O tempo e a beleza
A beleza contempla-se
com tempo.
Enquanto o tempo,
de modo inútil,
se apressa
a toca-la.
A hipálage
Viver entre dois mundos.
Na perdição e no caminho.
Na ponte cabo para a margem.
Estar à frente e no verso do perigo.
Viver entre metáforas.
O verso e a estrofe em dor.
O relógio a (con) viver com o tempo.
A escada a dar passos alados.
O funâmbulo à flor da pele.
Entre dois mundos.
Entre metáforas.
Viver a hipálage,
numa raivosa folha de papel.
A hipálage é uma figura de linguagem que atribui a um ser uma característica pertencente a outro, com o qual mantém uma relação na situação comunicativa. Tal recurso é empregado para gerar determinados efeitos de sentido, tornando o texto mais expressivo.
beijos
são calmos mares
nas vagas da manhã
o rubor das praias
sabe a sede
são canoas de seiva
que se abrem
em águas fundas
são barcas
entreabertas entre cristais
trazem conchas em febre
que saciam
são soluços de vaivém
entre marés
melodia
são vagas em renque
de mel e gula
em espuma
são velas na maresia
que dançam tango
em ondas rubi
são ilhas
pedaços de chegadas
e partidas
lugares que na boca
se aninham
são andorinhas
em acrobacia
são beijos
poema de consagração
dentro de mim, tu és o poema
que nasce na brevidade
do verso
e anuncias a glorificação
numa oração de foice
em lume.
no meu corpo, gizas o ritmo
com labaredas cerzidas
à rima das palavras
incitadas pela licitação
da libido.
nos meus lábios, a cada pausa
recitas coplas
com cada palavra do meu corpo,
sem abuso de prosa,
upamos em sinestesia
como cavalos à solta
num poema de consagração.
O trigo loiro e os fuzis
Entre o loiro e ondulante, trigo
Vão mechas perdidas.
Atravessam a espessura dos Homens.
Trespassam meninas (os) como papoilas abandonadas.
Lugares naufragados.
Foram terras [desbravadas],
com a bravura dos arados e das alfaias.
A aveia incendiada.
Ceifada pelas balas.
Pombos e cegonhas* de peitos queimados.
O lume vertido nas agulhas dos loiros trigais.
Em braseiro estão as arcas e os prados.
Estão da cor do sangue derramado.
A maldição fermenta entre os loiros trigais.
A maldição cresce entre o trigo.
Com o fermento dos fuzis.
O trigo e as searas são os ninhos,
dos Homens que usam nos Homens, canzis.
* Cegonha (leleka) em ucraniano) é o pássaro oficial e favorito dos ucranianos.
a planície
a planície abre-se em manso estar
no deambular das horas das papoilas
na vagarosa brandura do trigo o restolhar
em grande plano o sol a pique
tinge de amarelo os dias inocentes
e a paisagem pintada no recato do olhar
ergue-se em raízes no meio do vento
abre-se na planície recortada pela noite
o desabrochar da flor em mel
e sob as folhas da azinheira
acordam as cigarras do sono fiel
em contemplo da terra perfumada
de segredos e mistérios enluarados
embala-se a cal que escuta a parede
onde amor brasio desp`amados
nas rodas dos vestidos nascem
seduções no fôlego de um cantar
monotonamente inebriado de saber
ecoa entre louros favos um brilhar
vagarosas as horas aram a paisagem
adubando com candura da existência
de silêncio prenhe a terra d'ourada
semeia na alma o solo da essência
a planície em floração de alfazema
desprende roxas pétalas de saudade
para no pôr de sol alaranjado oferecer
a ternura do amanhecer à bela amada
com a profundeza da planície na palavra
a paisagem n`olhar em companhia risonha
avança o sonho nas asas d`uma cegonha
flores de bem-me-quer
No malmequer a chuva continua miudinha.
Para apanhar a fragância debruço-me na lufada do vento.
Ao vento que desfolha pétalas. Pétalas que adivinham buscas de amor.
Meadas de suspiros. Choros de mansinho.
Ao desnascer o dia, o orvalho rompe as palavras. A voz
mansa dos teus desejos. O lento soprar dos versos com que
ateias o meu ventre. Com que pintas à mão o brilho do meu olhar.
Com que soltas a Primavera na minha boca.
Como a voz que asperges em canto, decompões
no nácar do meu íntimo, também desfolham da sépala
as pétalas com que adornas os meus seios na inclinação
dos lábios cedidos.
Abre-se e fecha-se o malmequer estilhaçando gotas
d`orvalho. Também em nós abre-se e fecha-se o corpo
entumecido no suor do amplexo. A nudez
abre-se e fecha-se. Abre-se...solta o
deleite. Solta o pólen.
Docemente, no outeiro das tuas mãos desabrocham flores…
…flores de bem-me-quer.
cais da ilha
O nevoeiro sorve montes e contornos. Sob o chumbo desfraldado tranças os teus sonhos.
Ilusões de ser pasmado. Sombras. Entre brumas, vem veloz a nostalgia.
Tu partes. Partes em dia cinzento mar. De coração vazio a chorar
a ilha. O lugar da minha tristeza.
Partes incerto e de olhar disperso. Melancólico.
Adensado nas coisas mínimas. No silêncio da chuva.
No pó do sonho. No rugir velado dos dias.
Na mudez dos grilos.
Partes no Inverno.
O Inverno que rumoreja no peito. A estação talhada
na fímbria do mar, onde a indolência
dos céus enfeitiça o coração
submerso em solidão.
Emudeço na rocha fendida.
No cais. Nós de vento compõem ondas
cortadas pela quilha.
No cais a matar saudades é o fim.
Quanto doí amar? É sempre?
Segredo de mãos ausentes nos confins do
mar.
Na ilha.
passo a passo
passos, em passos vão
e em vão passam.
com os primeiros,
o que é longe, a perto chegarão.
se lentos, apressam-se.
em roda
enganam o tempo.
inquieta a alma
vai em passos perdidos.
nas areias, em passos se tropeça.
passos,
não sepultam pedras.
o caminho,
com passos se faz
a cada um, um passo jaz.
passo a passo,
entre passos, caminha-se na vida.
com passos seguros, se vai
sem temor ao dia.
em passos largos,
na noite
vem o comprimento do medo,
no eco da rua ou entre paredes.
do passo atrás, ao
passo em frente,
passos sem fim.
passo a passo
para o passo da liberdade.
meus gomos de toranja
abres-me o corpo com o olhar,
por entre os sulcos
do frondoso pomar
e saboreias os meus gomos de toranja
no intimo pomo agri-doce,
fruto vivo rosáceo, exaltas
a fome inadiável dos teus lábios
carnudos
nacos talhados pelo perfume da pele
sedenta
da polpuda seiva
do corpo
onde a foz dos dedos
encontra o afago ígneo
em torno da flor trémula