[gira no gira-discos manuel de falla]
um poema no instante em que é escrito (mero impulso, nada mais do que isso):
gira no gira-discos manuel de falla
e digo onde o erudito onde o povo
onde
não há fronteira aqui
a arte não nasce para elites
mas para todos
todos
como se diz nem só de pão
vive o homem
que haja então pão para haver vida
não mera existência
enquanto isso escuto falla
canção do fogo fátuo
Xavier Zarco
[trago a casa agarrada à minha pele]
trago a casa agarrada à minha pele
entre palavras presa
a pele
às paredes aos móveis aos retratos
e uma voz que suspensa
entre pó
bailando ao som da luz
que lentamente cruza a memória
Xavier Zarco
SOB EPÍGRAFE DE FERNANDO NAMORA
SOB EPÍGRAFE DE FERNANDO NAMORA
“Tanto ou mais que as pessoas, os lugares vivem e morrem. Com uma diferença: mesmo se já mortos, os lugares retêm a vida que os animou.”
Fernando Namora
1.
aqui todo o silêncio é habitado
como se fosse cinza
que ciosa
guarda a memória da madeira
2.
ainda escuto a linguagem
do fogo
as pedras enegrecidas
acordam-a
rente ao olhar do poema
3.
todo o poema nasce
e sabe
do silêncio
quando em silêncio
dorme
nas páginas de um livro
4.
poema
esse lugar onde a vida
permanece
como álbum de família
sempre pronto
para ser
a janela da memória
Xavier Zarco
1.º lugar no V Concurso “Poesia na Biblioteca” (Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova) - 2015
SONETO AO INSULTO, EM DECASSÍLABO HERÓICO E, PORQUE RAPAZ DE BONS COSTUMES, INGLÊS, PORQUE RIMA COM TRÊS.
digo insulto é de gente ajuntamento
diz-se assim pelas bandas do alentejo
ah palavra que és linda como o vento
tratada com carinho como um beijo
digo insulto que diz estardalhaço
do outro lado do atlântico ah palavra
que às vezes mais pareces como um chaço
ou como terra só que ninguém lavra
digo insulto à portuga e o que procuro
a agressão violenta o vitupério
mas se procuro e nada encontro é duro
e ninguém mas ninguém me leva a sério
porra para a palavra sorrateira
esta língua é mesmo traiçoeira
Xavier Zarco
[Vou foder o dia inteiro]
Vou foder o dia inteiro
Não levo enxada mas pila
Mais um colhão com dinheiro
Para ir aos copos à vila
Inda dizem bela vida
Esta de ser lavrador
Mas só quem com esta lida
Lhe sabe dar o valor
Que foder o dia inteiro
Para qualquer um não é
É preciso ser guerreiro
Mas dos que morrem de pé
Xavier Zarco
NOTAS:
COLHÃO (do latim: coleo) - bolsa de couro;
FODER (do latim: futuere) - penetrar ou escavar;
PILA (do latim: pilum) - lança comprida com ponta de ferro e cabo de madeira.
Leituras 3 - Henrique Pedro
Henrique Pedro é um dos pensadores do poema. Cada trabalho é elaborado muito sob uma matriz de razão ou de fé.
Apresenta-nos poemas com um pródigo conteúdo, onde predominam temáticas telúricas, religiosas e, também, filosóficas, estas quase sempre sob vertente existencialista, e daí ter despertado o meu interesse no trabalho deste autor, dado que me surgem em diversas ocasiões quer numa visão kierkegaardiana quer sartreana.
Tal dimensão de escrita, coisa rara, não só aqui, mas nos mais diversos locais onde me movimento, sobretudo ao nível da internet, dá-nos uma visão do Homem no seu Tempo, não só contemplativo, mas, também, em acção, intervindo com o que o rodeia, como se através do verso se se cumprisse como Homem do seu Tempo.
Se tivesse de apresentar a frieza estatística, diria que em três poemas lidos deste autor, dois vírgula cinco se enquadram em trabalhos que considero de excelente nível. E estou a referir um autor que partilha connosco quase (se não for mesmo) diariamente o fruto do seu ofício.
Xavier Zarco
Vendo “Paisagem com a queda de Ícaro”, de Pieter Brueghel
Vendo “Paisagem com a queda de Ícaro”, de Pieter Brueghel
william carlos williams já disse
o que havia a dizer
dos trabalhos que o dia a dia pede
até da primavera
o ofício do pão não pede o belo
não se rende à paisagem
cuida-se da terra em busca do sustento
assim como do mar
o destino que coube a ícaro cabe
na íntegra a cada um de nós
seremos queda resumida
ao ponto na distância
Xavier Zarco
2.º Lugar no I Concurso de Poesia Albano Martins (2014)
DÉDALO DE DÉDALO
1.
a obra
nasce
quando a criança
surge
entre os escombros
do caos
2.
silhueta
na distância
o olhar
a indaga
e mesura
enquanto a luz
a coroa
de sombra
3.
sobre
a terra
o respirar
do gesto
4.
acorda
o cântico
da semente
na coroação
do gesto
5.
minotauro
acorda
no medo
dos homens
e adormece
rente ao regaço
dos seus sonhos
6.
talham-se
as pedras
alinham-se
para a construção
do dédalo
como flores
silvestres
que a primavera
eclodiu
7.
eis o caos
a ordem
do caos
sob as mãos
de dédalo
8.
o evérgeta
vigia
os dorsos
curvados
sob o peso
da mandrágora
do destino
9.
erguem-se
muros
trilhos
entre pedras
como se
se erigisse
o tegumento
de érebo
10.
as mãos
rendem-se
ao riso
das máscaras
11.
em creta
decreta-se
o poente
qual clausura
ao sol
da criação
12.
recordo
a ara
sequiosa
pelo sangue
inderramado
clama
ao mar
que incurso
seja
quem a fez
clamar
13.
recordo
ergue-se
o acroama
no corpo
da mulher
acra
é a carne
e o destino
14.
recordo
ariadne
parte
para o coração
da madrugada
ventre
de todos os caminhos
15.
só o alto
aguarda
o instante
da vela
que se consome
e adormece
na arandela
16.
só o alto
decifra
e prova
o poder
do voo
do que adormece
na arandela
17.
não vás
o teu caminho
é o teu caminho
cada palavra
é a exacta
palavra
para o desvelar
do poema
18.
a queda
do fruto
é a árvore
quem o chora
icaria brota
quando à terra
se entrega
o que esta concede
em mesura
de ampulheta
19.
mas há um caminho
um voo
sobre as sílabas
impronunciáveis
onde a música
se oculta
e se revela
sob o olhar
de quem ousa
20.
chegar
é um corpo
cingido
por outro corpo
uma lágrima
na ânsia
de terra
sicília
onde as asas
repousam
sob o olhar de apolo
Xavier Zarco
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Leituras 2 - José Ilídio Torres
José Ilídio Torres é um autor que só posso definir como um criador para-realista, isto é: traz para dentro do corpo textual um pedaço do real, mas polemicando outro assunto, não o que se desenrola perante o nosso olhar.
Fá-lo como se nos desvendasse o que é um teatro de sombras, dizendo-nos da luz e dos corpos em movimento, mas apresentando-nos somente o que na tela se vislumbra.
Para lê-lo e, de facto, usufruir o que nos oferta, há que estar atento aos sinais, bastantes, aliás, que nos vai dando, como se de um rasgo na tela se tratasse e este deslizasse constantemente.
Esta amostragem denota um olhar atento ao que é criar, visto que é mais relevante o que alude do que o que diz, deixando portanto aberto ao leitor um espaço onde este pode, também, criar.
No entanto, sob a ironia e, por muitas vezes, o sarcasmo com que tece os seus textos, sejam estes poemas ou não, em mim revelam um autor que chora, uma certa tristeza que assim é como que transvestida.
Uma nota à margem: alguns dos textos deste autor têm gerado polémica, no pior sentido desta palavra, que é, talvez, a palavra que melhor pode representar e justificar a nossa presença no Mundo, a nossa acção no Mundo (bom!, mas isto é outra conversa).
Esta polémica denota, sobretudo, impreparação de quem o lê, isto é: quem se movimenta num local de escrita, antes de escrever, tem de descobrir o local de leitura. A leitura é que funda a escrita e não o reverso. Há portanto, antes de se atirar a pedra, saber o que é a pedra e, também, a que alvo se vai atirar.
Ensaio - 2
escrevi por mil vezes o poema
e em outras mil o descobri
das mil vezes que o li
sendo o mesmo em mil reflexos
é diverso quando o sinto
porque dele
não tomo posse
nunca tomei posse
não me pertence
nunca me pertenceu
mesmo sendo estas mãos
as minhas
que o inventam
e reinventam
lhe dão rosto em papel
e no entanto escrevo-o
reescrevo-o à margem do silêncio
onde sei que habita
a sílaba serena de onde brota
não o poema
a poesia
Xavier Zarco