NO SILÊNCO DO TEU CORPO ADORMECIDO
É quando dormes,
no silêncio arrefecido das tuas noites profundas,
que desperta em mim
o esplendor amadurecido do teu rosto.
Envolto no musgo inocente dessa juventude gasta
bebo os resíduos palpitantes da tua respiração,
atravessando as colinas do teu corpo retalhado
onde revejo as encruzilhadas que cruzámos,
de mão dada,
contornando o vazio dos abismos
e fugindo às armadilhas traiçoeiras do deserto,
de oásis em oásis,
onde nos deitávamos à sombra do veneno dos dias.
Tão perto e tão longe te acho agora,
mergulhada nas margens de um rio cansado,
fechada numa concha obscura
no mais fundo que há em ti,
onde em silêncio digeres
lágrimas antigas que não derramaste.
Dormes.
Olhos pousados no espanto do infinito
vagando na glória indefinida de um sonho,
construindo mundos atrás de uma porta entreaberta
onde buscas o equilíbrio
perdido no pesadelo escarlate das horas.
Moves-te sem gestos,
num arfar sereno e perfumado,
pequenos gemidos que crescem no sono
numa litania que te embala o corpo
e sobressalta a inocência da tua nudez
debruçada sobre as asas da madrugada.
Quase nada sei de ti.
Dos segredos que ocultas nos labirintos do peito,
e que são só teus,
apenas vislumbro rumores desvanecidos
ecoando nos espelhos da ventania
que agitam, ao de leve, a tua sombra suspensa.
Embora tenha penetrado vezes sem conta
os abismos profundos do teu corpo,
em lentas e repetidas viagens
saciando o fogo de estranhos desejos,
e plantado, na luz suave do teu ventre,
as sementes que nos hão-de perpetuar,
quase nada sei de ti.
No silêncio do quarto povoado de velhas imagens
permaneço acordado a teu lado
a soletrar as batidas do teu nome
num sussurro que invade a noite demorada,
tecendo um rosário de eternas lembranças,
à espera que o sol se levante no horizonte
para vir saudar teu despertar.
O POEMA E A BAILARINA DE PLÁSTICO *
O Poema e a Bailarina encontraram-se
Na solidão de um quarto exíguo,
Numa noite sem estrelas nem luar,
À luz de um velho candeeiro de porcelana.
Ele, vive no versos e sonetos rabiscados
De um inacabado livro de mesinha-de-cabeceira;
Ela, presa no mecanismo magnetizado
De uma caixa de madeira pintada à mão.
Ela, deixou-se prender pelo ritmo dolente
Das palavras ternas que ele lhe sussurra
E ele, pelo seu corpo de plástico colorido
A rodopiar ao som de um piano metálico.
Incapazes de se libertarem daquele feitiço,
Aguardam ansiosamente pela noite;
Ela, encerrada na escuridão da caixa fechada;
Ele, nas páginas vazias do livro por escrever.
Quando o poeta se entrega a si mesmo,
Mergulhado na tela colorida dos sonhos,
E seu pincel traça cristalinas paisagens
Sobre cavaletes de espuma e vento;
A magia, todas as noites renovada,
Acende-se na penumbra sufocante do quarto
Libertando os amantes acorrentados
Às frias amarras de um estranho destino.
Ela, das profundezas de um camarim soterrado
Emerge, com seu vestido de seda branco
E um realejo de fantasias por satisfazer,
Enchendo o quarto com arrebatadas danças.
Ele, abre asas e desliza nos céus de papel,
Ao ritmo da melodia que rasga o silêncio
Em exaltados versos que ganham vida,
Imortalizando uma paixão impossível.
* Dedicado a todos os amores incompatíveis, separados por um abismo de preconceitos, ou qualquer outro tipo de barreiras.
MAIS FORTE QUE A PALAVRA
De tanto ser invocada,
a palavra Amor
tornou-o banal,
quase corriqueiro.
Uns o confundem com paixão,
outros com sexo e atracção.
Uns cantam-no
em satisfação de conquista,
outros o choram
na enfermidade do desejo.
Alguns, até,
tentam escravizá-lo,
reduzi-lo a simples versos
que aprisionam
em pequenos poemas
que orgulhosamente ostentam
nas vitrinas do seu egoísmo.
E esquecem-se
que ele é tudo isso
e mais.
Muito mais.
Mais que mera palavra,
o amor é sentimento,
algo de muito profundo
enraizado na nossa essência
e na alma de todas as coisas.
O Amor é equilíbrio
e acção.
Não tem posse, nem pertença.
É dar e receber.
É como a luz do dia
que enche o vazio da treva
com o brilho do seu esplendor
e como o vento que sopra na planície
e força alguma é capaz de suster.
O Amor
é verbo e é carne,
verdade e esperança,
fome e sede.
É a força infinita
que faz mover todo o universo,
e a razão, porque um dia
fomos soprados
do ventre adormecido da terra.
E por ser tudo isso
e mais forte que a palavra,
nada o poderá destruir,
demover,
ou reduzir a silêncio e cinza.
Menos ainda
lhe poderá escapar,
quando ele abrir os braços,
irradiando seu eterno poder,
e nos convocar,
de volta ao seu seio.
VERTIGEM ANÓNIMA
Sigo o rumor cego dos dias curtos
que se esfarelam nos dedos enrugados
de um demónio que habita um saguão de sombras,
por detrás da porta onde pulsa o cabide
em que penduro, ao fim do dia, o rosto que não rima.
Às voltas ainda com a inércia das palavras,
tropeço na abstracta caligrafia da névoa
e na paisagem abandonada dos meus passos,
quando o vento se levanta, sonâmbulo,
nos patamares gastos dos parágrafos cinzentos,
e um coro de vogais soletra na encruzilhada
a derradeira luz do dia.
Nenhuma palavra me diz quem sou,
nenhum verso sabe o que faço aqui,
nesta folha suja onde nada escrevi;
tinta seca que o vento corrói
no empedrado dos fonemas onde me perco.
Persigo uma estrofe de incertezas,
através da maré de pontos de interrogação,
e me afundo num labirinto de sílabas,
sem atinar com o caminho
que me leve ao final do poema
ou me faça regressar à luz do primeiro verso.
SOU DE UM PAÍS ADORMECIDO
Sou de um país adormecido
Na poeira mórbida do entardecer
E nos mares estagnados
De um orgulho entrevado,
Derretida glória
De velhas feridas por escamar
Nas rugas anestesiadas
Do império amordaçado
Sou de um povo resignado
Na voz calada de um lamento,
Onde os únicos heróis
São o mármore disperso das estátuas
E a cinza descarnada
De um tumular esplendor
Trago as quinas tatuadas
Numa chaga moribunda,
Réstia desvanecida
De um estandarte de memórias
E naus naufragadas
No sangue vencido do crepúsculo
Sou deste país exilado
no mofo encardido dos séculos
e no pasmo cadavérico
da mesquinhez atrofiada,
vã gloria, sem presente nem futuro,
agonizando lentamente
na melancolia mística
de uma manhã de nevoeiro
MENSAGENS DE ESPUMA
Guardo as palavras
no fundo oco
de velhas garrafas de vinho
que teimosamente
continuo a lançar às águas
em dias de cinzenta maresia
Ecos interrompidos
de um fulgor amordaçado
à deriva
no fluxo de marés sem retorno
e gélidos labirintos de espuma
À espera de um dia
voltarem ao areal distante
das tuas praias perdidas
no sótão esquecido dos tempos
POLARIDADE INVERTIDA
O olhar perdido na sombra do alpendre
bebe o pouco que resta, da luz estagnada
no estuque arruinado dos muros
e na terracota de longínquas memórias,
onde um eco de vozes sussurrantes
entoa a cantiga esquecida dos ventos.
Os pássaros sombrios do outono
desceram as colinas do teu corpo enrugado
onde o alento mirra, em cada folha que cai,
em cada novo dia que te desfolha,
na tristeza do musgo que trepa a pedra fria
nos últimos degraus do crepúsculo.
Vencida pelos limites vagos do futuro,
refugias-te nas varandas do passado,
e descobres que há um tempo na vida
em que a polaridade dos sonhos se inverte,
e a ilusão caduca dos dias vindouros
reverte àquelas manhãs antigas, em que
o sol dançava na linha tépida do horizonte.
INFINITA PACIÊNCIA DO TEMPO
Não sei de onde vim, nem o que sou
por detrás desta máscara de terra batida,
pálido reflexo de anjo adormecido
no silêncio de um areal de trevas.
Sei apenas que vim de longe,
dos remotos desertos da existência
e da poeira moribunda dos séculos,
como um peregrino sem norte
na solitária busca de uma miragem
para lá dos horizontes de janelas interrompidas.
Nos meus braços enredam-se sonhos mortos
e uma teia de abismos encadeados,
e tudo parece tão anestesiado e distante
neste turvo cenário de labirintos cruzados
e decadentes enigmas sem solução,
onde, fria e ondulante,
se espraia a mordaça da solidão.
Sem revelar minha identidade,
sigo o apelo sufocante dos sentidos
no dobrar decrépito de sinos distantes,
sempre a fugir do naufrágio
e do sombrio perímetro do gelo,
iludindo o peso ancestral dos mitos
e a precoce morte das manhãs.
Sem poder voar,
atravesso a nado os penhascos da dor,
visto-me de dissimuladas aspirações
e me escondo na aparência gélida das estátuas,
forjando escudos de alento
no seio da mentira que me cerca,
em busca de dias melhores.
Digerindo o fúnebre veneno destes dias
e as carícias melancólicas do gelo
no vidro polido do meu rosto,
enterro meus segredos no bojo do areal,
desato os nós ensebados da indiferença,
e finjo sofrer da mesma alucinação colectiva
que tolhe os ossos paralisados dos espantalhos.
Só não consigo iludir
a infinita paciência do tempo.
A última ceia
Estão todos presentes à mesa
mas só um sabe que o gesto não se repetirá.
É um homem que veio de longe
cumprindo o delírio febril dos profetas;
a antiga promessa de uma chegada
escrita na memória branca das pedras.
Em silêncio enche doze taças
e dá a beber o sangue da sua herança;
o sangue de um sacrifício ainda por cumprir,
enquanto contempla a felicidade breve
nos rostos que, à direita e à esquerda, o cercam.
Uma estranha visão lhe incendeia o olhar.
Um momento de sombra que o atravessa,
como o pastor debruçado sobre o seu rebanho
ao pressentir a aproximação da tempestade,
fixando ternamente o lugar onde se senta
a ovelha que irá atrair a demência dos lobos.
Um manto branco ressalva a luz que o cobre.
É um rei, mas nada reclama para si,
basta-lhe o saber que é escutado, e que
alguém sobrará para lhe perpetuar o nome.
Ocupa agora o centro da mesa. De pé
com os braços estendidos para a frente
lentamente reparte o pão
como quem vira a última página de um livro
que não poderá voltar a ser fechado.
ANGÚSTIA DO POETA ANTE A FOLHA VAZIA
Preso numa teia de difusos sentimentos
Mergulho no marasmo pardo do labirinto
Inquietas sirenes me estrangulam os pensamentos
E não sou capaz de descrever o que sinto
Frio como mármore de túmulos dispersos
Este alvor deserto me confunde e intima
Tropeço nas virgulas dos próprios versos
E sinto-me impotente para acertar a rima
Com os dedos manchados de silêncio dorido
Busco a luz perdida num cais distante
Guiando o leme do lápis emudecido
Por entre névoas e ondulação inconstante
Subitamente recordo teu rosto iluminado
E uma fresta de luz se abre na escuridão
Teu sorriso, resgatado aos abismos do passado,
Por momentos, liberta-me das garras da solidão
Por entre as margens do papel enrugado
Busco nos teus lábios um calor antigo
Mas meu gesto, confuso e precipitado,
Te devolve à treva de um oculto postigo
De novo se quebram os espelhos da inspiração
Resvalando nos abismos de um universo sombrio
E fico, uma vez mais, com esta folha branca na mão
Tolhido na métrica de um poema vazio