e definitivo.

Os mitos clássicos das estrofes anteriores dão lugar a uma figura bíblica que — apercebemo-nos disso na terceira estrofe — coincide com o "eu", um Sansão que se descreve depreciativamente de forma implacável: "decadente / esquálido / calvo". Foi "traído pelo destino", que lhe ridiculariza os pensamentos (é um "filósofo de tolices"), que Dalila e os "anjos negros" humilham. Lembremo-nos de que, na parte final do episódio de Sansão, ele está agrilhoado a uma coluna que servirá para a sua vingança e, simultaneamente, provocar-lhe-á a morte. Será esse o "abismo / que nem ouso imaginar"?

Falamos de abismo e passamos de imediato ao mito grego de Ícaro, o imprudente que se aproximou demasiado do Sol e que viu desfazerem-se as suas asas, perdendo-se numa queda que o transformou no símbolo perfeito da ambição desmedida. O sujeito poético diz que o seu Ícaro morreu, talvez na resignação a uma existência que lhe retirou a espontaneidade do risco. Assim nos dá a entender quando parece admirar o "rato que me fazia companhia", que "vive por instinto em sua toca", onde "é livre sem a luz solar". Aquele que encontra a felicidade na intimidade, longe das grandes vaidades e das grandes frustrações.

No sexto segmento — "memórias" — sentimos que o cubículo de que o "eu" fala são também os seus pensamentos ("fantasmas / por aí tão livres [...] aprisionados em minha cabeça"). É colocada a questão essencial: "mas em sendo um / aqui eu me veria?". Ou seja, se a minha verdadeira vida é aquilo que sonho, quando eu desaparecer, encontrar-me-ei com os meus pensamentos na dimensão do poema? Será nessa altura que atingirei a maior realização, vivendo nas palavras pronunciadas pelo leitor e que subitamente despertam, vívidas, na sua mente?

O título da sétima parte do poema — "de(z)mandamentos" — remete, mais uma vez, para o contexto judaico, para o mito de Moisés. Todavia, ao juntar graficamente as palavras "dez" e "mandamentos", surge uma forma sonoramente idêntica a "desmandamentos", ato de desmandar, de transgredir uma ordem. É o que o sujeito poético parece fazer.

A "lei" a que se refere no primeiro dístico é conhecida pelo "eu" de cor (ou seja, por etimologia, "com o coração") porque foi o sujeito que a criou. Uma lei onde é possível encenar a própria morte. Pois não é verdade que a expressão "morro por algo" indica um forte desejo? Então "morrendo de ver-me morrer" pode ser essa ânsia mórbida de se ver ausente, "no avesso do avesso / do que fui lá fora". Parece haver nesse "lá fora" mais uma sugestão platónica, de um mundo inteligível, um paraíso onde só chega um foguete — deliciosamente aportuguesado de "esputinique" — que consiga fugir às fronteiras físicas do "espaço-tempo".

E assim chegamos ao último segmento — "o fim do começo". Um título tão paradoxal quanto as antíteses dos "santos masturbadores", com a "santidade" que se vai atolar na "lama da hipocrisia". O final deste longo poema não é a serenidade que poderíamos esperar depois de uma longa caminhada. É um momento de fragmentação, de desespero e de fúria. Inesperado, forte, perturbador. "Insólito", a primeira palavra desta parte.

O sujeito poético evoluiu do inocente que pinta a decadência do mundo para, a certa altura, se tornar no mártir de que os outros precisam "para se perdoarem". Ou seja, o "eu" apresenta-se como alguém que, do "belo incompreendido", passa para o "pensar-resumo / ordinário". Terá perdido o sentido "altruísta" da poesia, que vive nos outros, é certo, mas também para além dos outros? Agora resta-lhe o "autorretrato" de um espelho que é o seu reflexo num "quadro negro" de uma "sala negra", que desconstrói o "eu", que já não sabe onde se encontrar, fechado que está nestas "memórias do cubículo". Haverá lugar para reconstrução? Tic-tac, tic-tac...

........................................

"memórias do cubículo.", de zaisth

........................................

o homem nu.


escrevo a essência
com minha saliva
no chão poento

vejo a maçã
o fruto da criação
caída
inda vermelha
apodrecer

por detrás da grade
onde a vida acontece.

...................................

desamor.

o amor
é a janela indiscreta
onde olho além

todos os sísifos
amarem aparentes

e esta fúria crescente
faz-me ausente
por esquecê-los

riscando na parede
desta cela
o tempo

o que sinto só
sem ter que dividir
o que lá fora eu encenava.

.......................................


o escuro.

meu cão cego
sentia minha presença

o que me via
passava por mim
tal sombra que se perdia

nem ao menos sabia
que o escuro que me encobria

era a alegria
de quem queria me sentir
e não podia

o outro era a noite
o cão, meu dia.

...........................................


a cela.

aqui estou livre
da prisão plural

uma cama
um urinol
a porção

o vazio

a fruta podre meu sinônimo
meu nome era jerônimo

virei um número
que não conta o tempo.

.............................................


o futuro.


sansão decadente
esquálido
calvo

traído pelo destino
filósofo de tolices
à solidez impalpável

qualquer dalila intocável
pisoteando o ouro
flertando
com anjos negros
me levam o sorriso

há um abismo
que nem ouso imaginar

estou coxo
mas o pior em pensar saltar
é saber
que ícaro morreu em mim

assim passam os dias

o rato que me fazia companhia
vive por instinto em sua toca

ali ele é livre sem a luz solar
cumpre sua existência
apodrece
sem que nem eu
tão íntimo
possa notar

da janela deste cubículo
o sol me entristece.

............................................

memórias.

fantasmas
por aí tão livres

aprisionados
em minha cabeça

serei um um dia

vivo memorizo-os

mas em sendo um
aqui eu me veria?

memórias são gotas
que jogo no mar

são palavras
que só têm vida
se alguém as lê.

................................

de(z)mandamentos.

os decorei
criei uma nova lei

morrendo de ver-me morrer
no avesso do avesso
do que fui lá fora

e a esta hora

misturo o latim
com o hebraico

vejo uma bíblia em branco
nas mãos dos fanáticos

que veem o esputinique tal foguete
pousar no paraíso

o que eu preciso?

simplesmente fingir
no espaço-tempo
de minha loucura
na verdade que reinvento.

............................................

o fim do começo.

insólito

pintei ninfetas
santos masturbadores

pintei o ódio
na tela real

cresci em santidade
mas na cidade

atolei-me na lama
da hipocrisia

precisavam de um mártir
para se perdoarem


escolheram um artista
altruísta
na querência do belo
incompreendido

usava o sentido contrário

do eu sou você
não no ato
mas no pensar-resumo
ordinário

meu ateliê
é um quadro negro
uma sala negra espelhada
onde pinto o autorretrato
do que fui
do que sou

um rosto disforme
o frankenstein de cada um

de toques sensíveis
catando os estilhaços
do quebra-cabeças

desesperado
pra me reconstruir

o tic-tac é meu fardo.


Criado em: 2/2/2022 23:40
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Re: Comentário a "Confissão", de Mr. Sergius
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2/10/2021 14:11
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Aprecio muito o entusiasmo que o Mr. Sergius coloca naquilo que escreve, seja nos seus poemas, seja nas interações com os outros utilizadores.

Tenho verificado que é um leitor atento e perspicaz, por isso, convido-o a participar neste fórum com comentários sobre os textos de que mais gosta.

No meu caso, comecei a fazê-lo por "imitação" de dois utilizadores que admiro -- a Margô_T e o Rogério Beça -- que entretanto têm estado menos ativos, mas que gostaria de voltar a ler, dada a qualidade dos seus insights sobre poesia e não só.

Todos sabemos que um objeto artístico, seja ele qual for, vale por si mesmo, não precisa da caução de uma apreciação crítica. No entanto, como já disse na introdução a esta série de comentários, é um exercício que pode ser interessante, lúdico até, quer para quem o escreve, quer para quem o lê.
Quem não estiver interessado na pregação, pode sempre abandonar a missa, não é verdade?

Abraço e até breve.

Criado em: 28/12/2021 11:41
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Comentário a "Confissão", de Mr. Sergius
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
Link para o texto original

"Cena cinco (Epílogo) - Confissão", de Mr. Sergius

Ao longo da muralha das palavras obscuras que nos cercamos
Haverá outras tão mais frágeis, menos ilegíveis a nos proteger
Outras cristalinas como o som do violino, o barco em partida
Haverá umas ditas surdamente, absurdamente, surda e mente
O amor desfeito gera a solidão, braços abertos sem o abraçar

Pois a nossa sina é escrever, se oportuno, sonhar além do azul
Meus olhos fechados guardam tua imagem, teu corpo e figura
Sorvo o ar, teu perfume é tão real que minha face transfigura
No perigo de tua ausência, não me passa o lasso esquecimento
Mas o receio de não estar presente, quando florirem os lilases

Sigo a caminho do mar, nestes caminhares. Assim o crepúsculo
A adormecer os girassóis, cantará uma canção para vires aqui
Vou te entregar estes versos, desalojados das hiantes certezas
Vou te convidar para bailar em silêncio, acender o candelabro
Esculpir um lírio, uma colcha dos retalhos de tanta lembrança

Sou quem sou por todo assombro que passei, assim estou aqui
Para abrir janelas, deixar o sol entrar, entornar fora o veneno
E, arrefecida essa febre, jamais divisar nossos rostos solitários
Nessa pálida aflição escarlate que todos os ardis construíram
Ter a alegria única de náufragos ao alcançar a margem segura

Estar a teu lado e jamais permitir dias ausentes sem propósito
Levantar a fronte e amar fazendo cada minuto valer uma vida


-----------------------------

Percurso de leitura nº 5 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

O título deste poema aponta para uma dimensão teatral, através da palavra "cena", tendo como antecedentes outras quatro partes, cujos "bastidores" são apresentados num comentário do autor, que pode ser consultado acedendo ao texto original, cujo link está identificado antes da transcrição do poema.
A cena clássica é aquela em que se verifica a entrada ou saída de atores. Neste caso, trata-se de mudanças no próprio "eu", que recorda o passado, perdoa-o e perdoa-se, arrepende-se, aceita o valor da experiência como fonte de inspiração e reconcilia-se com a vida pelo amor.

Este epílogo é designado como "confissão", um termo que aponta para a exposição de sentimentos e não só: lembra-nos imediatamente o sacramento religioso da reconciliação, como se estivesse indiretamente a referir que aquilo que o poema irá apresentar desdenha de quaisquer padrões morais ou sociais.

Dentro dessa lógica, começa com um verso que, à primeira vista, parece uma fuga à concordância natural do verbo com o seu sujeito -- as "palavras obscuras" não nos cercam, mas sim "nos cercamos", como que a sugerir que esse "nós" e as palavras se fundem, como se a linguagem poética fosse essa muralha que circunscreve a existência, dando-lhe identidade e protegendo-a.

Nem sempre as palavras têm essa força: muitas vezes são demasiado compreensíveis ("menos ilegíveis"), mais banais, ou então demasiado cristalinas (temos de admitir que o "som do violino" e o "barco em partida" são imagens que, de tanto serem usadas em poesia, perderam um pouco do seu mistério).

O jogo de palavras do quarto verso acrescenta uma nova ideia, ligada às anteriores: de que a linguagem se manifesta de forma discreta ("surdamente", com pouco ruído) e, ao mesmo tempo, ilógica ("absurdamente") e enganadora ("surda e mente"). Estes vetores serão desenvolvidos na estrofe seguinte.
Esta primeira estrofe termina, fazendo a articulação com o tema das cenas/poemas anteriores, o amor contrariado pela separação.

Segue-se-lhe uma explicação: à desilusão sucede-se o ato de criação literária (um "sonhar além do azul"), que não é uma opção, mas um verdadeiro destino, que tem início com a recordação.

Não há escrita sem memória. O "eu" recorda o "tu", a sua imagem, corpo e figura. Parece que há aqui alguma redundância, mas é apenas aparente.
A palavra "imagem", etimologicamente, tem relação direta com o verbo imitar, ou seja, sentimos por aqui a representação subjetiva da realidade, não a própria realidade.
Quanto à palavra "corpo", remete para tudo aquilo que ocupa um espaço, aquilo que empiricamente vivenciamos, a física da nossa pele, carne e osso.
Relativamente a "figura", tem a mesma origem do verbo "fingir", ou seja, corresponde à ideia de transformação de algo, porventura de forma enganadora, ilusória.
Associando as ideias destas três palavras, temos uma assunção do "tu" pela memória como algo simultaneamente concreto e abstrato, nítido e distorcido, verdadeiro e falaz.

Os últimos dois versos da segunda estrofe vêm na sequência destas ideias. "No perigo de tua ausência, não me passa o lasso esquecimento" é um dos versos mais melódicos do poema — temos aqui a "ausência" (perigosa, como se pode esperar da experiência do vazio emotivo), mas ao mesmo tempo a presença (um odor que permanece, "tão real"). Daí que o "esquecimento" não possa ser completo, é algo "lasso", cansado, melancólico, que não passa.

Finalmente um dos meus versos preferidos do poema: "Mas o receio de não estar presente, quando florirem os lilases". A que se referirão os lilases? Há quem diga que o lilás e o violeta são os pigmentos mais raros na natureza e que, por isso, são associadas à inocência, à espiritualidade e à tranquilidade. Em alguns casos, é uma cor utilizada para manifestações de luto. Haverá aqui alguma referência à morte física — ou será a interior?

Começa a terceira estrofe com a ideia de um caminho. Achei especial interesse à forma "caminhares". Será o simples plural do infinitivo utilizado como nome? Ou será a segunda pessoa do infinitivo pessoal, a sugerir que o "eu" acompanha ou persegue um "tu"?

A caminhada avança crepúsculo dentro e chega o momento do adormecimento, dando lugar a uma canção que convida ao encontro. Os seus versos são "desalojados", perderam as suas "certezas", que eram "hiantes" — um adjetivo que vem do verbo latino "hiare", que quer dizer "abrir completamente", "abrir a boca de espanto".
Esse espanto revela-se também no silêncio que acompanha mais convites: para dançar, para iluminar, para esculpir um lírio (símbolo da inocência, como os lilases — lembremo-nos da advertência bíblica "Olhai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam...").

Se associamos anteriormente o adjetivo "hiante", à admiração, temos agora, no início da quarta estrofe, o "assombro" — uma das características do Sublime, categoria estética que vai para além do Belo, traduzindo-se nessa espécie de confronto do espectador / leitor com a grandiosidade de um objeto ou de um ser que se contempla / escuta / lê. Observar o abismo ou as alturas é também observar a nossa pequenez, é encontrar uma identidade ("sou quem sou", "assim estou aqui"). Depois do desespero, vem a redenção: a luz que entra e que expulsa o "veneno", que cura a "febre".

"Nessa pálida aflição escarlate que todos os ardis construíram / Ter a alegria única de náufragos ao alcançar a margem segura" — por mim, o poema terminaria aqui, no fim da viagem do náufrago que é também o princípio de uma nova condição: a de sobrevivente.

(Os últimos versos, a meu ver, são demasiado "legíveis" e "cristalinos", para usar os mesmos termos do sujeito poético no início do poema. No entanto, se é certo que a poesia reclama a ambiguidade e originalidade constantes, a vida real tem outro tipo de exigências. Que podem ser o simples facto de estar ao lado de alguém e encontrar nesse momento uma felicidade que o silêncio transmite melhor que qualquer poema.)

Criado em: 24/12/2021 15:23
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Comentário a "Homilia*", de Simonekarinna*
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2/10/2021 14:11
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Link para o texto original

"Homilia*", de Simonekarinna*

diz-me
no roçar dos lábios
a cor do arrepio
diz-me
da paisagem
incompleta
a vontade do abismo

canta-me
o som luminoso do fogo
a fala macia das estrelas
canta-me
a trilha dos teus olhos
o farfalho das tuas asas
versos borboletas

pernoita
tua sede na minha
lentamente
desfaz-me as madeixas
encosta-me ao teu peito
e declama a homilia
sagrada letra do desejo


-----------------------------

Percurso de leitura nº 3 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Recentemente estive a ler alguns sermões de António Vieira e lembrei-me deles ao descobrir esta "Homilia", de Simonekarinna.
Segundo o "E-Dicionário de Termos Literários", de Carlos Ceia, a origem etimológica do termo “homilia” aponta para um cariz pedagógico: em grego, “homilia” significa “lições do professor” e seria aplicado a discursos de exegese bíblica. Distinguir-se-ia do "sermão" por se tratar de um texto destinado a ser proferido diante de uma assembleia mais pequena. Esse caráter de intimidade tem a ver com o ambiente geral do poema, composto numa espécie de "tom menor".

Normalmente, um texto deste tipo tem início com um exórdio, uma espécie de introdução a partir de um conceito predicável, ou seja, uma citação bíblica retirada das leituras de um ritual religioso. Neste poema, se houvesse tal conceito, seria porventura o segundo versículo do Cântico dos Cânticos: "Ah, se ele me beijasse, se a sua boca me cobrisse de beijos..."
Mas não, não temos exórdio: quando muito, talvez haja uma peroração do início ao fim, ou seja, um pedido a um "tu" que acompanhe o sujeito poético na sua confissão de sentimentos.

O formato escolhido é a estrofe de sete versos — número sagrado, perfeito e poderoso, afirmou Pitágoras — com métrica irregular, livres de rima, mas extremamente musicais. Apenas o título recorre à maiúscula; as estrofes apresentam sempre minúsculas sem a interferência da pontuação, o que confere uma especial plasticidade à construção poética. Porque dizemos isto? Veja-se como exemplo o que ocorre na primeira estrofe.

Tudo começa com a expressão "diz-me", repetido anaforicamente. O facto de não haver ponto final nem vírgulas permite uma ambiguidade muito expressiva: "a cor do arrepio" e "a vontade do abismo" serão o sujeito de "diz-me" ou serão os seus complementos / objetos diretos?
No primeiro caso, temos a personificação do "arrepio" e da "vontade", que segredam algo ao "eu" poético — como podemos pressentir através do sensual "roçar dos lábios" ou da metáfora da "paisagem incompleta", uma imensidão a que falta algo, por incompletude da visão — ou do próprio desejo, talvez? De uma forma muito condensada, adivinhamos nestas palavras a ânsia do absoluto e do infinito própria, por exemplo, do movimento Romântico do séc. XIX, que ainda hoje tem os seus cultores, nomeadamente entre os ditos poetas "góticos", que tanta popularidade possuem neste site.
No segundo caso, trata-se de um pedido a um "tu", como referimos atrás. Será ele a solução para a mensagem cifrada que, precisamente por causa desse mistério, tanto seduz o "eu"?

Segunda estrofe: situação parecida com a primeira — onde está o sujeito? onde está o complemento? quais as nuances em termos de significado? Desta vez, fica ao critério do leitor ponderar ou não sobre o valor de cada uma destas opções.
Prefiro destacar as sinestesias do "som luminoso do fogo" ou da "fala macia da natureza" (para trás ficara a "cor do arrepio", lembram-se?). É a noite que chega, incompleta como a paisagem de que falámos atrás, que canta "a trilha dos teus olhos", um caminho pedestre que se transforma em voo, no "farfalho das tuas asas". Veja-se como a aliteração do som -lh- aparece pouco a pouco a preparar, pelo som, a imagem do bater das asas da borboleta, nome transformado em adjetivo para qualificar os versos.

Já agora, a propósito de "farfalho", encontrámos um nome afim — "farfalhas" — que significa "bagatelas, ninharias". Efetivamente, são os pequenos nadas que parecem mais atrair o sujeito poético, os momentos que delicadamente pousam por um momento na memória do "eu" para depois partirem novamente.

Repare-se que a sede não se sacia na sede do amado, limita-se a "pernoitar", limita-se a uma passagem momentânea. Aliás, não será por acaso que se utiliza a palavra "sede", que também pode designar "lugar", como que a dizer que a proximidade é algo frágil e temporário, que tem de se abordar "lentamente", como se fosse a degustação de um poema.

A mesma ideia, de que algo está pendente ou latente, e a mesma atenção ao detalhe, aparecem nos versos seguintes. O cabelo não é agarrado com o vigor da luxúria — é um simples "desfazer de madeixas". O abraço voluptuoso dá lugar ao casto "encostar-se no peito" do outro. A propósito do verbo "encostar", lembrei-me de um belo poema de Carii (link), que tive a oportunidade de comentar aqui há uns anos.

Termina o poema com a definição de homilia: trata-se de uma "sagrada letra do desejo" que se "declama". Ou seja, o desejo vive na sacralização da palavra, cujo lugar privilegiado é a própria poesia, que convoca quem se ama e quem a ama.
Voltemos ao Cântico dos Cânticos: "Eu estava dormindo, mas meu coração velava. / Atenção! O meu amado está batendo..."

Criado em: 17/11/2021 15:57
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Comentário a "MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim
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Link para o texto original

"MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim

cansei de morrer de véspera

espero o final dos tempos
esquentando a alma numa fogueira
em baixo do arco-íris

todos os venenos
circulam nos meus olhos
a última lágrima é uma adaga

afiada no sorriso da deusa

arranco lascas do caos
e faço a lua
que os idiotas cultuam nos sonhos

o analfabetismo dos bruxos
pouco importa aos anjos
e demônios que bebem em serviço

eu vago aonde a maré
grita pelas conchas
a escala do apocalipse

e não tenho medo do castigo
comigo a alma morreu
aonde o dano é além do perigo

e a tempestade derrubou as estrelas
levando embora quem sonha com abrigo


-----------------------------

Percurso de leitura nº 2 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Aproveitemos a proximidade da festividade do Halloween para analisar um poema que fala de bruxos e demónios, luas e fogueiras.

O título, só por si, já mereceria o comentário.

A palavra "véspera" é de uma riqueza singular. Normalmente é utilizada como a designação do dia imediatamente anterior àquele em que nos encontramos. Mas este não é o único sentido. Por exemplo, no plural, designa um dos momentos da "Liturgia das Horas", a oração das comunidades religiosas, sobretudo das monásticas. Esta aceção da palavra está relacionada com o seu significado latino: referia-se ao final da tarde, quando surgia no horizonte a estrela Vesper, ou seja, o planeta Vénus. Daí vem o nosso adjetivo "vespertino".

A associação com o verbo morrer é feita de forma muito expressiva com a preposição "de", que pode apontar para uma relação de tempo, de origem ou de causa com a palavra seguinte. Ou seja, "morrer de véspera" poderia significar "morrer na véspera", "morrer a partir da véspera" ou "morrer por causa da véspera".

O primeiro verso toma estas palavras e acrescenta a expressão "cansar de", designando fatiga ou, por outro lado, desistência de algo.

As combinatórias destes termos são várias e algumas delas particularmente interessantes.

"Cansei de morrer de véspera" será a renúncia à angústia por antecedência? Poderá ser a exaustão de viver como morto na contemplação de algo espiritual? Terá algo a ver com o definhar do sentimento amoroso, como um dia a cujo fim contemplamos sem agir?

Um parêntesis: às vezes, um comentário pode parecer-se perigosamente com uma teoria da conspiração, a combinar elementos e a extrapolar conclusões aparentemente absurdas e inúteis. No entanto, como disse no texto que explica os meus objetivos com estes comentários, trata-se de um exercício pessoal, não mais do que isso e, portanto, tudo é lícito. Que seja o leitor a decidir se vale a pena perder tempo com os disparates do comentador.

No terceto seguinte, temos a primeira referência ao apocalipse, associando a alma e o fogo, algo que pode lembrar o Pentecostes cristão, em que as línguas de fogo desceram sobre os apóstolos e deram-lhe coragem e conhecimento para ultrapassar o receio da perseguição pelos opositores de Cristo. O gerúndio "esquentando" parece indicar que há alguma mudança no "eu", mas lenta, em baixo de um arco-íris, símbolo da aliança entre Deus e os homens, como se a sua resignação lhe trouxesse uma estranha calma.

Se há algo judaico-cristão neste texto, também existe um certo ambiente da Antiguidade Clássica na terceira e quarta estrofes. "Todos os venenos / circulam nos meus olhos / a última lágrima é uma adaga // afiada no sorriso da deusa". A metáfora do monóstico recorda, por coincidência ou não, a forma como Afrodite (a deus Vénus grega) era designada na "Ilíada" de Homero, com o epíteto de "amante dos sorrisos". É que a deusa do amor e da beleza não era propriamente o ser angelical de Botticelli, mas uma deusa terrível e vingativa, como todos os outros do panteão greco-romano.

É por ela inspirado que o "eu" procura sentidos com o verso "arranco lascas do caos", uma construção que implica trabalho, arte e sofrimento. Daí constrói a lua, um tópico tantas vezes usado pelos poetas, que apenas pode ser renovado pelo olhar do "idiota" — uma palavra que originalmente não tinha um sentido pejorativo: em grego, referia-se a algo comum, privado. Ou seja, o "idiota" com o "culto" da lua é aquele que vive a experiência poética como algo subjetivo, como um momento espiritual íntimo.

Na estrofe seguinte, entram os bruxos, aqueles que pela magia tentam interferir nas leis da natureza. O sujeito poético refere-se a eles como analfabetos, olhados com desdém pelos ébrios (anjos e demónios), que têm como função (assim entendo a expressão "em serviço") aceitar simplesmente o que o mundo lhes oferece, sem procurar alterá-lo, sem revolta. O "eu" parece claramente estar do seu lado, sem decidir, contudo, se é o bem ou o mal que o define.

Esta ideia é explorada nas três estrofes finais.
Assistimos à deambulação do sujeito pela praia — usando o verbo "vagar", que sonoramente associamos às vagas marítimas, à ideia de lentidão e ao sentimento de vazio — sem se deixar intimidar perante os gritos de chegada do fim do mundo, com a temeridade de quem sabe bem o que é existir estando destruído interiormente.

O verso "aonde o dano é além do perigo" é uma clara reminiscência do episódio do gigante Adamastor de "Os Lusíadas". Dizia no canto V esta personagem aos navegadores portugueses que a vingança pelo seu atrevimento em "mares nunca dantes navegados" surgiria de forma tão grande e repentina que seria "mor o dano que o perigo". Vejo aqui semelhanças com o estado de espírito do "eu", com um ressentimento interior que parece condenar ao seu destino todos aqueles que se atrevem contra a tempestade em busca das estrelas, desenganando os sonhadores para quem ainda resta alguma expectativa de proteção, o sonho de um "abrigo".


Criado em: 1/11/2021 19:39
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Comentário a "Curso de Estenografia", de Rogério Beça
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"Curso de Estenografia", de Rogério Beça

Atalho
percorro a geografia da pressa
e
na vez da aceleração
corto esquinas
como letras
uso a fala do bom-entendedor
de serra na mão

espero chegar ao lugar
antes de outro eu
que for em linha recta

mais do que o caminho
abrevio
o passo.

Tenho a sede do cedo
uma fome esfomeada da madrugada
um medo inefável do atraso

e de nada.


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Percurso de leitura nº 1 (se quiser conhecer os seguintes, fica aqui o link)

Um texto literário é sempre um espaço de aprendizagem e, por isso, faz todo o sentido o título deste poema, a lembrar o "Manual de Pintura e Caligrafia", de Saramago. Todavia, todos sabemos que essa aprendizagem é feita de forma indireta, através de sugestões e impressões pessoais que nascem uma e outra vez, graças à ambiguidade do texto.

A palavra "curso" é o primeiro exemplo das muitas ambiguidades que encontramos aqui. Se, por um lado, designa um itinerário académico, por outro, designa qualquer trajeto em termos gerais. Quanto à "estenografia", é a técnica de reproduzir por escrito algo que se escutou, de uma forma mais rápida que a escrita convencional. Estamos no domínio do desenhar da caneta pelo papel, à procura de se apropriar do real fugidio, que desaparece nas ondas sonoras.

Essa ideia de percorrer, em emergência, algo ou algum lugar está presente logo na primeira palavra do poema, "Atalho". Como nome, "atalho" indica um trilho, muitas vezes acidentado e pouco conhecido com que tentamos chegar mais rapidamente a algum lugar. Como verbo, "atalho" pode estar relacionado com o encurtamento do caminho, mas também interromper algo, fazer calar alguém. No final do poema, talvez se consiga perceber melhor esta palavra. As ideias de abreviar, de encurtar o caminho estão presentes ao longo de todo texto: "pressa", "aceleração", "abrevio", "cedo" são talvez as palavras mais óbvias neste campo lexical.

"Corto esquinas / como letras / uso a fala do bom-entendedor / de serra na mão". Nestes versos, centrar-me-ia na expressão "como letras", uma construção muito engenhosa que permite várias interpretações.

A primeira -- talvez mais óbvia -- será a de que o "eu" devora os sons e os sentidos, talvez pela sua avidez de atingir algo, talvez porque necessita deles para sobreviver, como "alimento" intelectual e onírico.

A segunda é aceitar que "como letras" se trata de um dos termos de uma comparação. Mas relativo a quê? Terá a ver talvez com as esquinas cortadas (não dobradas, como habitualmente se diz)? Ou então com a fala do bom-entendedor (para quem, diz o ditado, "meia palavra basta")? A mensagem poética será então reduzida ao mínimo, num corte custoso e certamente doloroso, di-lo a "serra na mão". Será o "eu" poético a descobrir na contenção das palavras o caminho para aquilo que persegue, para aquilo que ouve, que tem urgência em reproduzir, mas que sente fugir?

Essa ânsia irrompe na segunda estrofe, que me parece influenciada por Pessoa (a "linha recta" é uma das pistas para essa sensação, dando título a um dos seus poemas). O "eu" pressente que há algo oculto, uma "outra coisa ainda", sabendo que "essa coisa é que é linda", como noutro poema de Pessoa, intitulado "Isto". Como se esse pressentimento lhe estivesse a dizer que, noutros hemisférios do seu interior (um "outro eu"), já conhecesse esse indefinido.

Na terceira estrofe, diz-nos que não é o caminho que é encurtado, mas o passo pessoal (muito curiosa a simulação do abreviar pela interrupção do verso com enjambement no seguinte). Termina com ponto final a primeira parte do poema e seguem-se as motivações dessa urgência interior: a "sede do cedo".

"Sede" enquanto local ou enquanto secura? As duas aceções: o "cedo" (complemento de um jogo de palavras particularmente feliz) é um lugar de emergência e de desejo (assinale-se o pleonasmo "fome esfomeada"), que olha para o mundo com a inocência da primeira vez, a "madrugada" das coisas, a luminosidade que traz o "medo inefável" de que algo continue a atrasar a chegada dos seus anseios ou que traga apenas o vazio, o "nada". O espaço antes do monóstico final dá a ideia de uma hesitação (como se houvesse reticências), antes do "eu" admitir a falta de sentido, que o adjetivo "inefável" já sugerira. A este propósito, é possível sentir aqui algo de Antero de Quental que, mais de uma vez, termina os seus poemas com a referência ao nada, como nos célebres sonetos "O palácio da Ventura" ou "Oceano Nox", em que a ilusão, o entusiasmo de um ideal, rapidamente dá lugar ao vazio.

Deste ponto de vista, o "atalho" do início do poema -- entendido enquanto interrupção, silêncio forçado -- poderia ser agora lido como a premonição dessa corrida do "eu", através da poesia, em busca de um sentido que o atrai apesar de ou porque lhe foge. O poema será, então, o registo vívido dessa aventura, narrando-a com o entusiasmo amargo de quem sabe que a realidade existe, que é algo deslumbrante, que é o segredo para uma vida verdadeira, mas não está ao seu alcance.

Criado em: 30/10/2021 16:27
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Percursos pessoais de leitura
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Pretendo dar início a uma série de comentários a partir de poemas de utilizadores deste site.

Estes textos não pretendem ser mais do que a partilha de um prazer e um exercício pessoal. De cada vez que reflito e comento um poema, mais aprofundo a minha relação com a poesia e isso é importante para mim nesta fase da minha vida.

Em cada comentário, vou selecionar aspetos que, a meu ver, são os mais curiosos no poema escolhido, procurando também articulações com textos de outros autores e outros imaginários (do cinema, da música, das artes plásticas etc.).

Uma última observação. Estes comentários não são homenagens, nem louvaminhas. Aliás, nas escolhas dos textos, não farei distinção entre os autores que aprecio pela interação amigável que com eles possa ter e, por outro lado, aqueles que são presenças desagradáveis ou até hostis.

Como em qualquer fórum, este é um espaço aberto à troca de impressões. Caso pretendam fazê-lo, peço que sejam cordiais e que não levem a mal se, em certas circunstâncias, eu optar por responder através de mensagem privada.

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Poemas comentados até ao momento (links):

1. "Curso de Estenografia", de Rogério Beça

2. "MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim

3. "Homilia*", de Simonekarinna*

4. "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet)

5. "Confissão", de Mr. Sergius

6. "memórias do cubículo.", de zaisth

7. "Sede", de Katz

8. "sob a superfície d'atalaia", de MarySSantos

9. "Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal

10. "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo

11. "utopias", de Transversal

12. "Epinício de wagner", de atizviegas68

13. "Todos os nadas", de InchNails

14. "aos caídos da guerra", de RoqueSilveira

15. "Imprevistas madrugadas", de maria.ana

16. "A VERDES", de RicardoC

17. "a esgalhar", de HorrorisCausa

18. "No Vale de Gimmerton", de Gyl

19. "AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL

20. "a ex-mulher de Lot", de Rogério Beça

21. "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima

22. Quatro poemas de Absalao

Criado em: 30/10/2021 16:22
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