II
Devo confessar que passei muito mal pela manhã cedo, mas agora quase no final dela, depois de beber alguns copos d'águas com casca de laranja e forçar-me a vomitar melhorei um pouco, ao menos o enjoo e assim como a mal-estar deram um tempo, apenas a língua continua a perturbar. Na cozinha a Sra. Vince prepara alguma coisa para o almoço. Releio "Suave é a Noite" do mestre Fitzgerald deitado, estou sem ânimo para me deslocar. Mas terei que enfrentar os meus pesadelos e voltar ao trabalho e entregar as encomendas de Miguel. Um passeio pela Riviera francesa em companhia do casal Diver, depois Paris onde o Dr. Diver psicólogo recém-formado conheceu a esposa, então paciente numa clínica na Suíça, tratando-se um problema psicológico.
A paralisação dos caminhoneiros mexeu com o Brasil todo. A afta na língua, passando um pouco de violeta - estou sentindo frio, obrigando-me a vestir duas camisas. Para me fuder mais, caio na asneira de comer laranja em fatias, ai mesmo que o bicho pegou. Arde pra caramba. Enviei "Vivendo & escrevendo" para duas editoras Brasilense e Buriti - Meu plano é enviar para cem editoras, quem sabe.
III
Manhã do último sábado de maio. Nada de novo apenas acompanhando Dr. Diver em Roma, deixou a mulher na clínica e resolveu dar um rolé. Compareceu ao enterro do pai em Bufallo. Gosto da sutileza do autor, escreve sobre os lugares que realmente conheceu em companhia de sua maluquete esposa Zelda que depois sofreu de esquizofrenia assim como Joyce com a única filha Lucia e o seu filho Stanislau com a esposa americana. O final Dr. Diver abandona a mulher e volta aos Estados Unidos onde vai clinicar em várias cidadezinhas - Fizt foi um bom-vivant frequentou os lugares mais suntuosos que o dinheiro podia pagar, mas o sucesso acabou e as vendas de seus livros despencaram - a mulher enlouqueceu e ele foi tentar a vida em Hollywood. Queria que meu filhote não viesse hoje me visitar, estou sem condição de leva-lo para casa, muito fraco. Hemingway sem duvida é um gênio literário, mas tem hora que é cacete, mas gosto de sua prosa - começo "As Aventuras de Nick Adams"
Graças a Deus meu filhote não veio. Um mosquito faz um voo solitário e as cegas. Não jantei. Naquela de sempre carregando a minha cruz, que por enquanto não é muito pesada
IV
Manhã de domingo, o ultimo de maio - Debilitado e caindo pelas tabelas, me canso no menor esforço físico - também não tenho me alimentado nesses dias de recuperação. Ainda pouco ao tirar os colchões para que a Sra. Vince pudesse limpa-los, senti-me exausto e vim depressa para a sala de estar e joguei-me na cadeira, arfando - Releio "O idiota" - um dos meus romances favoritos. estou numa aguda crise de fraqueza, penso que vai chegar a hora de ver o capim nascer pela raiz.
Cochilei e sonhei que havia morrido e tinha encontrado como o meu quarteto fantástico - Kerouac sempre robusto e falante, John Fante cego, com as pernas amputadas, sentado na cadeira de roda meditava olhando ao leo. Mas foi o velho Buk que me saudou causticamente:
- Enfim chegou o idiota que pensava que era escritor - sorriu deixando a mostra os seus dentes amarelados de cigarros.
- Quem é? Indagou curioso como todo deficiente visual Fante que virou a cadeira em nossa direção.
- Um imbecil de um serralheiro de um lugar fodido chamado Brasil - Deu uma mamada na lock-net - Que queria escrever como nós.
E todos riram, menos Miller que estava de pé de costa olhando pela janela. Com sua calva e serenidade virou-se com a mão para trás e falou com a aquela sua tranquilidade:
- Deixe-o em paz, Buk - são pessoas como ele que nos adora e quer segui-nos. Merece nosso respeito.
Todos concordaram e passaram a me encarar de maneira mais receptiva, então lembrei que estava em Jeruz, a cidade que todos nós vamos depois que descarnamos daqui... Resolvi procurar meus pais e sai. No outro quarto olhei de relance e vi o mestre Dostoievski sentado atrás de sua enorme e robusta escrivaninha pensei em saudá-lo, mas estava muito concentrado em seus papeis. Despertei e no rádio o locutor fazia uma prelação sobre nunca perder a fé, após um samba de Diogo Nogueira. Levantei-me para apanhar o café na copa senti-me estranho como se cambaleasse e a cabeça sem prumo.
Aos poucos graças as doses maciças de Cervantes e agora Henry Miller ( o único que não riu de mim no sonho) vou recuperando-me - Acompanho o drama do aspirante a escritor Tony Brings (alter-ego de Miller) na angustia de viver sustentado por Hildred e Vanya.
Sai para comprar as pilhas para o radinho, confesso que fui cabreiro e se alguém chamasse o meu nome, sairia correndo com um rato assustado e vinha me esconder nos meus humildes aposentos.
"Crazy Cook" é hilário. Na tv o noticiário direto sobre a paralisação dos caminhoneiros que bagunçaram o coreto. Quase um caos. As cidades sem gasolina e nem gás de cozinha, os mercados sem produtos e quando tem o preço está nas alturas. Os hospitais sem oxigênios e outros insumos. A frota de ônibus reduzida.
Encerro a leitura do primeiro romance de Miller, escrito na terceira pessoa, mas autobiografia dramática - nem todos teriam a coragem de expor o seu drama pessoal e familiar.
Uma tormenta se aproxima. O céu escureceu e venta forte. As lâmpadas dos postes acenderam antes da hora. Um gato filha da puta apaixonado miou a noite toda.
A buzina da locomotiva da Vale, os mosquitos perturbam. Mato um deles...amanhã será outro dia.