Pé de Pato, revigorado pelo banho e de farda mudada, com a mochila nas costas saiu do banheiro, pronto para. Os primeiros raios solares tingiram de vermelho o céu sem nuvens no horizonte. Barulhos esparsos de ônibus e alguns veículos na avenida. Pessoas faziam caminhadas circunavegando a Praça Sete Palmeiras. O gorjeio dos pássaros despertos, empoleirados nas copas das palmeiras ou nos telhados dos sobrados de seu Zé Barros. Pé de Pato, o moreno de feições finas, forte, acordara e contemplava tranquilamente o nascer do dia. Com as costas apoiado no ladrilho bicolor da parede do bar de dona Gloria, esposa de seu Carrinho Cotia. Ao lado as cadeiras empilhadas umas sobre as outras, presas numa corrente, e as caixas de armação de ferro que guardavam os gradeados de cervejas e refrigerantes. As mesas acorrentadas no cano de sustentação do toldo que cobria os dois bares.
Passou a mão no rosto fino com uma carapinha na ponta do queixo, bocejou. Levantou-se, espreguiçou-se, coçou a bunda, a cueca rasgada. Rapidamente vestiu uma bermuda. Pegou a metade de um litro pet cortado e caminhou até a torneira atrás de um dos bancos que ficava de frente para a avenida Sarney Filho, no meio de um pequeno canteiro desnudo de grama de tanto ser pisado e onde ao meio-dia uma poça d’água servia de lago para os passarinhos se banharem.
As pessoas faziam sua caminhada ao redor da praça em grupos ou sós. Pé de Pato, ainda sonolento, ressacado, abriu preguiçosamente a torneira enchendo o seu copo improvisado, baixou a cabeça e jogou o líquido sobre ela, depois balançou para os lados como os bois almiscarados fazem para se verem livres da neve. Lavou o rosto, tirou as remelas dos olhos e retornou para sua cama de papelão. Levantou-a e a balançou para tirar a poeira acumulada, a enrolou e a guardou atrás das cadeiras. Arrumou a mochila, colocou-a nas costas e capengando atravessou a estreita pista da avenida Sarney Filho.
No canto do mercado, Dona Maria arrumava sua banca de café e bolos. O filho ajudava e descarregava os pratos de beiju, bolos de todos os tipos, muito apreciados por seus clientes.
Pé de Pato deu uma cuspidela no rego da sarjeta em frente à Sapataria Trindade. No portão de seu Biné, o zelador do mercado, um baixinho entroncado e cara de poucos amigos varria a calçada e com a pá ajuntava o lixo, jogando-o dentro do carro de mão. Quando viu Pé de Pato entrar, murmurou entre os dentes.
As barracas ainda estavam fechadas. Os açougueiros agoniados destrinchavam os quartos de bois, tirando as peças e as pendurando nos ganchos sobre o balcão de azulejos, onde as bolsas de sangue coagulavam chamando as moscas varejeiras que eram espantadas pelos ajudantes, enquanto os cães vadios e esfomeados com suas costelas à mostra, as línguas de fora, acompanhavam atentamente à espera de um vacilo. O trinar das serras elétricas cortando os ossos. Do outro lado a fedentina exalava das galinhas nos abatedouros.
Pé de Pato, com seu pé defeituoso, andou caxingando e devagar até a porta do banheiro. Entrou e foi direto para o sanitário descarregar um barro. Aliviado, encheu uma lata que ficava ao lado da torneira da cisterna e banhou-se.
Em frente, o Irmão Zé abria sua barraca com o auxílio de suas belas funcionárias. Umas abatendo e ensacando os frangos e os arrumando no balcão frigorifico. Outras trazendo os sacos de ração de gatos e cachorros para deixá-los expostos sobre estrados em frente. Próximo ao banheiro feminino, um dos netos de seu Correia arrastava a banca de madeira para depois pendurar as tripas e miúdos de boi. Seu Riba, o camaroeiro, amontoava os seus produtos no tabuleiro de sua banca azulejada. Assim como os peixeiros Lucas e Bereta expunham seus peixes. De vez enquanto saía uma pilhéria maldosa entre eles, que davam sonoras gargalhadas.
mais um dia.
Poucos ou quase ninguém conheciam a sua história, sabiam apenas que era filho de um senhor muito honrado que negociava com peixes de água doce no portinho e morava numa casa boa nas bandas do Paraíso.
De vez em quando aparecia e conversava com o filho, convidando-o a voltar para casa. Mas Pé era birrento e muito ignorante, e além do mais opinioso. Corria à boca pequena que cometera um homicídio na beira da Praia Grande do Desterro, matara um sujeito que o destratara, uns diziam que fora a facadas, outros afirmavam que a pauladas.
Evitava falar nesse assunto e ninguém tinha coragem para perguntar-lhe algo a respeito. A verdade é que andava sempre armado com uma vistosa peixeira do cabo branco no cós e nunca se separava dela, quando dormia a colocava debaixo do papelão. Era destemido e ordeiro, bebia sua cachaça e não procurava confusão com ninguém, sempre solícito a fazer qualquer favor e acima de tudo honesto nos seus negócios, nunca deixava furo. As pessoas confiavam-lhe seus produtos para ele fazer o corre. Não demorava muito retornava ou com a mercadoria ou com o dinheiro. Sabia conversar e demonstrava ser uma pessoa inteligente