cortinas
Ali estava ela, a fechar as cortinas para que não entrasse mais luz que aquela que ela queria que ele visse. O som de um dedo a desviar o cabelo demonstrava nitidamente o que nunca disse, que luz a mais a faziam sentir nua. O olhar subido com o queixo descido era o sinal de se esconder na inocência. No entanto, a sensação de tudo estar à mostra quando nem a si se via direito era o que mais fomentava nele. Porque as casas são por fora a forma como nos sentimos lá dentro.
degrau invisível
Moras no andar em baixo do meu, aqui tão perto, à distância de um degrau que só se vê cá de cima. Porque para ti estou ao teu lado, e abraçar-te é colorir-te a paisagem de sois a nascer. Mas como eu vejo as coisas, em cima de mim mora a solidão e eu estou tão perto dela. Porque no teu abraço todas as estrelas se poêm e eu fico sozinho com a noite.
não é que os abraços
Não é que os abraços fossem só abrir os braços sem que os peitos se encostassem, mas o cheiro dos cabelos na zona do pescoço não saía da cabeça. E toda a gente sabe do acesso privilegiado às memórias que os abraços têm ao entrar pelo nariz. Quando os abraços acabam são os olhos que se tocam antes das costas ficarem frente-a-frente. Então o que fica é um pedaço do peito a pesar na cabeça. Não é que o peito deixe de ficar de braços abertos quando está de costas mas toda a gente sabe que a cabeça pesa mais por causa das memórias que o peito guarda.
ver-te
Tinha dúvidas se te chegava, se te era bem da forma como vias quem te conseguia ver, compreender, saber quem és. Eu próprio não sabia se te via quando te encontrava, nas horas de te ouvir falar de ti, olhar de frente e dizeres que me amavas. Era sempre mais que me parecia desejares-me, mais de mim, mais como quem te sabe o peso do coração na mão, da emoção na voz, do mar em cada lágrima. Este outro que hoje sou nestas palavras talvez te veja como queres, pendente entre a dor e a dor adormecida. Este outro que te escreve adorna-te de ti, enfeita o que te diz de te sentir. E ainda assim ficas além, também em mim, como o que de mim ainda não sei.
Consoante
Muitos vestígios no lembrar,
Fortes evidências do adormecido…
Estive a lembrar a nossa primeira divagação acerca do que interliga o inseparável, e a meta da comunicação nunca saiu do abismo. Mas houve já a sensação de que ela foi atingida. Acompanha-te a minha sensação de que não te percebia a maior parte das vezes, e ao contrário, mas na mesma que era íntimo o que de nós falamos.
Consoante
As atitudes, num e noutro sentido, podem ter razões incompatíveis ao mesmo tempo, pelo menos enquanto encobertas, e a perspectiva nunca me deixa em paz.
Tanto as tuas eram difusas, como as minhas tentavam responder às tuas e não ao que pensava delas.
Pode ser que seja sempre assim, com mais ou menos claridade. Não quero julgar, Só constatar.
Mas isto adiava as respostas, ou as que provavelmente preferia.
As que se sobrepunham eram fruto dum árduo esforço de criação comunicativa, se é que (não) me entendes..
Aquilo a que chamava romantismo era tocado também por este tipo de fruto.
Era uma mistura de ficar com ir com chegar. Era o querer isso tudo ao mesmo tempo.
E no passado ser é igual a ir. Como ser a transmissão, a ligação o ser.