sabe-me a sal o teu porão
Deixa-me descer ao teu porão,
Não quero mais ser âncora,
Quero flutuar
Pelo mar bravio do teu corpo
E afundar-me no precipício da tua intimidade.
Rasgar-te o ventre
Como quilha contra a maré,
Enfunar as velas em contra ciclo
Do vento norte.
Tomar tua boca como gomo de citrino
Que refresca e sara as feridas
Da longa viajem,
Saciar em teus seios a sede de água doce
Do teu corpo que ondula a cada vaga do desejo
Que nos assola.
No teu ventre procuro a noite
De águas plácidas em calmaria,
Lua ao largo em reflexos de prata
Que se estendem pelas praias de areia
Quente do meu corpo.
Quando entro no teu porão
Em vagas ondulantes,
Sou pirata do teu mar,
Corsário destemido
Em busca de abrigo da longa jornada
Desse mar sem fim,
Cabo das tormentas
Que vira Boa-Esperança,
No reencontro cálido
Do Atlântico com o Indico,
Do Pacifico quente na dobra da patagónia
Ao encontro do frio do pólo.
Suavizamos as marés nesse encontro,
Celebramos cada reencontro
Em investidas ondulantes
Que bebemos nos lábios,
Regatos de amor que alimentam oceanos.
Sabe-me a oceano o teu porão salgado,
Sabe-me a infinito a quilha da tua vontade.
Um boneco sem braço
Rumo sem destino e sem dono
Sem pai, nem mãe que me aconchegue
Não tive em menino o xaile da avozinha
A fartura nunca é prato que me chegue
Morro em cada olhar de comiseração
Para reviver sem motivo aparente
Em qualquer esquina do descontentamento
Prenha de tráfego e gente que me passa rente
Tenho como amigos caixotes de lixo
Onde busco restos de felicidade,
Às vezes, um carrinho sem rodas
Rouba-me à minha realidade
Um barco sem velas, boneca de trapos,
Caderno velho, um lápis partido
Ou até quem sabe, e se deus quiser
Um hambúrguer meio mordido
Uma bola furada, lego desemparelhado
Rádio sem pilhas, boneco sem braço,
Faço dele o menino que sonho ser
Envolvo-o num terno abraço
Ensaio sobre a condição feminina
O Sr. José era velho, tão velho que na aldeia ninguém se lembrava dele novo, como seria o seu falar ainda de rapaz ou a voz grossa de homem feito. Na tasca da aldeia onde os homens rompiam as falanges nos balcões de mármore no tamborilar impaciente da chegada de mais uma pinga dizia-se que ele devia ter mais de cem anos mas ninguém lhe dava mais de 50 e picos, 60 e coisa, 70 e tal. Uma indefinição que a jorna da terra lhe sulcava no corpo alquebrado, nos pés de galinha profundos em volta dos olhos, os rasgos no canto da boca que lhe afilavam os lábios já de si finos, e uma testa que parecia percorrida por um arado.
O Sr. José ia casar finalmente com a Zulmira, mulher recatada e trabalhadeira, filha mais nova de um grupo de 15 irmãos e que tinha ficado na casa materna até que o Senhor chamara a mãe para a última morada cumprindo assim a tradição de cuidar dos velhos pais até ao último suspiro. A Zulmira fizera também ela essa dobra na idade em que já não se consegue definir os anos que lhe passaram nas vértebras doidas da espinha dobrada no manejo da enxada. Com a morte da mãe a sua única fortuna era a vaca galega cuja afeição a tinha impedido de a mandar para o matadouro quando os úberes secaram e as forças lhe faltaram para aguentar com o cabresto e puxar o arado e ficou assim a modos que o animal de estimação da Zulmira.
O casamento foi motivo de galhofa e enriqueceu o anedotário da taberna, com piadas que punham em dúvida a virilidade do Sr. José e a capacidade que teria em meter dentro os tampos tão antigos da Zulmira, que todos juravam ceguinhos ela ainda teria por via da sua feiura que afugentara sempre os mais corajosos e afoitos. Por sua vez o Sr. José gozava da fama de mulherengo apesar da idade e contava-se à boca pequena as suas viagens à cidade grande onde gastaria o pequeno pecúlio arrecadado nos negócios fortuitos da venda de gado.
O Sr. José era homem à antiga, que se fazia respeitar e a Zulmira mesmo casada com ele continuava a tratá-lo por Sr. José e dedicava-lhe o mesmo esmero e atenção que dedicou á mãe até à hora da morte. O Sr. José no fim do almoço ia para baixo da vinha no fundo do quintal gozando a sombra prazenteira com uma vasilha de tremoços e azeitonas, um pedaço de broa e uma enfusa de vinho, a qual quando acabava o fazia dar altos berros à Zulmira
- Ó mulher enche-me a enfusa…- e lá vinha a Zulmira quintal abaixo buscar a enfusa vazia, subia o quintal, ia à adega enchia a enfusa, descia novamente o quintal deixava a enfusa ao Sr. José e subia de novo o quintal para continuar os afazeres. O Sr. José era cioso do aprumo do quintal:
- Ó mulher, é preciso podar a pereira.
- Ó mulher, é preciso capar os tomates
- Ó mulher, a alface precisa de ser colhida para ir para a feira.
E a Zulmira lá ia no seu vagar sem nunca reclamar acedendo às ordens do Sr. José.
Um dia na volta de uma das suas misteriosas viagens o Sr. José trazia no alvo colarinho uma mancha suspeita. A Zulmira indagou-o da proveniência de tão indigna nódoa.
- É sabão da barba…- respondeu o Sr. José.
- Não pode ser Sr. José, isso parece aqueles “pozes” que as mulheres finas usam – respondeu a Zulmira numa voz segura e firme que surpreendeu até ao Sr. josé.
- É sabão da barba, é sabão da barba e não se fala mais nisso. – Vociferou o Sr. José num tom de voz que não permitia réplicas. A Zulmira calou-se numa fúria que nunca tinha sentido, a vaca galega afinou a longa orelha percebendo os humores da dona. O Sr José tirou o laço, pegou na enfusa e dirigiu-se para o fundo da vinha seguido pela vaca galega. A Zulmira tinha feito á força de enxada um rego para conduzir as águas da fossa para o batatal enquanto o Sr. José estava fora, este não contando com o fundo rego caiu de frente no rego afundando o corpo em meio metro de águas pútridas e fedidas ricas em húmus para s terras, a vaca Zulmira inadvertidamente colocou-lhe a pata por cima da cabeça parando o andar lento e o olhar no fundo do quintal, abanando a cauda sobre o lombo para enxotar a mosca. A Zulmira estranhando a duração da enfusa que já devia ter esgotado foi quintal abaixo e encontrou o Sr. José afundado na merda e no mijo, já sem respirar, molhado e inerte, a vaca galega mugiu a finados…
Os anos passaram-se e a Zulmira ficou dona das extensas terras do sr. José, as estradas já estavam alcatroadas, o lar de idosos da aldeia já tinha sido fundado.
Ia pela estrada até ao cemitério decorar a campa dos seus pais e do seu Sr. José, à vinda perguntavam-lhe:
- Ó Zulmira, porque não vais para o lar, ao menos lá tinhas companhia, alguém cuidava de ti…
- Eu cá “num” preciso disso, tenho a minha galega que já me faz companhia que chegue – e continuava o seu passo quebradiço apoiado já por um cajado na berma da estrada com a galega a ladeá-la protegendo-a dos incautos motoqueiros e motoristas que aproveitavam o asfalto da estrada para se finarem nas bermas. A galega era a rocha em que contra tudo se desfazia.
sim, eu confesso...
Rasgo-te, em cada palavra
Brota de mim um instinto puro
Na auto-preservação
Da minha demência,
Alimentada pelo sangue que te derramo.
Não procuro sequer desculpas.
Rasgo-te prostituído pela vontade de te possuir
Não só o corpo, antes a alma
Que me dizes minha mas que a distancia, teima
Em adiar presente nas dores que te (nos) provoco.
Rasgo-te no impulso do meu querer vagabundo e clandestino
Gumes afiados por dentro do teu bem-querer
Que sei que tens, que sei que me dedicas
No porfiar das promessas que me fazes.
Rasgo-te sem que o consintas
Quiçá pesado na desilusão da saudade
Sempre presente, nunca saciada.
Que de ti meu amor, angustia da alma,
Sorriso do meu ser
Nunca me sacio… a saudade é ela própria
O rasgo do meu querer
A menina dos fósforos (ou um grito á indiferença)
Na rua escura, frio estava
A neve não párava de cair,
O vento sempre a fluir,
Tão forte que a roupa furava.
-Quem quer fósforos baratos?
Assim a menina apregoa,
Antes que a alma lhe doa,
Aos transeuntes ingratos
De pobres chinelos calçados
Entretanto por ali perdidos
Algures na neve escondidos
Lindos cabelos encaracolados
Sua pele de frio roxa
Emprestava-lhe mais beleza
Lábios carmins, olhar de pureza,
Vestido que não lhe tapa a coxa
Mas o dia corria-lhe mal
Cheia de fome abandono e frio
Em longo e triste delírio,
Aconchegou-se num beiral
Para casa assim não iria
Sem os fósforos vender,
O pai irado ia-lhe bater
Ainda mais dor padeceria.
Moravam em água-furtada
Frio e chuva por todo o lado.
A mãe, tinha-se libertado
Pela lei da morte arrancada
Precisava a menina de calor
Tremente de frio e tristeza
Vivendo na triste certeza
De uma vida em constante dor
Decidiu um fósforo acender
Uma chama acesa e acolhedora,
Olhada assim em ar de sonhadora
Naquela luz conseguiu ver
Uma linda lareira refulgente
Onde ardia uma linda chama
Ia sair pelo calor daquele drama
Aquecer-se na luz incandescente
Mas o fósforo logo apagou
Voltou a menina a tiritar
Daquele frio de rachar,
De outro fósforo se lembrou
Logo uma mesa lhe apareceu,
Em toalha alva contra a luz
Uma mesa de comida que reluz,
Que belo manjar lhe apeteceu
Quando ia para comer
E a longa fome matar,
A barriga da miséria tirar,
O fósforo deixou de arder
Rápido, a menina outro acendeu
Apareceu a avó em aura de felicidade
Com seu olhar perene de caridade
-vem! - Disse, e o braço lhe estendeu
A menina deu-lhe logo a mão
Antes que o fósforo apagasse
E a sua avó também levasse
A felicidade do seu coração
Tomou a neta em seus braços
E levantando da terra os pés
Assim sem mais demoras nem revés
Fizeram das nuvens doces enlaços
Voaram num rasto de luz e cor
Assim de repente sem mais dor
As duas abraçadas em puro ardor
O céu curvou-se ao seu esplendor
Nasceu o dia o cadáver ignorando
Da menina que ainda sorria
Da morte que já não padecia
E merecido descanso gozando
(adaptado do conto de Hans Christian Andersen)
Eu queria fazer-te um poema
Eu queria fazer-te um poema
Que nunca ninguém tivesse feito
Queria escolher palavras que nunca tivesses lido
Formular-te desejos que nunca sentiste
Desenhar-te em traços intermitentes
Colorir-te em cores surreais
Apanhar-te na simbiose cálida
De um fado com uma morna,
Descobrir-te na combinação
De um Dali com um Monet,
Encontrar-te na esquina
Da saudade com o agora.
E agora… e agora roubar-te
Da realidade para o sonho
Da calma para a tormenta
De uma tormenta de lençóis
Em cama revolta e enfim
Fazer-te o poema…
Escrito com os nossos corpos,
Declamado nos nossos sussurros
Não encontro o poema que te fiz
Sabes? Fiz-te um poema…
Ainda sem saber ler nem escrever
Mas já te adivinhava algures
Nas penumbras do meu ser
Nesse poema falo da promessa
Cálida em teus olhos de mar
Falo do abismo da tua boca,
Morango silvestre para eu ferrar.
Falo do cheiro do teu cabelo
Do perfume que me inebria,
Tua pele de sabor salgado
Adivinho o prazer que me daria.
Sabes? Fiz-te um poema assim
Mas não o encontro, na tal gaveta
Onde guardo a ternura da alma.
Voou nas asas de uma borboleta.
Procurei-a no verde dos campos
Emparedados nas mimosas dos montes
Procurei-o nos valados em declives
Que alimentam as águas das fontes
Procurei no cantar dos riachos
Debruados de azul em noite de luar
Cerram-se os olhos cala-se a voz
Por o teu poema não encontrar.
Sabes? Nesse poema ainda te não conhecia
Mas sabia que algures me esperavas
Queria agora declamar-te o poema que fiz,
Rendilhar de ternuras da minha voz brotadas.
A morte de Deus...
Vejo sempre ao entardecer a gente que carrega a noite a buscar um vão de montra de rua para estender o cartão que lhe serve de colchão! Demora os olhos na vitrina presa a uma televisão para venda que demonstra a ultima tecnologia de alta definição no retrato pungente de uma criança esvaída numa praia.
Fica especado a apreciar a qualidade da imagem que mostra os mil fragmentos da bomba, agora banhados em sangue num qualquer mercado, não importa onde, só a alta definição importa!
A imagem muda e mais uma vez essa qualidade férrea mostra-nos os gordos sentados em poltronas a decidir o que fazer dessas bombas, das crianças que se misturam com os seixos das praias tão mortos como eles. Das mães que rasgam as coxas em embarcações para logo se perder numa rajada assassina, de vento ou de metralha.
E em discussões intermináveis invocam até Deus… Numas invocações ele usa uma coroa de espinhos, noutras aparece simplesmente vestido de um branco imaculável, outras ainda um turbante. E cada um tem a certeza que esse é que é Deus, que o seu retrato é o mais fiel!
Tão bem retratado que o desenho serviria para lhe dedicar um túmulo: “aqui jaz um Deus que nada quis com os seus!” Como se ele se importasse!
Por isso não me perguntes se eu acredito em Deus, diz-me antes se ele acredita em mim!
prostituta de mim, prostituida pela palavra
A palavra toma-me por louco
Na frase o grito rouco,
E não sei que mais lhe diga
Deixa minha boca aflita
Obedeço-lhe aos caprichos
Tudo que eu calo é pouco
A essa louca prostituída
Ante a verdade proscrita
Chupa-me o sangue, rói-me as veias
Bebem-me vinho tinto as letras
Morde-me a alma castiga-me o corpo
Lavam-me o corpo e maceram a alma
Canta-me em poesia, deleita-me na prosa
Cortam-me em penas da mão a palma
Enrola-me no enlevo do seu doce sopro
Setas de amores que em mim penetras
Toma-me no corpo, vendaval de paixões
Arrastam-me palavras cheias de emoções
Assassina-me a vontade em seus braços
Elevam-me acima das nuvem do céu
Roça-me húmida no deambular das emoções
Caem dos olhos em tempestades e trovões
Mil, como mil são seus regaços.
E dentro no peito fazem escarcéu
Corre-me nas veias liquefeita
A loucura dessa vida imperfeita
Umas vezes torpe outras sôfrega
Beija de poemas minha pele
Munida de punhal ou de penas travestida
A matéria de que eu sou feita
Mas nunca a palavra me saiu trôpega
A utopia e ao prazer me impele.
Porque me tratas por amor...
Queria-te fazer o mais lindo poema
Tricotar-te as palavras no mais puro fio
Sentir-te as mãos na suave forma
Do meu bordar desenhado no vazio
Que a tua ausência preenche
Quando a saudade me despe de mim
Num bem-querer que me veste de ti
Nas palavras que me segredas assim
No manso restolhar do linho
De lençóis de puro e doce lavor
Que como os fios do bordado
Se entrelaçam nos corpos em ardor
És a teia do meu mais doce fascínio
Na trama que no meu corpo entrelaças
Abres-te mulher enfim, quando me tratas
Por amor, os desejos que desabafas
Serena e confiante ao meu ouvido
Num sussurro de lamentos e urgência
E eu grito amor, que sim que sou teu
Que sim, és a minha existência