Sete Poemas em Mirandês
1.
aquel oulhar miraba para todo
nacieu-le ua bida nuoba
apuntou adreito
al coraçon
l lhugar antre sierras
*
aquele olhar olhava para tudo
nasceu-lhe uma vida nova
apontou direito
ao coração
o lugar entre serra
2.
las augas de las fuontes
bálen todo l que hai
antre la mano i la bóç
*
as águas das fontes
valem tudo o que há
entre a mão e a voz
3.
naqueilhes uolhos
l fin de mundo
*
naqueles olhos
o fim do mundo
4.
la nina mirou pa la puorta
oube l ribeiro a celhuçar
eilhi
delantre l milagre
de haber nacido
*
a menina olhou para a porta
ouve o ribeiro a soluçar
ali
defronte o milagre
de ter nascido
5.
nun fura la strada
i la biaige era you
*
não fora a estrada
e a viagem era eu
6.
la bielha fai-se
alegre pulas rues
anquanto
l’eidade drúme
*
a velha faz-se
alegre pelas ruas
enquanto
a idade dorme
7.
al fin de la rue desierta
l cuorpo
que la mano
yá nun mangina
*
no fim da rua deserta
o corpo
que a mão
já não imagina
Xavier Zarco
Para martinsns, ao seu poema "Deixa eu chupar ela"
ah que já o outro dizia
que ler é uma maçada
mas o que ele não sabia
é que ler não vale nada
mas a malta insiste insiste
e nem o texto começa
e perguntam-me já viste
estou a ver mas sem pressa
cá p'ra mim das duas uma
será ele que não tem jeito
para atear a caruma
ou ela que tem defeito
fecho a página medito
sobre o filme que ali vi
e não é que lanço um grito
porra o poema não li
Xavier Zarco
SOB EPÍGRAFE DE AGOSTINHO GOMES
SOB EPÍGRAFE DE AGOSTINHO GOMES
Só para vestir a Primavera
E imitar o canto dos pássaros.
Agostinho Gomes
1.
trago palavras na algibeira
palavras
que buscam um sentido outro ao que as veste
quando a noite cai
embalado nos braços da insónia
deito-as sobre a mesa
e sonho a primavera do poema
2.
lá fora o vento acorda as árvores
enquanto as palavras
essas
alinhadas em verso em si descobrem
o próprio cântico dos pássaros
Xavier Zarco
1.º Lugar no XVI Concurso de Poesia Agostinho Gomes (C.M. Oliveira de Azeméis) - 2015
[sei]
sei
devia aprender
mais
sobre o outono
por exemplo
desenhar folhas de árvore
em pleno voo
ou beber
o vento na palma da mão
sei
devia aprender
mas dizem que o outono é signo
da morte
e essa anda comigo
de mão dada
a toda a hora e todo o instante
minha bela e leal companheira
todos os dias
mesmo que não o diga
diz
mesmo que a vida cesse irá comigo
Xavier Zarco
[Vou foder o dia inteiro]
Vou foder o dia inteiro
Não levo enxada mas pila
Mais um colhão com dinheiro
Para ir aos copos à vila
Inda dizem bela vida
Esta de ser lavrador
Mas só quem com esta lida
Lhe sabe dar o valor
Que foder o dia inteiro
Para qualquer um não é
É preciso ser guerreiro
Mas dos que morrem de pé
Xavier Zarco
NOTAS:
COLHÃO (do latim: coleo) - bolsa de couro;
FODER (do latim: futuere) - penetrar ou escavar;
PILA (do latim: pilum) - lança comprida com ponta de ferro e cabo de madeira.
[a estrada vive dentro do homem]
a estrada vive dentro do homem
alimenta-se do homem
começa a comer-lhe os pés
até comer-lhe a alma
a estrada
que dizes ser tua
papa-te
com suas falinhas mansas
mesmo que seja pedra no sapato
mesmo que seja espinho na carne
fala mansamente
e diz ser tua criação
e tu vais mimá-la
enquanto ela te mama enquanto suga
tudo
tudo o que vale a pena possuíres
Xavier Zarco
Leituras 3 - Henrique Pedro
Henrique Pedro é um dos pensadores do poema. Cada trabalho é elaborado muito sob uma matriz de razão ou de fé.
Apresenta-nos poemas com um pródigo conteúdo, onde predominam temáticas telúricas, religiosas e, também, filosóficas, estas quase sempre sob vertente existencialista, e daí ter despertado o meu interesse no trabalho deste autor, dado que me surgem em diversas ocasiões quer numa visão kierkegaardiana quer sartreana.
Tal dimensão de escrita, coisa rara, não só aqui, mas nos mais diversos locais onde me movimento, sobretudo ao nível da internet, dá-nos uma visão do Homem no seu Tempo, não só contemplativo, mas, também, em acção, intervindo com o que o rodeia, como se através do verso se se cumprisse como Homem do seu Tempo.
Se tivesse de apresentar a frieza estatística, diria que em três poemas lidos deste autor, dois vírgula cinco se enquadram em trabalhos que considero de excelente nível. E estou a referir um autor que partilha connosco quase (se não for mesmo) diariamente o fruto do seu ofício.
Xavier Zarco
Vendo “Paisagem com a queda de Ícaro”, de Pieter Brueghel
Vendo “Paisagem com a queda de Ícaro”, de Pieter Brueghel
william carlos williams já disse
o que havia a dizer
dos trabalhos que o dia a dia pede
até da primavera
o ofício do pão não pede o belo
não se rende à paisagem
cuida-se da terra em busca do sustento
assim como do mar
o destino que coube a ícaro cabe
na íntegra a cada um de nós
seremos queda resumida
ao ponto na distância
Xavier Zarco
2.º Lugar no I Concurso de Poesia Albano Martins (2014)
DÉDALO DE DÉDALO
1.
a obra
nasce
quando a criança
surge
entre os escombros
do caos
2.
silhueta
na distância
o olhar
a indaga
e mesura
enquanto a luz
a coroa
de sombra
3.
sobre
a terra
o respirar
do gesto
4.
acorda
o cântico
da semente
na coroação
do gesto
5.
minotauro
acorda
no medo
dos homens
e adormece
rente ao regaço
dos seus sonhos
6.
talham-se
as pedras
alinham-se
para a construção
do dédalo
como flores
silvestres
que a primavera
eclodiu
7.
eis o caos
a ordem
do caos
sob as mãos
de dédalo
8.
o evérgeta
vigia
os dorsos
curvados
sob o peso
da mandrágora
do destino
9.
erguem-se
muros
trilhos
entre pedras
como se
se erigisse
o tegumento
de érebo
10.
as mãos
rendem-se
ao riso
das máscaras
11.
em creta
decreta-se
o poente
qual clausura
ao sol
da criação
12.
recordo
a ara
sequiosa
pelo sangue
inderramado
clama
ao mar
que incurso
seja
quem a fez
clamar
13.
recordo
ergue-se
o acroama
no corpo
da mulher
acra
é a carne
e o destino
14.
recordo
ariadne
parte
para o coração
da madrugada
ventre
de todos os caminhos
15.
só o alto
aguarda
o instante
da vela
que se consome
e adormece
na arandela
16.
só o alto
decifra
e prova
o poder
do voo
do que adormece
na arandela
17.
não vás
o teu caminho
é o teu caminho
cada palavra
é a exacta
palavra
para o desvelar
do poema
18.
a queda
do fruto
é a árvore
quem o chora
icaria brota
quando à terra
se entrega
o que esta concede
em mesura
de ampulheta
19.
mas há um caminho
um voo
sobre as sílabas
impronunciáveis
onde a música
se oculta
e se revela
sob o olhar
de quem ousa
20.
chegar
é um corpo
cingido
por outro corpo
uma lágrima
na ânsia
de terra
sicília
onde as asas
repousam
sob o olhar de apolo
Xavier Zarco
www.xavierzarco.no.sapo.pt
www.euxz.blogspot.com
www.xavierzarco.blogspot.com
Leituras 2 - José Ilídio Torres
José Ilídio Torres é um autor que só posso definir como um criador para-realista, isto é: traz para dentro do corpo textual um pedaço do real, mas polemicando outro assunto, não o que se desenrola perante o nosso olhar.
Fá-lo como se nos desvendasse o que é um teatro de sombras, dizendo-nos da luz e dos corpos em movimento, mas apresentando-nos somente o que na tela se vislumbra.
Para lê-lo e, de facto, usufruir o que nos oferta, há que estar atento aos sinais, bastantes, aliás, que nos vai dando, como se de um rasgo na tela se tratasse e este deslizasse constantemente.
Esta amostragem denota um olhar atento ao que é criar, visto que é mais relevante o que alude do que o que diz, deixando portanto aberto ao leitor um espaço onde este pode, também, criar.
No entanto, sob a ironia e, por muitas vezes, o sarcasmo com que tece os seus textos, sejam estes poemas ou não, em mim revelam um autor que chora, uma certa tristeza que assim é como que transvestida.
Uma nota à margem: alguns dos textos deste autor têm gerado polémica, no pior sentido desta palavra, que é, talvez, a palavra que melhor pode representar e justificar a nossa presença no Mundo, a nossa acção no Mundo (bom!, mas isto é outra conversa).
Esta polémica denota, sobretudo, impreparação de quem o lê, isto é: quem se movimenta num local de escrita, antes de escrever, tem de descobrir o local de leitura. A leitura é que funda a escrita e não o reverso. Há portanto, antes de se atirar a pedra, saber o que é a pedra e, também, a que alvo se vai atirar.