Acho que somos
Acho que somos a mecha
de um lampião sempre aceso
pássaros que ficaram presos
num cárcere de reminiscências,
acho que somos uma flecha
a proteger um amor indefeso
um sentimento tão coeso
que nunca aceitou condolências.
Acho que somos uma cidadela
edificada numa impossibilidade
que protegeu a nossa cumplicidade
em tempos de batalhas perdidas,
acho que somos algumas sequelas
que fizeram da nossa saudade
a maior de todas as tempestades
que já enfrentamos na vida.
Acho que somos um segredo
que cansou de ser guardado
como se fosse um pecado
sem nenhuma penitência,
acho que somos um brinquedo
que nunca cansou de ser brincado
que se alegra ao ser usado
não se importando com as aparências.
Acho que somos o diferente e o igual
que se acharam por necessidade
achando assim suas próprias verdades
quando a vida nos questionou,
acho que tudo parece tão paradoxal
mas pode haver felicidade
até mesmo na infelicidade
depois que a vida nos juntou.
Fragmentos
As vidraças estão
com os vidros trincados
que podem cair para qualquer lado,
para dentro ou para fora,
ferir calçadas onde não pisei,
cortar amores que não amei,
partir-se em mil fragmentos
do que já fui.
Mas o que seria eu
se não fosse eu?
Talvez um clone de mim,
que descendesse
das minhas angústias,
tivesse o gene da minha melancolia,
que confrontasse tabus
e andasse nu, em meio à procissão
dos que ditam regras
e nunca sentiram o cheiro
da flor que nasce no mato,
porque nunca ousaram
além do seu próprio extrato.
As casas em que nunca entrei
escondem vidas que não vivi,
altares onde não orei,
o dia em que eu parti,
fugidias horas em que não te amei,
camadas de sonhos que não dormi,
todos os anos em que ressuscitei
das muitas mortes desde que te perdi.
Na noite
Na noite
O silêncio predomina.
Uma aranha teceu suas teias
nas paredes dos meus limites.
Sou um novelo de lã emaranhado.
Almas que me espiam
carmas por expiar,
o vento batendo nas telhas
reflete a minha agonia.
Mas ainda há uma vaga lembrança
um teu sorriso que não fugiu
e eu acalento a esperança
com goles quentes de chá.
Do livro: O trem dos meus dezoito anos - editora Perse.
Absoluto
Não sei se vejo a vida
pela perspectiva de uma formiga
ou a de um elefante,
tudo pode ser grande
tudo pode ser diminuto,
um minuto pode ser um instante
e um instante pode ser substituto.
Não sei se estou líquido ou viscoso,
por vezes me derramo
do alto do meu aqueduto
como a força de um hidrante
apagando todos os vultos
que não estejam consonantes
com esse amor já reduto
ainda que equidistante
vazando de um oleoduto
escorregando o inconstante
para dentro de um atributo.
Não sei se me prendo a filigranas
para suportar viver de expectativas,
pois ao receber essa coabitante
da minha paixão em estado bruto,
me vi atiçado por fogos crepitantes
na porta do meu coração gasoduto,
que nomeou alguns representantes
para esse amor tão irresoluto:
sonhos, memórias, espera constante
para um dia colher os frutos
porque se um minuto pode ser um instante
um instante pode ser absoluto.
Ai como eu te amo
Penso nessa paixão absurda
no sentido de grandeza,
de sub-reptícios encontros,
lúbricos, encantados,
às vezes me belisco
e a dor me revela
que tudo foi real
que tudo é real.
Mas quem nos juntou?
Talvez, uma conjunção de planetas,
as cartas de tarô,
um relógio quebrado
que nos colocou
no mesmo minuto,
a mão de algum deus
do imponderável,
uma carta de amor
que selou nossas vidas,
carimbou nossos passaportes
para um tempo de dedicação,
amor quase irmão,
que fala e escuta,
que se emociona e chora,
que se dá e se deita,
que assina e aceita
o compromisso da alma.
E eu pratico esse entendimento
de te amar sem medidas
em todos os dias que acordo
e posso rever-te
ou ter uma lembrança,
posso sentir o gosto
mesmo à distância,
posso por fim agradecer
ao deus do imponderável,
posso me beliscar
uma, duas, três, dez vezes
e sentir a dor e ai,
gritar ai, gritar ai, gritar ai,
ai como eu te amo.
Foi mais ou menos assim
Naquele dia chovia, você se lembra?
Choviam desejos e eu quase tive um troço,
eu engoli a vida,
ela estava toda dentro de mim,
tudo que era nervo pulsava e eu tremia,
era como se ventasse uma maré repentina
e eu sentia concomitantemente enjoos e desejos
aspectos ambíguos da ansiedade,
enquanto eu lhe despia
meus joelhos batiam um no outro
se apoiavam mutuamente,
verticalidade sinuosa da vertigem da hora,
então você me beijou,
mordeu avidamente a minha espera
murmurou palavras desconexas nos meus ouvidos
e eu aspirei todo o ar que nos cercava
e lhe peguei no colo, me embrenhei no seu corpo
à caça dos anos passados à sua procura,
ao penetrar sem pressa a sua entrega
sorri novamente pra vida
e aquela minúscula cabine
pareceu-me imensa,
de repente era como se o horizonte
tivesse se afunilado no buraco da fechadura
e estivesse ali, por testemunha,
pois agora eu via esse horizonte
e me sentia grande, grato e homem.
Por precaução
Ata-me
com um fio dos seus cabelos
ao seu destino,
desde menino
estive preso ao seu futuro,
como procuro
por você nas minhas linhas!
as tuas vinhas
embebedaram a minha pressa
então fiz um monte de promessas
aos santos que são
e aos que ainda serão
por precaução,
e todos eles me atenderam.
Ter você foi como aprender andar de bicicleta
ter você foi andar de bicicleta soltando as mãos
ter você foi como ser o alvo e a seta
ter você foi como ter outro coração.
Do livro: O trem dos meus dezoito anos - Editora Perse.
Água de beber
Desde que bebi na fonte
que descobri em você
eu vivo a beber
sonhos que se renovam,
que se deliciam com o gosto
com o proposto
sempre acima do propósito,
uma roda gigante
que fica parada no topo
que até gira ao contrário,
pernas para o ar
e cabeça para baixo
e há veias refratárias
para o sangue em fogo
que deseja
além do desejo.
A sua fonte pode ser pura
pode ser impura
clara ou escura
que hei de beber
e sorver na sua boca
a água mais rouca
que eu possa lamber.
Em que outra vida?
A vidraça embaçada,
o quarto fechado,
ruas escuras,
o que foi feito de você,
minha lua?
As coisas perderam a graça
talvez seja preciso
que de novo a gente nasça
pra que tudo se refaça,
a graça,
a taça onde bebemos
prazer líquido, sólido, poroso,
gostoso,
a taça que nós erguemos
sem certeza da vitória,
que fora,
que hora foi aquela
em que os nossos relógios
marcaram tempos diferentes
e a gente se perdeu da gente,
nunca mais, de repente,
frente a frente,
dente com dente,
olho com olho,
eu não te escolho,
eu te amo,
eu não te acho,
eu te sei,
em que outra vida
eu já te amei?
Caso
Troca de olhar
também pode ser amor
a gente teve um caso sim,
de dor.
Paro pra pensar
e o tempo já passou
paro pra voltar
mas o tempo já passou,
a gente teve um caso sim,
só que um caso só de dor.
Tem certos dias em que as horas
não passam do portão
tem certas horas em que os dias
não passam de paixão,
você estranha o meu olhar
mas conhece o meu humor
a gente teve um caso sim
só que um caso só de dor.
Tem certos anos em que as chuvas
são chuvas de paixão
tem certas chuvas em que os anos
escorrem pela mão.