Poema em pedra e água
Eu vi o amor mudar o abismo onde se desenhava a solidão
Eu vi as águas desatadas de formas caminharem até o mar
Eu vi a noite livre da sombra desfraldar o manto da poesia
Eu vi a palavra dispersa da boca se transformar em poema
A estrada se desenrola e separa a paisagem em dois lados:
A palavra crua e indomada e o poema, um sonho de papel
O poeta toma da palavra dispersa e nela urde uno o verso
O verso a inundar o papel de líquidas vogais e consoantes
Qual o artesão cinzela o mármore na sua faina de criação
Exercitando as quadraturas geométricas, a vida em pedra
O poema é a estátua em movimento no seu fluir do tempo
Tal o vento que molda a pedra e define o contorno do rio
Que a água um dia preencherá na sua ordenação fluídica
O poema é a corredeira veloz, mas também doce remanso
Por Amor
Este poema, como uma espécie de homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, rompe com meu estilo usual de escrever, sem abandonar a veia surrealista, entretanto, que é minha forma de dizer que a poesia foi, é e sempre será um gesto de rebeldia.
Ah vida, o que não fiz por amor
Janelas abertas, mundo fechado
Versos avessos, verbos errados
Buscas concretas, edifícios virtuais
Ruas sujas e caminhares descalços
Absolvição silente ao pé do cadafalso
Por amor, eu me fiz em verdade
Sofri, calei, berrei sempre sem rima
O ser que fala, aspira ao dom de criar
Perfaz do sacrifício em seu desejo
O agridoce sabor do desconhecido
Meu próprio sabor de ter existido
Por amor vivi, morri, sangrei, sorri
Sonhei sonhos leves, sonhei pesadelos
Briguei co’a escuridão na paz da luz
Ao pé dos ipês, ouvi o bem-te-vi
Quis ser o céu azul, o sol, o sal, o cio
Ao ver a revoada das andorinhas
Sem medo me lancei em ti, vida
Nas águas, nas marés, na chuva
Fui incompreendido, obra inacabada
Por amor, fui pai e, assim, o filho
O poeta (o homem) é apenas sôpro
O futuro é o hoje, o oblívio da morte
Diga-me o que resta fazer por amor?
Rastro
A noite emoldurada de trevas deixa seu rastro de serpente
Seu som, gritos negros, arremedos de austeras lamentações
Rompe o silêncio sob o céu no azul profundo da madrugada
Imagens tintas de sonho ao brilho espectral dos relâmpagos
Inquietos, mas que trazem o encanto e clamor da primavera
Com seus olhares secretos, seu hálito floral dourado de sol
E o poema se faz leve como pássaros nas árvores da palavra
Feito de seus corpos de cristal, a refletir os brilhos celestes
O poeta afogado em tantas estrelas, perquire o firmamento
Alçado no véu noturno e o verso brota em sua mão trêmula
Para despertar da quimera um som de carro vem da estrada
Tão veloz reverbera na sua pressa e mal devolve a realidade
Que já sua presença apressada, logo se perdeu na distância
São qual sombras aceleradas a passar pelo asfalto das horas
Linhas não escritas que se desenrolam dos carretéis da vida
Jardins
Agora que o inverno derrubará as folhas
avermelhadas pelo outono que se retira,
Agora que o verde das colinas é apenas
uma lembrança qual o trilar dos pássaros,
Já ouço o chamar cinzento das nuvens
à chuva fina que esmaece todas cores.
Caminho à beira das casas, despercebido,
enquanto meus lobos correm nas planuras.
Livres pelos campos onde certamente estás
Ainda sinto em mim o toque de tuas mãos
vívidas a ansiar pelo encontro das minhas
Sigo andando e meu pensamento é distante
Como os jardins floridos da adolescência.
Recordações assíduas de cada dia sem sol
Na distância de teus olhos, doces e vivos
De tua voz mansa e quente a me chamar.
Cada detalhe de tua existência vive em mim
Prossigo, em silêncio com a voz embargada
Meus versos partidos numa poesia inacabada
Na tua ausência o inverno jamais me deixará.
Sublime
O que seria de mim sem o sublime existir dessa moça
Que tomou o lugar de onde viviam angústia e solidão
Como não admirar a plenitude da juventude madura
Que concilia serenidade e graça, que nela florescem
Como não imaginar que é seu riso que move estrelas
E que a lua só brilha no céu, por inveja de seu brilho
Minha musa me fez cantar e me sentir livre se canto
Como descrever o inefável que ne acorda a cada dia
Talvez seria imaginar que a rosa vivesse eternamente
Antes dela, por vezes, tudo foi só o papel em branco
Sua vinda fez um murmúrio tornar-se a voz dos anjos
Ontem quando o poema era só um desejo da infância
Hoje faz estas linhas indomáveis, o longe é justo aqui
E quando a conheci, foi então compreendi a verdade
A vida necessita bem mais que comer, beber e dormir
Impõe sofrer para ser homem, amar para ser um deus
Não obstante, ela me fez mais, me fez renascer poeta
A peculiar sina de Abissimor e Ermentior ao encontrar o poeta...
Abissimor:
Tenho minha boca cheia de lamentos e palavras impronunciadas
Tenho minh’alma repleta de tenazes tormentas, o escuro infindo
Sou o sonhador que marcha pelos campos que a lenda esqueceu
Ermentior:
Sobre meu cavalo que cavalga os ventos, sigo em busca do verão
Busco dias ensolarados em festa de cores e me esquivo da febre
Busco a alegria como o arauto que acorda a vila com sua trompa
Abissimor:
Meu dia nasce com o coração ferido, trespassado, vai a sangrar
A noite de cobre vem a meu encontro, meu país é sempre noite
Vejo bocas pálidas repletas de cantos que não se atrevem cantar
Ermentior:
A primavera se faz estampar em flores no peitoral de meu cavalo
Sou o cavaleiro do Lírio, sou o dançarino que revoa o pó do chão
Caminho entre as árvores, os olhos na lua que me cobre de beijos
Abissimor:
Minha noite se cobre de nuvens, tudo é sombrio na névoa espessa
O relógio me cobra o tempo, com suas engrenagens já tanto gastas
Entre o ar morno da floresta, o feno desprende seu hálito de luto
Ermentior:
Trago o consolo em mim, cada pedra do caminho é um monumento
Uma aurora de mistérios se apresenta à minha frente no horizonte
Lanço-me bravio e proclamo ao silêncio que é chegada a minha voz
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O Poeta:
Os ponteiros se aproximam da meia noite, ao longe se veem clarões
É a chuva que se faz anunciar, bradando com reclamos de trovões
Vem aos ouvidos como antiga memória tão vívida quanto cotidiana
Soa a trombeta de ouro brilhante a anunciar que é hora de acordar
Hora que clama pelo poema com suas folhas brancas sobre a mesa
O último trem
Tênues imagens respiram no ar rarefeito da minha memória
Que conspiram silenciosamente a parecer que de fato as vejo
Não como miragens ou ficções que são, mas reais e presentes
Tudo acontece categoricamente contra uma nova distância
De seres que nunca estiveram presentes, todavia são um só
No outro lado da rua as pessoas transitam, inscientes a tudo
Na gare da imaginação o trem já embarcou seus passageiros
Os trilhos dessa estrada de ferro seguem a direção dos olhos
Fixos no sonho adiante, mansos, perdidos na distância azul
Todos os viajantes cada um sentado no seu lugar, soa o apito
A música toca suave nos vagões preenchendo-os de nostalgia
As horas impulsionam, discretas, os ponteiros de meu relógio
E a lua, completando o cenário, traça seu arco no céu noturno
Brancas nuvens leves que imitam ovelhas sob a prata do luar
As frases que nunca foram ditas amordaçam minha coragem
Desembarco na estação da desesperança com todas as malas
Meu trem segue deixando um rastro de fumaça branca no ar
Minhas imagens e miragens se vão com ele sem dar um aceno
Aos poucos calam no silêncio dessa plataforma sempre vazia
Quantos trens haverão de partir até ter meu coração de volta
Prendo a respiração e as lágrimas. A sina do poeta é ser assim.
A todos luso-poetas
Poucas vezes estive em lugares onde pude ser 'eu' de verdade. Não que eu seja uma pessoa fácil de lidar, um primor de atitudes. Mas ao sentar-me e escrever, parece que incomodei as pessoas um tanto mais. Fui criticado e minha pretensão de escrever um livro adjetivada de absurda (hoje já caminho para completar o terceiro).
Também me senti incômodo por pintar e porque para pintar tinha que deixar meu cavalete montado no meu escritório de casa por vários dias. Não sou um pintor proficiente, estudado, formado... sou um autodidata que se arrisca às formas.
Aqui tenho podido ser eu, deitar às linhas versos que brincam com a minha querida língua portuguesa, ler versos formidáveis de poetas maravilhosos, sentir-me entre pares.
Com a aproximação do Dia Mundial da Poesia [21 de março] quero antecipadamente deixar aqui minha homenagem a todos os escritores e poetas que fazem deste lugar, um ótimo lugar para se estar. Grato a todos pela sua leitura de meus escritos e por permitirem que eu cresça lendo o que você escrevem.
Salve Luso Poetas, lusitanos ou brasileiros, pouco importa. Salve a todos!
Lucidez* (por alguém que conheci)
* Ela o escreveu como comentário, mas tal poema, não cabia só num comentário e deveria exibir que tinha vida própria, assim pensei um dia
Lucidez*
pelo sol poente dos meus olhos
sinto a carícia imprecisa do poema
a solidão do verso resplandece
uma lua sinuosa espreita
o céu da minha mente
astros rebrilham na fronte
cálidos sons prenunciam
é chegada a hora do sonho
convulsa
-no peito extremado-
constelação de estrelas-letras
agregadas ao calor dos dedos
palavras inquietas na alva
dançam no afago da utopia
há uma desnuda certeza
- nascemos num instante tudo ou nada-
*K
A palavra
A palavra pisada é a cidade
A palavra segredo é uma criança
A palavra medo está na distância
A palavra água é uma meia verdade
Que brota dos poros de quem sua
A palavra carinho é uma rosa
A palavra céu é a cor azul
A palavra longe está lá no sul
A palavra ira é uma coisa furiosa
Que ferve no sangue caído na rua
A palavra jardim guarda lembranças
A palavra silêncio é algo não dito
A palavra borracha corrige o escrito
A palavra alegria pertence às crianças
Que se soubessem o futuro não iriam crescer
A palavra ar é o pulmão que respira
A palavra deserto é coração sem amor
A palavra sol é feita de luz e calor
A palavra adeus é de quem se retira
Retiro-me, mas fica experiência de escrever