moledo em agosto
tapo o sol com as mãos
porque não consigo
agarrar o céu
que mais se faz
quando se tem seis anos
quando o corpo
é tão sincero
quanto a espuma
a areia e as conchinhas
que colhemos
como aos dias
de horácio
que nunca saberei
quem foi mas sei
que o sal dá sabor e a vida
é ontem hoje e amanhã
como os retratos com pó
do vovô manel que
está sozinho desde maio
e eu gosto tanto
de o recordar assim
a desenhar faróis
na nossa tenda
indiferente ao ruído
de gaivotas como
a titi do biquíni azul
com a boca cheia
de bolacha americana
e de conselhos úteis
como vamos para
a sombra sai dessa
água despacha-te
é tempo de ir embora
e o ruído de repente acaba
já não tapo o sol
já não vou agarrar o céu
o caderno do vovô está
com pó na estante a titi
cala os silêncios dela
ainda tenho aqui um resto
de sal conchas e dias
hoje amanhã e sombra
a estação das supernovas
como sabem
tudo começa com o açoite
das noites e tiros
de tequila
e cada segundo
é um puro segundo
tão virginal
que um gajo nem suspeita de que
é espera
radiação submersa
prestes a ser caudal
não queria nada
esquecer esse retrato
de refugiado à luz da praia
que selou os meus instantes
quando ainda havia selos
e eu curvava a letra ao cite
carnívoro de uma boca
e às supernovas
trancadas no armário do quarto
até o conjuro do sexo
ou uma discussão com o meu pai
as vir buscar
rostos do oeste
perdoei-te bem mais do que
um verso quebrado
os hurras no picadeiro
os ecos do desfiladeiro
o polegar invertido
sobre a arena cada vez mais vazia
perseguia-te há muito
por detrás das lonas
que escondiam grades
que escondiam feras
que escondiam rostos
não máscaras,
como querias fazer crer
e entre nós
- os intérpretes do teu guião
de sangue e lantejoulas
as criaturas de fim de turno -
estava quem, na sombra, te reconheceu
quem da fímbria da tua túnica
fez seu hábito
quem cerziu a pele com o teu verbo
quem engoliu o sexo frio do teu sopro
quem, da frisa lateral,
se avistou, entre os humilhados e os proscritos
foi no deslumbramento da revelação
que te abandonei
e fui sonhando outros sonhos
errando outros erros
fingindo a realidade que sempre me negaste
e pela primeira vez
pude ouvir a tua voz
chamaste-me ingrato
blasfemo
pedaço de vazio...
expulsaste-me do teu poema
e eu agradeci-te:
para memória,
basta a dor de que não me quero desfazer
para fé,
basta a que nunca tiveste em mim
genitivo
que diurna condição é esta,
que me conduz à luz dos bosques?
ao momento em que nascemos
um do outro?
olho à volta
sempre foi a minha única forma de olhar
para dentro
temo os umbrais de fogo
que são os teus
cabelos nos meus lençóis
devolve-me quem eu fui
à virtude de ser azul
como uma faixa nua de lua nova
(na verdade antes
de ti nunca escrevia com cores)
sabes que não passo de mais um verso
pesado lento pretensioso deserdado
pelo vento
sabes que estou a um fôlego
de distância mas
nunca tive muito jeito para respirar
o estertor do tempo veio dar à costa
é urgente estarmos juntos
é urgente separarmo-nos
tu celebras o temporal
eu sigo pelas falésias
zona de rebentação
ao sulco do gume da tua língua
filho das rosas
leva-me até à zona de rebentação
sê falso, acompanha a minha cobardia
a prece mais comovente que já ouvi
estou preso a ti
como a presa ao predador
trocámos a planície pelo desfiladeiro
a contemplação pela marcha
o silêncio pelo silvo das feras
subimos ao último patamar da vida
e descobrimo-nos no fundo um do outro
mercenários do tempo
e do vazio
pirogamia
vales pelas cinzas
que deixas e eu
sou mais de alarmes
e extintores
para quando o mundo acabar
nesse dia teremos pouco
para dizer um ao outro
talvez se possa arranjar
um candelabro
sem velas
são assim os rituais
de quem sempre teme
o caminho de regresso
a um fósforo
e aos matagais
autumn leaves
não serei o primeiro a confundir
o outono com a queda das folhas
desta velha secretária
para o cesto dos papéis
supondo serem o gesto dourado
de um plátano generoso
a que eu assisto com enlevo
para instantes depois depositá-las
com ativismo de burocrata
no ecoponto do outro lado da rua
assim como um recluso
com amnésia mas arrependido
irei à janela tantas vezes
contemplar o contentor
encardido dos dias idênticos
tentando escutar na distância
as palavras trancadas lá dentro
a conversarem poemas
ardentes e velhacos
inocentes e falhados
à espera de que alguém
as encontre e as segrede
num sortilégio de olhos
fechados atrás das mãos
como fazemos em pequenos
quando somos surpreendidos
pela chegada súbita do crepúsculo
pelas mutações do corpo
pelo fim do verão
no rosto dos nossos pais
madalenas e tangerinas
nunca vou saber
o que é adormecer cedo
equívoco próprio
de quem se deixa levar
pelo pecado insciente
de um odor
ou de um verso
segredos idênticos
de alguém que fala
de minerais como de frutos
e de desastres africanos
como de fêmeas reticuladas
à maneira dos citrinos
porque em dias de carne e osso
tudo o que seja mais do que
brisa quente e água fresca
é falso
como a lanterna mágica
da nossa meninice
essa dança de roda
à volta do tempo
em que perco o fôlego
e regresso de súbito
à inspiração
21-6-91 2:45 AM
menos dentes e mais língua, miúda
empurra-me agarra-me
como se a queda fosse iminente
tiro o baton da carteira
inalo duas linhas
e estou dentro de um sacrário em chamas
a eternidade é já, sabias?
porque não vens confirmar comigo
agora mesmo
calcinar o tempo
entre os dedos nos meus caracóis
queima para nós um kamikaze
há para aí um dj vagabundo?
my bloody valentine
a noite inteira
mais um acorde cortante
para as docmartens sujas de lama
do quintal nas traseiras da tua casa
"já vamos mamã!"
tenho as sardas húmidas
da tua boca de noviça
e estou acesa do pericárdio ao perineu
vem ser a minha pulseira
a minha nova prótese
o acorde de uma balada manhosa
que eu amo mas com vergonha
como a uma comichão
como a um pecado
vem comigo junta-te à alcateia
estamos encerradas numa jaula de acrílico
e quando a luz se apagar de novo
vou precisar de uma resposta
tu não?
tríptico da virgem – painel central
em memória de paula rego
às vezes ainda regressa
com o carinho cru
da parturiente cheia
de mãos vazias
acomodando brasas
sobre os mamilos
porque se esquece
de cor
dos anjos que seguraram
as pernas abertas
à espera da sarça sempre
ardente da mais estúpida
verdade errando
pelos homens de onde se elevam
as primeiras estrelas de um
brilho puerilmente
negro
trago-a sempre comigo
de um gole só
responde-me com a forca
delicada dos braços
e trinca-me o crânio
do tamanho da sua boca
pois apenas nos é dada a conhecer
a ternura dos abandonados
diz que nunca
mas há sempre um dia
em que nos cruzamos
com aquilo que somos
com os berços mijados
as saias arregaçadas
a sinfonia dos acamados
houve tempos em que parecia
o espectro da montanha
o gigante de mim mesma
tão longe como um círculo de cores
sem falsos silêncios
antes um segredo
lambendo-me as orelhas
hoje tenho de ser eu
a limpar-lhe a saliva
esquivando-me às dentadas
a colocar-lhe a mão
dentro das cuecas
a sussurrar o nome
de cada uma das feras
com quem se deitava
atrás da tela
sempre foste das aves
e decerto sabes
uma ou duas coisas sobre vertigens
e quedas
por isso diz-me se te lembrares
qual o preço
certo desta montra final