Tragédia
Porque torno a te escrever se teus olhos verdes não irão ler
Pois não se trata de escrever o que fomos tu e eu, certo dia
Fosse pela tragédia de alguém que contasse alguma história
Mas sou eu o que amanhece de olhos úmidos a cada manhã
Como me pesa ter as asas úmidas, como me pesa esta pena
Minha tragédia, razão do abismo, foi não poder despedir-me
Não poder como a quem parte, desejar boa ventura, vá bem
Foi apenas um adeus caprichoso, mas que nem mais importa
Não se conhece o que há depois da morte, qual sorte d’alma
E depois que fechastes os olhos, ainda há cor? Ou há rumo?
Aqui a tragédia decora o quadro e a caminhada fica tortuosa
A lembrança é uma síntese vermelha, cravos sobre as águas
No papel manchas negras para ocultar essa dor sem sentido
E volta-se ao velho livro já lido uma e outra vez e mais vezes
Que mesmo assim vai murchando qual secam as flores rosas
Na paisagem crestada que, então, tem orlado minha estrada
Com remos de palavras venho remando entre ondas escuras
E as sombras podem se confundir com o alento e com flores
As flores que se alimentam de lágrimas, sem nunca ter nome
Dos nomes e nomes que eu disse depois e só chamei o vazio
Por vezes os poetas inventam palavras e as palavras mentem
Ouvi teu nome e não estavas quando a morte bateu à porta
A lembrança é a síntese de tudo, do olfato, do gosto, da pele
É também da tragédia, o dia seguinte que jamais se quis ver
Retalhos
Há alguns dias que a inspiração se escondeu
Nesse tempo rapinado de cotidianidade nua
Nestes tempos que meus pássaros agonizam
São-me tempos em que amordaçam os anjos
A morosidade abrumada, tempos tão iguais
Renego-me a mera condição de espectador
Solto amarras vibro música, pintura, poesia
Resisto, me ergo, experimento abrir as asas
Rebelo-me aos anjos, pois que tenho a alma
Ainda que não faça da noite uma alvorada
Não me afogo com essa sede de horizontes
Essa sede de chuva em tempos de desertos
No exílio do orvalho, no alarido dos órfãos
Na sede uivante, desaguada que nos cerca
Renasço a poesia, sôpro do recreio infinito
Por libertar-me os pássaros de um desterro
O seu folguedo de asas, imaginação insone
Tece alinhavos de voo, aventura de cristal
Aos críticos de plantão: Eu sei que sopro (ô) não tem mais esse acento diferencial... mas eu não gosto. Fica, por vezes parecendo sopro (ó). Pois bem.
Infinito
O cinza amordaçado no arrebol é a minha voz que lá canta
No meu desolado voo de pássaro na chuva, a chegada crua
D’um murmúrio liláceo incessante quando vêm o dia e o sol
Que não repõe a palavra mutilada quando era apenas noite
Quando a abriguei na garganta aprendendo escalar o vento
Um pássaro morto não voa, só retrata a solidão azul e alada
Que o silêncio a fez prisioneira, nas mãos caiadas da bruma
Os fidalgos senhores do silêncio, não querem o meu cantar
Mas não aprendi tramar jaulas e nem aprendi erguer muros
Quanto chamei, quando chamei, tenho chamado até nunca
Confiei ao vento meu desejo de estar sem idade, sem medo
Sem piedade por mim, sem uma morte da qual me esconder
Também sem querer ser anjo ou profeta, sem ferir ninguém
As pedras, as plumas, as folhas do livro e o fogo subjugado
Sejam apenas o conhecimento do mágico delírio que é amar
Não vim mudar a civilização, só escrever um poema à moça
Tirar a máscara e, na última linha, dar de cara co’o infinito
Noturno 6.8
***
Quando morri - e esta não é uma retórica ou força de expressão, morri de verdade por alguns minutos em 2015 - tinha certeza que jamais voltaria a 1. viver; 2. escrever; 3. beijar de novo; 4. como consequência do no. 1, fazer outro aniversário.
Era fim de tarde e quando anoiteceu o destino quis que eu voltasse a fazer tudo isso. Faltava exato 1 mês para meu aniversário. Eu tinha 59 anos e decidi que se vivesse, a cada ano no meu aniversário escreveria um poema e se chamaria Noturno.
A fria imagem de mármore cinzelado, imitando pássaro
Que pulsa na paisagem qual o conluio entre dois reinos
Amanhece em meio à chuva neste tempo de lembrança
Ao qual o poeta reconhece, mas nem sempre o realizou
Ser fulgurante outrora nascido sob o manto dos astros
Sua cintilação conduz-se no negro voo no seio da noite
A nostalgia realça seu brilho e vem para inaugurar a luz
Perpassa o ouro em suas palavras, qual o fogo da ilusão
O pensamento que jazia adormecido, ressuscita seu ser
O lobo que sempre alimentou e com quem viveu em paz
Na visão interior de modo ambíguo em fumos de alegria
Imagem de um sonho que se esquiva de toda a ausência
Guarda um jeito perturbado, tanto áspero pela angústia
Ora a face mais serena, calada, ora o gárrulo, o espanto
De suas prédicas negras nos amargos versos cicatriciais
A sombra que invade o carvão do silêncio d’outros dias
Em meu voo solitário observo meus inimigos à distância
Os quais atraio com o suor de falas acesas e inflamadas
Aqui descortino meu ser, pelo avesso, meu avaro andar
A brandura que não ostento, como a todo corpo de pó
O tempo marca mais um momento de um zodíaco triste
Além dos campos áureos de trigais e lilases de alfazema
Em que o vento balouça novas hastes florais nesta vida
Em memórias onde também se agita alva roupa no varal
O abandono do pássaro pulverizado repetido outra vez
Nesta hora de um silêncio já cansado de tanta infância
Estampido
Deixa que a lágrima ultrapasse a margem de teus olhos
Deixa que o som profuso das ondas do mar te acaricie
Ainda assim segue tua ronda cantando com o coração
Encontrar a luz do sol é apenas uma questão de tempo
Cuidar que há caminhos de paz ou caminhos de guerra
Caminhos que podem fazer do teu irmão, o teu inimigo
Deixa que o eco de nossos passos surpreenda na noite
Deixa a tua alma segura entre terras firmes de sonhos
Ainda assim saibas que as sombras estão em equilíbrio
A alvorada trará a nova claridade e a água a seu curso
Toma-me a mão enquanto o sol brota vermelho do mar
Será assim que venceremos os atalhos até o dia nascer
Deixa que através da noite os sonhos imolem tua pena
Deixa que o silêncio cale a tua culpa diante do olvido
Ainda assim colonizadores da tristeza falarão de amor
A música da noite virá a julgar teu medo, tua pobreza
Se te perdes a balbuciar nos idiomas que outros falam
A falar sem amparo ou encontrar a palavra apropriada
Deixa que se desvendem céus sobre vozes e o silêncio
Deixa que a sombra cubra as sendas e a transparência
Ainda assim verás homens solitários, mulheres sozinhas
A vida é canção inescusável é preciso ferir-se, afundar
Buscar o estampido nunca pedir perdão de ser como é
Alice no país da poesia em 3 atos.
I
Arco-íris, diante dos olhos, pulsantes e a via-láctea na bainha
Magnitudes indistintas, meu sangue irriga a venturosa árvore
Na parte da noite que não brilha, o opaco a tingir suas águas
Um olho de luxo, outro simples, a água, o universo e este sol
Não é meu sol é o verde. O segredo da vida é o seu não estar
Estas meninas e seus corpos, teus copos, teu corpo cascavel
Folhas, ramos, flores, frutos de ouro essa é a nossa mortalha
Piam pássaros vermelhos, o cio em teus olhos vermelhos, zelo
Douradas prímulas, plúmbeas plúmulas mesclam luzes e olhos
Nestes traços que surgem no livro, à espreita atrás da cortina
II
Deixamos a raposa, as uvas e o lince voluptuoso, zooteca zero
Nos querem nus, a desatar os nós, um oásis ao pobre escriba
Signos ígneos negros, ocas marcas, ouriços, ouro, opacidade
Alegram-se com a letra que mancha o poema monogramático
Tudo de que te desfazes e dissipa no escândalo nu do sonho
Às vezes um rosto apagado, boquiaberto, um pássaro súbito
À noite na casa vazia sou o sapo que espera o beijo salvador
O dormir que não se dorme, mas esvoaça em ritmos ocultos
Despido de pé no chuveiro, meu permanente e ácido humor
Minha expressão imprecisa para um gorjeio mais prolongado
III
Há que se conhecer a morte e seu desejo de dureza infinita
Em plena alvorada, o que possa ter de consciência culpável
Olhamos a obra, tal algo incontido na erudição dos saberes
O livro, esse objeto apaixonado, se amplia se impõe e reduz
O que há de confuso em um breve caos não é amordaçável
A liberdade viva é um déjà vu, o recorte de cenas obscuras
A serpente que acena ao falcão lá acima um pacto de viver
Devemos permanecer sempre crianças e mais que um sonho
Quando se decline o nome do gato, o gato salte sobre o muro
Despido ao chuveiro, vou desdobrar meu punhado de sílabas
Tecer à mesa do café encantadas imagens, dar início à manhã
Vitrais
Ah, eu queria impedir a aparição de tua figura
Fechar com cadeados a tua lembrança em mim
Silenciar o teu perfume nesta teia tão confusa
Nutrir o olvido c'as exuberantes imagens tuas
Fingir que, de repente, não me roubas o fôlego
Que os teus olhos tão mansos quão profundos
Já não me fitam de soslaio, quando me distraio
Teu corpo nu, demasiado meu, tão vertiginoso
Que, por decoro não revelo, tanto me inundou
Felina, doce e incontrolável ignorando as portas
Que eu punha para negar a nossa cumplicidade
Disso tudo, agora me sinto incapaz de esquecer
Ao invés, faço, à maneira de um eco, é ressoar
Eu te multiplico, reinvento em tantos espelhos
E já que estou como um louco, que fosse feliz
Na sonoridade de tua lembrança que me toma
Dourada, marcante, por vezes, serena e ligeira
Por vezes com a profundidade de um lamento
Noutras desesperada e violenta qual o silêncio
Mas sei que falharão as tentativas silenciar-te
Pois não há como calar algo da história de nós
Que vive a buscar mais, mas jamais incompleta
E o tanto que já te quis, derramei neste poema
Onde eternamente bailará tua luz intrometida
Através dos vitrais dessa minha eterna solidão
Haikai Floral
Um quadro!
São as flores da prímula
quando tremula
Floral dissolvido
pelo vento perdido
vagam sem fim
Suavemente
caem gotas de chuva
em minha janela
Incêndio
O incêndio instalou-se no meu peito
Entre meus braços trêmulos
Choro um não regresso
No negrume da noite
De céus sem estrelas
E vagalumes despedaçados
Nunca saberemos porquê
A certeza de uma perda
O sangue nos olhos
Uma última pausa, respiro
Arde-me a ausência
A cegueira eclipsada
No temido espaço do não
Traças
O assovio do vento soprou folhas da veneziana
Os espíritos famintos clamavam na noite cruel
Um gemer de afogados, os barcos na tormenta
O grito longínquo no jardim, ecoou na calçada
As árvores frondosas se desnudam, uma a uma
Foi assim que partiste deixando o silêncio aqui
Nem olhou atrás, na vereda gris da madrugada
Agora estás de volta silenciosa qual uma serva
Servil como uma gueixa, sem dizer teu intento
Espreitando o escuro qual um estranho animal
Esperarás que eu te receba, te ofereça flores
À sombra daqueles dias, te digo, tudo morreu
Da semeadura vã, vem uma colheita arruinada
Adeus cerejas maduras, calda doce qual o mel
Nem as frutas, os lírios ou mesmo os rouxinóis
Também secou-se nosso rio povoado de verões
Não há caminhos a seguir num mundo de traças
Pela garganta o gosto amargo d’um nunca mais