Contos : 

Factotum (I)

 
 
O vento de maio tremulava a faixa amarela , estendida á entrada do prédio . A lanterna focava a advertência de perigo e a proibição de seguir em frente . Reginaldo agachou-se adentrando o estacionamento. Uma hora da madrugada , na tela do celular . Escuridão e o silêncio interrompido pelo buzinar ocasional , nas ruas mais próximas. Levantou a gola da jaqueta , protegendo o rosto do vento frio.Neblinava. Avançou , cabisbaixo , iluminando o chão coberto de entulho .Preocupava-o a luminosidade da lanterna. Não deveria ser visto ; pior ainda , não poderia ser visto ali , àquela hora.
Tropeçou num pedaço de laje , rompendo um dos chinelos . Caiu , soltando a lanterna. e a pá . Disparou um palavrão e puxou o calçado , ficando uma parte do couro apodrecido sob a pedra , voltada para cima parecendo mastigada pelo concreto e a outra parte em sua mão. Olhou a lanterna caída ,iluminando a base do muro .Segurando a cabeça entre as mãos , começou a rir , ao avistar um rato correndo entre os escombros , rente ao muro , sob o foco luminoso. Coçou a cabeça , apalpou o maço de cigarros , desistiu de fumar ; brasa de cigarro era bandeira na certa , no meio da escuridão ; a última coisa a desejar seria a hospitalidade da delegacia do bairro , aqueles caras barrigudos , truculência e banhas a derramar –se sobre as pistolas .9mm ostentadas á cintura. Rolou o tronco para a direita , ergueu-se lentamente . A dor nas costas , quarentona , clamava por atenção. Caminhou até a área interna .
Os restos da portaria , sob montes de entulho ..Uma rachadura cortava em diagonal a fachada do prédio , estendendo-se até a área interna .Chamavam aquelas construções de prédios caixão : além da forma , um ataúde de concreto , quando caiam , até mesmo pela metade .
No caminhar precário , um pé calçado , outro em vias de descalçar-se . Coisa pra filho da puta , praguejou em surdina , iluminando os pés . Tirou um chinelo e as sobras do outro ,prendeu – os entre a barriga e a cintura da calça jeans . Á sua frente , três metros de entulho e poeira amontoados . . Segurou a pá e amarrou a lanterna no cabo envernizado e firme . Começou o desbaste do entulho pelas bordas , fazendo o mínimo de barulho , retirando o máximo que pudesse á cada vez . Esbarrou num pedaço de parede , restos da esquadria do que fora uma janela , um grande pedaço da vidraça , triangular e ameaçador . Removeu o vidro, encostando-o á parede oposta . Vez por outra o vento frio lhe bafejava o rosto empoeirado , fazendo-o acelerar o ritmo para manter-se aquecido. .
Uma hora mais tarde , liberou um metro da lateral do vão de entrada. .Suado, ofegante, sentiu a dor em pontada , nascendo das costas e descendo pela parte posterior da coxa direita , sinal de travamento á vista .
- Foda – se , murmurou entre dentes e porejando suor frio . Após mais cinco pás abarrotadas de terra , a musculatura das costas dando nó de marinheiro .
Penetrou na portaria , estendeu – se ao comprido no banco de alvenaria meio destroçado, tentou relaxar as costas , começando a contar para não pensar na dor . Colocou a pá sob os joelhos , aguardando um alívio ou um dia de imobilidade forçada,até uma hora depois a dor esquecer-se dele .Ergueu-se aos solavancos , examinando as paredes ao redor ; pela rachadura lateral á escadaria , tinha uma visão da rua .
A madrugada definhava , seus habitantes ainda circulavam pelas ruas ,um caminhão de lixo fez uma parada na frente ao prédio . Diante do entulho,os garis assoviavam de espanto e alívio , afinal “a montanha era só pedra e tijolo , os caras da secretaria de obras que se fodessem” .Seguiram em frente , observados por Reginaldo .Ao longo da rua ,lixo de dois meses, rente ao meio fio .
Atingido o primeiro pavimento , sacou uma chave do bolso traseiro da calça ; com orgulho e urgência de dono , abriu a porta de número 103 , seu lar há doze anos .
O ar recendendo a mofo dificultava- lhe a respiração, fazendo – o tossir até abrir o basculante , arejando o ambiente . Sobre a mesa de centro , a foto emoldurada da esposa ladeava um vaso de porcelana com flores apodrecidas.Na geladeira ,comida embolorada de três meses e duas cervejas fermentando no congelador . Ao lado do velho fogão e desgarrado da mangueira , o bujão vazio de gás , seu motivo para sair de casa ás nove da noite, escapando do soterramento que matara cinco vizinhos e suas famílias , além de Zacarias, porteiro da noite e parceiro de truco ; cabeça esmagada, o surrado uniforme azul e o molho de chaves , preso á cintura . Àquela hora , apodrecendo na sepultura , lá em Santo Amaro .Pegou algumas ferramentas , retornou á área externa , indo até ao playground , caminhando agachado , ao lado do muro.
Improvisou em escada as cordas do balanço ; removeu com dificuldade , um dos ganchos fixadores das cordas , usando um alicate e a lanterna apoiada entre o pescoço e o ombro .Conseguiu dobrar o gancho em forma de anzol , ao qual amarrou em nó cego uma das pontas da corda . Acesso externo já fora um problema . .
A rua despertava para a quinta – feira nublada . Abriam as portas Edésio e sua padaria , os empregados do mercadinho erguiam as portas de aço e assumiam seus postos. . As paradas de ônibus enchiam-se de gente cinzenta e cabisbaixa , esperando o transporte até o centro da cidade , destino da grande maioria . Conhecia os estudantes pelos livros e cadernos . Os secundaristas não usavam farda ; talvez uma espécie de vergonha pela necessidade de estudar , aprendendo um ralar mais maneiro , disputando em desvantagem, as meninas gostosas com a turma da pesada , os aviões do tráfico : carro importado , roupas transadas , motelzão de primeira. Alguns ainda acreditavam em algo além da maconha e do crack , outros usavam a fachada de alunos para traficar dentro da escola .
Após seis noites de trabalho insano , religou água e energia elétrica ás escondidas da vizinhança e da polícia . Cavou antes do hidrômetro e fez a puxada para o prédio :um jacaré dos bons , pra ninguém botar defeito . O trabalho maior foi ocultar os sinais da escavação , da rua até a parte externa do prédio . Descobriu no entulho uma boa camuflagem., por entre aquele mundo destruído , no emaranhado de fios , canos retorcidos e tijolos. A ligação da energia custou-lhe um dia de cama , pela subida no poste , um muro fazendo as vezes de escada . Valera o esforço , pensava coçando o pixete grisalho , esgueirando – se durante a noite entre ruínas , a reconstruir o seu mundo e a cada vez que escalava a parede , as costas em tempo de romper-se , subindo parede acima pelos nós da escada de corda , lagartixa madrugadora .
Reginaldo espreitava, curtia a secreta retomada do que restara do prédio e de sua parte naquela precariedade . Acostumou-se á noite e ao viver clandestino na própria casa ; tentou construir uma passagem camuflada por pedaços de tábua e o resto da vidraça, desistindo pela trabalheira que teria á cada saída . Encerrava os serões noturnos com a cerveja gelada em frente a TV , enquanto o sono chegava
Recusara o teto dos filhos , viviam ainda mais duros que ele ; tinha uma aposentadoria como ”artífice especializado” , um nome bonito para quebra - galho ou Factótum , apelido inventado pelo puto do doutor Frederico , lá na repartição . .
Aos filhos , dizia estar muito bem na casa de Gilberto , o irmão que não via há anos , saído do bairro após ganhar na loteria, anunciando para Roma e para o mundo, da boléia do caminhão de mudanças , que “dele, só iam querer o dinheiro” ; uma banana para o bairro e o resto da família. Jamais o procurariam na casa daquele escroto . Paulo e Daniel entreolhavam – se ,mudando de assunto ao falar no tio . Não seria agora que o pai começaria a mentir . Mas mentia .E muito .


andrealbuquerque

Trata-se da primeira de três partes de um folhetim.
 
Autor
andrealbuquerque
 
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