Textos : 

Cordas de silêncio

 
Cordas de silêncio
 
Do armário embutido na parede do quarto que era o nosso, ou seja da minha irmã e meu, gritos mudos de instrumentos de cordas laças que há muito não viam dedos que as tocassem. Ou que, em minúcias de artista, as afinassem a preceito até que gemessem em crescendo, desde o "Dó" até ao "Si", cada uma das notas sem qualquer rouquidão. De modo que, para ali estavam esquecidos, pendurados em ganchos ferrugentos que lhes denunciavam a idade avançada que já tinham.
Uma grande viola que me disseram mais tarde ser um contrabaixo. Uma viola normal que cheguei a ver o meu pai tocar uma ou duas vezes antes de se lhe ir embora a força e a vontade... Uma guitarra e ainda um banjo que ele mais tarde haveria de vender a um ferro-velho que lhe não largava a porta à cata de tesouros deste e outros calibres como foi o caso do velhinho relógio da sala que cantava às meias e às horas certas.
Tiveram o seu tempo de glórias quando em serões se entretinham a tocar e a fazer ensaios para outras festas tão diferentes das de agora. Sim, porque se faziam festas rijas naquele tempo e até bailaricos de vez em quando. Diz que por alturas do carnaval até se faziam dois, ao despique, na nossa terra. Imagine-se! Ainda há pouco tempo o Acácio que já contou sete décadas, me disse que quando era garoto bem pequeno, andava numa correria povo abaixo e povo acima, a espreitar entre um e outro para levar e trazer informações aos que o mandavam, por via de se ver quem é que tinha o baile melhor, mais concorrido e animado. Isso é que havia gente com fartura na aldeia desses tempos, caramba!
Ou, também, se se desse o caso de simplesmente lhes apetecer estar ali entretidos a gastar o tempo porque nenhum aparelho moderno ainda por inventar, a tratar disso. É o caso destes dois aqui numa destas fotografias do baú lá de casa, onde tio (Tio Firmino) e este outro sobrinho seu chamado Virgílio, que estudava para ser advogado em Lisboa mas que o visitava de vez em quando, dedilham cada um na sua guitarra, sentados em redor da mesa de jantar. Na outra para além de uma viola há também um tocador de concertina, ambos sentados e rodeados de gente que os escuta com alegria e devoção, num qualquer dia de festa, ou então não. Apenas um dia de domingo em que alguém se lembrou de ali fazer acontecer uns instantes de animação, talvez para aliviar da rudeza dos outros dias.
Hoje já lá não mora qualquer instrumento de cordas, mas na minha memória ainda lá estão todos. Continuam intactos e mudos, a atravessarem a eternidade da minha existência...

Cleo

Nota. O texto fala de outras imagens que só poderão ser vistas aqui: https://www.facebook.com/cleo.dias.39/ ... tfccEiYyCiKzJNYSAsYZ1cJdl


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

Impulsos

https://socalcosdamemoria.blogspot.com/?

https://www.amazon.es/-/pt/dp/1678059781?fbc...

 
Autor
cleo
Autor
 
Texto
Data
Leituras
306
Favoritos
2
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
22 pontos
2
2
2
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 10/05/2023 21:06  Atualizado: 10/05/2023 21:08
Usuário desde: 28/07/2009
Localidade:
Mensagens: 10486
 Re: Existem instrumentos de cordas que gritam silêncios c...
São primorosos teus textos, memórias bem vivas sobram na memória de quem viveu na época, essas festas aldeãs eram das poucas coisas que faziam esquecer a turbulência dos restantes dias, eram vividas com entusiasmo, onde não faltava a banda filarmónica, com as crianças a correr em alvoroço pelas ruelas da aldeia, nesse dia havia sapatos, e as mães tinham posto fundilhos nos calções, também a refeição melhorada , matava-se o galo guardado para a ocasião.
Ao ler-te lembrei que enquanto tinhas pendurado na parede do quarto, a guitarra e o banjo, eu tinha um Cristo cruxificado, que me apavorava, por pensar que o mal que lhe fizeram, poderiam por ventura fazer-me a mim, mas nunca em casa falei deste meu pavor, dormia com o candeeiro a petróleo com a chama baixinha.

Mais uma vez li com muita emoção e à lembrança tanta coisa que ficaria aqui a descrever.

Um abraço