Crónicas : 

DIÁRIO 1

 
Queridos leitores, decidi escrever um diário. Ainda me questionei sobre a sua utilidade, depois entendi que um diário para além de não ser diário precisa forçosamente de existir. Porquê? Ora… Porque sim.

Deixando em paz a questão dos porquês, aos quais penso que respondi de uma forma sucinta e coerente, quero falar-vos do meu dia. Até acordei feliz! Depois de me vestir decidi ir tomar um café, como os que tomo diariamente. Foi então que fui assombrado por uma preocupação cortante e desesperada. Uma senhora muito bem vestida, de casaco de peles sobre os ombros, abeirou-se de mim, espetou-me um panfleto na mão e disse-me (sem que antes me tivesse preparado para tal) que jesus ia salvar-me. Vacilei. Arregalei os olhos. O sol que não brilhou porque as nuvens o encobriam, radiou no meu olhar atónito. Ia ser salvo! Ainda pensei atirar-me para o colo daquela senhora, mas devido ao meu peso, decidi que não. Limitei-me a agradecer.

Enquanto bebia a bica, louco de felicidade, ocorreu-me uma irrelevante questão: Espera aí, mas afinal vou ser salvo do quê? Estas coisas de salvamentos têm muito que se lhe digam e não vi naquela dama o ar de uma qualquer super-mulher americana disposta a entregar ao mundo a sua total e arrebatadora energia…! Eis senão quando abro o prospecto e leio as letras garrafais na primeira página:
“O MUNDO VAI ACABAR…”

Ainda reli umas cinco vezes. Tinha a delével sensação de que estava a ler mal. Mas não. Era mesmo verdade! O mundo ia acabar! Fiquei deprimido. Ainda olhei ao redor para tentar que ela me explicasse tal caos mas tinha desaparecido. Que amargo o café ficou!

É doentio. Agora que me preparo para fazer uma viagem de TGV, tão apregoada pelo “vendedor de computadores mor” da Europa, é que vejo debandada a minha intenção. Porque isto de andar naquela coisa faz parte do currículo de cada ser humano. Hoje em dia quem não fizer uma viagem de TGV não é ninguém! Depois como é que me apresentava num daqueles muitos empregos que o nosso primeiro tem fomentado? Que diria quando me perguntassem: Que experiência tem de TGV? Já analisaram a vergonha? O meu silêncio era cúmplice de um não e arriscava-me a ser despedido muito antes de ter começado a trabalhar. Nem podia alegar ter dado umas curvitas no aeroporto que querem construir nas terras do “Almeidinha”… A negociata (negociata porque se tratam de uns escassos milhões de euros. Certo que as terras foram comprados a tostão pelo avô do dito cujo, mas a inflação come tudo…), ainda nem foi decretada a compra! Estão a par do meu desespero?!

Levantei-me e corri à procura daquela senhora. Era imperioso adiar o fim do mundo! Ocorreu-me então outra questão: Como é que ela sabe destas coisas e eu não? Conclui que deve ser uma daquelas pessoas que antes de se deitar tem uns minutos de amena cavaqueira com deus… Privilegiada, hem!

Li o texto com o desespero de quem quer saber quando. Felizmente não dizia. Ou seja, eu ainda podia sonhar com aquela mega volta a este imenso país (algumas vezes maior que China), a bordo dum comboio que deve andar à velocidade da luz. Voltei a alegrar-me de novo. Quando fui pagar a bica disse a dono do café que não recebesse o dinheiro. Se o mundo ia acabar para que queria a usura dos meus 55 cêntimos? Ficou aborrecido e disse-me: “Olhe, enquanto acaba e não acaba, vá pagando os cafés e é se os quer beber!”. Não gostei do tom ameaçador, mas conclui que ele lá deveria ter as suas razões.

Quando me dirigia para casa encontrei a tal senhora e perguntei-lhe porque é que tinha de ser salvo; respondeu-me que eu era um pecador!
- Pecador?! Eu?! Como é que sabe disso?
A mulher levantou o queixo, pôs no rosto a expressão mais sisuda que encontrou e leu-me ali mesmo os direitos, isto é, a sentença, tipo os filmes policiais da tv.
- Todos nós somos pecadores.

Argumentei que se somos todos pecadores então eu e ela encontrar-nos-íamos no inferno aquele antro viciado de pecado, para onde vão todos os pecadores há falta de sitio pior.. Ela abanou a cabeça e disse que a sua fé a salvava. Ela ia para o céu e eu, descrente de tudo, ia para o inferno. Como aquela tipa sabe destas coisas!!!

Perguntei-lhe por alguns conceituados que têm deficits de honestidade, como o caso do “vendedor mor de computadores”. Fiquei embasbacado com a resposta…
- Esses têm dinheiro para comprar o perdão!
Depois de uns segundos de silêncio, baixei a cabeça, humilhado pela minha condição miserável e segui, condenando deus pela sua desenfreada ganância.

Conselho: Cuidado moços! Enriqueçam para poderem ir para o céu!

António Casado
4 Dezembro 2009





 
Autor
antóniocasado
 
Texto
Data
Leituras
707
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.