Budismo moderno |
em 07/08/2023 19:47:00 (237 leituras) |
Tome, Dr., esta tesoura e… corte Minha singularíssima pessoa. Que importa a mim que a bicharia roa Todo o meu coração depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte! Também, das diatomáceas da lagoa A criptógama cápsula se esbroa Ao contrato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida Igualmente a uma célula caída Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades Fique batendo nas perpétuas grades Do último verso que eu fizer no mundo!
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A Neve e o Amor |
em 07/08/2023 18:57:00 (243 leituras) |
A Neve e o Amor
Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve. Sempre estive à sua espera. Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos e vi a neve caindo na estepe siberiana e no casaco roto de Fédor Dostoievski. Amo a neve porque ela não separa o dia da noite nem afasta o céu das aflições da terra. Une o que está separado: os passos dos homens condenados ao gelo escurecido e os suspiros de amor que se perdem no ar. É necessário ter um ouvido muito afiado para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem, ou o estertor de um pássaro. Não se deve esperar a neve como se espera o amor. São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria que não queima como o fogo do amor. Para ver o amor os nossos olhos não bastam, nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações que batem na escuridão com o mesmo rumor da neve caindo nas estepes e nos telhados das cabanas escuras e no casaco roto de Fédor Dostoievski. Para ver o amor, nada basta. E tanto o frio do inverno como o calor escaldante o afastam de nós, de nossos braços abertos e de nossos corações atormentados. Fiel à minha infância, prefiro ver a neve que une o céu e a terra, a noite e o dia, a ser a presa indefesa do amor, o amor que não é branco nem puro nem frio como a neve.
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Dor elegante |
em 08/07/2023 19:10:00 (376 leituras) |
Um homem com uma dor É muito mais elegante Caminha assim de lado Com se chegando atrasado Chegasse mais adiante
Carrega o peso da dor Como se portasse medalhas Uma coroa, um milhão de dólares Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos Não me toquem nessa dor Ela é tudo o que me sobra Sofrer vai ser a minha última obra |
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Antífona |
em 17/03/2023 01:12:24 (262 leituras) |
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas e áureas correntezas... Cristais diluídos de clarões alacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos, Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte... |
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Agora não se fala mais |
em 14/03/2023 15:14:14 (349 leituras) |
Agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início:
Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios.
Você não tem que me dizer o número de mundo deste mundo não tem que me mostrar a outra face face ao fim de tudo:
só tem que me dizer o nome da república do fundo o sim do fim do fim de tudo e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar a outra mesma face ao outro mundo (não se fala. não é permitido: mudar de idéia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos. está vetado qualquer movimento.
Torcato Neto
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O Que Eu Sou |
em 14/03/2023 15:13:13 (309 leituras) |
O Que Eu Sou
Nocturna e dubia luz Meu sêr esboça e tudo quanto existe... Sou, num alto de monte, negra cruz, Onde bate o luar em noite triste...
Sou o espirito triste que murmura Neste silencio lúgubre das Cousas... Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura De falecidas formas mentirosas.
E tu, Sombra infantil do meu Amôr, És o Sêr vivo, o Sêr Espiritual, A Presença radiosa... Eu sou a Dôr, Sou a tragica Ausencia glacial...
Pois tu vives, em mim, a vida nova, E eu já não vivo em ti... Mas quem morreu? Fôste tu que baixaste á fria cova? Oh, não! Fui eu! Fui eu!
Horrivel cataclismo e negra sorte! Tu fôste um mundo ideal que se desfez E onde sonhei viver apoz a morte! Vendo teus lindos olhos, quanta vez, Dizia para mim: eis o logar Da minha espiritual, futura imagem... E viverei á luz daquele olhar, Divino sol de mistica Paisagem.
Era minha ambição primordial Legar-lhe a minha imagem de saudade; Mas um vento cruel de temporal, Vento de eternidade, Arrebatou meu sonho! E fugitiva Deste mundo se fez minha alegria; Mais morta do que viva, Partiu comtigo, Amôr, á luz do dia Que doirou de tristêsa o teu caixão... Partiu comtigo, ao pé de ti murmura; É maguada voz na solidão, Dôce alvor de luar na noite escura... E beija o teu sepulcro pequenino; Sobre ele vôa e erra, Porque o teu Sêr amado é já divino E o teu sepulcro, abrindo-se na terra, Penetrou-a de luz e santidade... E para mim a terra é um grande templo E, dentro dele, a Imagem da Saudade... E reso de joelhos, e contemplo Meu triste coração, saudoso altar Alumiado de sombra, escura luz... Nele deitado estás como a sonhar, Meu pequenino e mistico Jesus... Lagrimas dos meus olhos são as flôres Que a teus pés eu deponho... Enfeitam tua Imagem minhas dôres, E alumia-te, ás noites, o meu sonho.
Todo me dou em sacrificio á tua Imagem que eu adoro. Sou branco incenso á triste luz da lua: Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...
Teixeira de Pascoaes,
in 'Elegias'
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Literato Cantabile |
em 26/01/2016 17:28:38 (3818 leituras) |
agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início;
agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios.
você não tem que me dizer o número de mundo deste mundo não tem que me mostrar a outra face face ao fim de tudo:
só tem que me dizer o nome da república do fundo o sim do fim do fim de tudo e o tem do tempo vindo;
não tem que me mostrar a outra mesma face ao outro mundo (não se fala. não é permitido: mudar de idéia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos. está vetado qualquer movimento |
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Soneto de Abril |
em 17/04/2015 23:41:47 (2000 leituras) |
Soneto de Abril
Agora que é abril, e o mar se ausenta, secando-se em si mesmo como um pranto, vejo que o amor que te dedico aumenta seguindo a trilha de meu próprio espanto.
Em mim, o teu espírito apresenta todas as sugestões de um doce encanto que em minha fonte não se dessedenta por não ser fonte d'água, mas de canto.
Agora que é abril, e vão morrer as formosas canções dos outros meses, assim te quero, mesmo que te escondas:
amar-te uma só vez todas as vezes em que sou carne e gesto, e fenecer como uma voz chamada pelas ondas.
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Soneto da Porta |
em 17/04/2015 23:40:10 (2593 leituras) |
Quem bate à minha porta não me busca. Procura sempre aquele que não sou e, vulto imóvel atrás de qualquer muro, é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.
Que saiba quem me busca e não me encontra: sou aquele que está além de mim, sombra que bebe o sol, angra e laguna unidos na quimera do horizonte.
Sempre andei me buscando e não me achei: E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda da luz perdida de uma estrela morta,
sinto saudades do que nunca fui, do que deixei de ser, do que sonhei e se escondeu de mim atrás da porta.
De: IVO, Ledo. "Plenilúnio". In: Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
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Descoberta Do Inefável |
em 16/04/2015 22:03:13 (1881 leituras) |
A Lêda
Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável, como pode louvar, não traindo a si mesmo, a plena e estranha juventude da moça a quem ama? Que é o poeta, que imita as marés, sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua como se as estrelas estivessem caminhando governadas pelo seu riso e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?
Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra, que é o poeta? Libertado estou quando canto. E quero que minha respiração oriente a vontade das nuvens e meu pensamento de amor se misture ao horizonte. Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem, no instante anterior ao despertar, folha voando.
Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer, como conseguirei louvar essa moça a quem amo e que nasce em minha lembrança plena como a noite e triunfante como uma rosa que durasse eternamente e não se limitasse à glória de um dia? Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar, não poderei descer de repente ao inferno de seu corpo nu.
O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós que alteraremos a indizível ordem das coisas com as nossas mãos que poderão ficar imóveis em pleno amor, diante do corpo amado.
É inútil pensar que os anjos morreram ou se despaisaram, buscando outros lugares. Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite, entre as nuvens e as casas em que moramos.
Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda no sempre. Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer, dormir e amar. Temos necessidade de anjos, para ser homens. Temos necessidade de anjos, para ser poetas.
Vem, incontável música, e anuncia (ao poeta e ao homem, humilde unidade) a ressurreição diária dos anjos. Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez sem que eu soubesse, por um anjo perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.
Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração dos homens. Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas. Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança de uma mulher.
São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez à ordem eterna e, à anunciação. Não nos libertaremos jamais desses anjos feitos de terra e mar, celestes criaturas que deixam cair em nós o sol da harmonia.
É inútil matar os anjos. Eles são invisíveis e traiçoeiros. De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos os consumidores de instantes, e estamos entre o Dia e a Noite, no umbral de uma eternidade vigiada pelos anjos.
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Canto Grande |
em 15/04/2015 00:51:00 (1416 leituras) |
Canto Grande
Não tenho mais canções de amor. Joguei tudo pela janela. Em companhia da linguagem fiquei, e o mundo se elucida.
Do mar guardei a melhor onda que é menos móvel que o amor. E da vida, guardei a dor de todos os que estão sofrendo.
Sou um homem que perdeu tudo mas criou a realidade, fogueira de imagens, depósito de coisas que jamais explodem.
De tudo quero o essencial: o aqueduto de uma cidade, rodovia do litoral, o refluxo de uma palavra.
Longe dos céus, mesmo dos próximos, e perto dos confins da terra, aqui estou. Minha canção enfrenta o inverno, é de concreto.
Meu coração está batendo sua canção de amor maior. Bate por toda a humanidade, em verdade não estou só.
Posso agora comunicar-me e sei que o mundo é muito grande. Pela mão, levam-me as palavras a geografias absolutas.
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Minha Namorada |
em 11/04/2015 01:05:02 (3230 leituras) |
Se você quer ser minha namorada Ah, que linda namorada Você poderia ser Se quiser ser somente minha Exatamente essa coisinha Essa coisa toda minha Que ninguém mais pode ser
Você tem que me fazer um juramento De só ter um pensamento Ser só minha até morrer E também de não perder esse jeitinho De falar devagarinho Essas histórias de você E de repente me fazer muito carinho E chorar bem de mansinho Sem ninguém saber por quê
Porém, se mais do que minha namorada Você quer ser minha amada Minha amada, mas amada pra valer Aquela amada pelo amor predestinada Sem a qual a vida é nada Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho E talvez o meu caminho seja triste pra você Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos Os seus braços o meu ninho No silêncio de depois E você tem que ser a estrela derradeira Minha amiga e companheira No infinito de nós dois
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Até Amanhã |
em 06/10/2014 19:10:16 (4748 leituras) |
Sei agora como nasceu a alegria, como nasce o vento entre barcos de papel, como nasce a água ou o amor quando a juventude não é uma lágrima.
É primeiro só um rumor de espuma à roda do corpo que desperta, sílaba espessa, beijo acumulado, amanhecer de pássaros no sangue.
É subitamente um grito, um grito apertado nos dentes, galope de cavalos num horizonte onde o mar é diurno e sem palavras.
Falei de tudo quanto amei. De coisas que te dou para que tu as ames comigo: a juventude, o vento e as areias.
Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã" |
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Esses Moços |
em 06/10/2014 19:01:57 (2378 leituras) |
Esses moços, pobres moços Ah! Se soubessem o que eu sei Não amavam, não passavam Aquilo que já passei Por meu olhos, por meus sonhos Por meu sangue, tudo enfim É que peço A esses moços Que acreditem em mim
Se eles julgam que há um lindo futuro Só o amor nesta vida conduz Saibam que deixam o céu por ser escuro E vão ao inferno à procura de luz Eu também tive nos meus belos dias Essa mania e muito me custou Pois só as mágoas que trago hoje em dia E estas rugas o amor me deixou
Esses moços, pobres moços Ah! Se soubessem o que eu sei Não amavam, não passavam Aquilo que já passei Por meu olhos, por meus sonhos Por meu sangue ,tudo enfim É que peço A esses moços Que acreditem em mim
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Vida e Obra |
em 29/09/2014 16:35:47 (4825 leituras) |
Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina, 9 de novembro de 1944 — Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1972) foi um poeta, jornalista, letrista de música popular, experimentador da contracultura brasileiro. Torquato Neto era filho de um defensor público (Heli da Rocha Nunes) e de uma professora primária de Teresina (Maria Salomé Nunes). Mudou-se para Salvador aos 16 anos para os estudos secundários, onde foi contemporâneo de Gilberto Gil no Colégio Nossa Senhora da Vitória e trabalhou como assistente no filme Barravento, de Gláuber Rocha.
Torquato envolveu-se ativamente na cena cultural soteropolitana, onde conheceu, além de Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar jornalismo na universidade, mas nunca chegou a se formar. Trabalhou para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora. Torquato atuava como um agente cultural e polemista defensor das manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o Cinema Marginal e a Poesia Concreta, circulando no meio cultural efervescente da época, ao lado de amigos como os poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso e o artista plástico Hélio Oiticica. Nesta época, Torquato passou a ser visto como um dos participantes do Tropicalismo, tendo escrito o breviário "Tropicalismo para principiantes", onde defendeu a necessidade de criar um "pop" genuinamente brasileiro: "Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". Torquato também foi um importante letrista de canções icônicas do movimento tropicalista.
No final da década de 1960, com o AI-5 e o exílio dos amigos e parceiros Gil e Caetano, viajou pela Europa e Estados Unidos com a mulher Ana Maria e morou em Londres por um breve período. De volta ao Brasil, no início dos anos 1970, Torquato começou a se isolar, sentindo-se alienado tanto pelo regime militar quanto pela "patrulha ideológica" de esquerda. Passou por uma série de internações para tratar do alcoolismo, e rompeu diversas amizades. Em julho de 1971, escreveu a Hélio Oiticica: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma. Todo mundo virou uma espécie de Capinam (esse é o único de quem eu não gosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral é isso mesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui é escapismo, vanguardismo de Capinam que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado, ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio."
Torquato se matou um dia depois de seu 28º aniversário, em 1972. Depois de voltar de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Sua mulher dormia em outro aposento da casa. O escritor foi encontrado na manhã seguinte pela empregada da família.
Sua nota suicida dizia: "FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar". Thiago era o filho de dois anos de idade.
Na década de 1980, a partir de 1984, as gerações mais recentes puderam apreciar o talento poético de Torquato através de seu obscuro poema, "Go Back", que naquele ano recebeu a primeira gravação musical do grupo Titãs, com música feita pelo tecladista e um dos cantores do grupo, Sérgio Britto. A popularidade seria consagrada em 1988, quando os Titãs deram um arranjo ainda mais vigoroso à música, faixa-título de um disco gravado em Montreux, na Suíça.
Na madrugada do dia 27 de setembro de 2010, seu pai, o defensor público Dr. Heli Rocha Nunes, 92 anos de idade, morreu em Teresina, após uma parada cardíaca. A família aguardou a chegada do único filho do poeta piauiense, Thiago de Araújo Nunes (piloto de aeronave em uma companhia aérea brasileira), para realizar o sepultamento do avô. Frases
"Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela (…). Quem não se arrisca não pode berrar."
Composições
A coisa mais linda que existe (com Gilberto Gil) A rua (com Gilberto Gil) Ai de mim, Copacabana (com Caetano Veloso) Andarandei (com Renato Piau) Cantiga (com Gilberto Gil) Capitão Lampião (com Caetano Veloso) Começar pelo recomeço (com Luiz Melodia) Daqui pra lá, de lá pra cá Dente por dente (com Jards Macalé) Destino (com Jards Macalé) Deus vos salve a casa santa (com Caetano Veloso) Domingou (com Gilberto Gil) Fique sabendo (com João Bosco e Chico Enói) Geleia geral (com Gilberto Gil) Go back (com Sérgio Britto) Juliana (com Caetano Veloso) Let's play that (com Jards Macalé) Lost in the paradise (com Caetano Veloso) Louvação (com Gilberto Gil) Lua nova (com Edu Lobo) Mamãe coragem (com Caetano Veloso) Marginália II (com Gilberto Gil) Meu choro pra você (com Gilberto Gil) Minha Senhora (com Gilberto Gil) Nenhuma dor (com Caetano Veloso) O bem, o mal (com Sérgio Britto) O homem que deve morrer (com Nonato Buzar) O nome do mistério (com Geraldo Azevedo) Pra dizer adeus (com Edu Lobo) Quase adeus (com Nonato Buzar e Carlos Monteiro de Sousa) Que película (com Nonato Buzar) Que tal (com Luís Melodia) Rancho da boa-vinda (com Gilberto Gil) Rancho da rosa encarnada (com Gilberto Gil e Geraldo Vandré) Soy loco por ti, América (com Gilberto Gil e Capinam) Todo dia é dia D (com Carlos Pinto) Três da madrugada (com Carlos Pinto) Tudo muito azul (com Roberto Menescal) Um dia desses eu me caso com você (com Paulo Diniz) Veleiro (com Edu Lobo) Vem menina (com Gilberto Gil) Venho de longe (com Gilberto Gil) Vento de maio (com Gilberto Gil) Zabelê (com Gilberto Gil)
*Wikipédia
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Vida e Obra |
em 17/09/2014 15:25:15 (2624 leituras) |
Lupicínio Rodrigues nasceu em Porto Alegre, 16 de setembro de 1914 e faleceu na mesma cidade em 27 de agosto de 1974, foi um cantor e compositor brasileiro.
Lupe, como era chamado desde pequeno, compôs marchinhas de carnaval e sambas-canção, músicas que expressam muito sentimento, principalmente a melancolia por um amor perdido. Foi o inventor do termo 'dor-de-cotovelo', que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede um uísque duplo, e chora pela perda da pessoa amada. Constantemente abandonado pelas mulheres, Lupicínio buscou em sua própria vida a inspiração para suas canções, onde a traição e o amor andavam sempre juntos.
De 1935 a 1947, trabalhou como bedel da Faculdade de Direito da UFRGS. Nunca saiu de Porto Alegre, a não ser por uns meses em 1939, para conhecer o ambiente musical carioca. Porto Alegre era seu berço querido e todo o seu universo.
Boêmio, foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes com música, que seguidamente ia abrindo e fechando, tudo apenas para ter, antes do lucro, um local para encontro com os amigos.
Torcedor do Grêmio, compôs o hino tricolor, em 1953: Até a pé nós iremos / para que der e vier / Mas o certo é que nós estaremos / com o Grêmio onde o Grêmio estiver. Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube.
Deixou cerca de uma centena e meia de canções editadas; outras centenas que compôs foram perdidas, esquecidas ou estão à espera de quem as resgate. Encontra-se sepultado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre.
Obras:
Aves daninhas Cadeira vazia Cevando o amargo Ela disse-me assim Esses moços, pobres moços Exemplo Felicidade Foi assim Hino do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense Judiaria Loucura Maria Rosa Migalhas Nervos de Aço Nunca Quem há de dizer Se acaso você chegasse Se é verdade Sozinha Torre de Babel Um favor Vingança Volta Zé Ponte
Algumas curiosidades sobre o autor:
Apesar de boêmio, no fim de semana ele virava caseiro
– Quando falam do boêmio, tu sempre imagina um camarada que vive na noite, de bar em bar. Mas ele tinha um lado caseiro muito grande. Ele só era boêmio de segunda a sexta, no fim de semana gostava de reunir a família, fazer churrasco, cozinhar para os amigos. Mais tarde, comprou um sítio na Cavalhada, ali perto da Avenida Otto Niemeyer, onde criava porco, galinha, pato, e adorava essa vida – conta Arthur.
Não podia chegar em casa depois das 4h
– Quando ia para a noite, Lupicínio tinha uma carta de alforria da mulher até as 4h da manhã. Se chegasse às 4h01min, a casa caia. Então, ele tinha uma rotina: chegava em casa pontualmente às 4h, tomava uma sopinha e ia deitar. Perto do meio dia, acordava e ia cozinhar. Almoçava, tirava uma sesta e, pelas 15h, começava o ritual: vestia o melhor terno e saía. Como ele era representante da SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), dava uma passada na sede e, logo depois, ia de bar em bar. Usava como desculpa a função de representante do sindicato, mas era só isto: uma desculpa.
Trabalhou na Carris antes da fama
– Ele chegou a trabalhar na Carris, como auxiliar de mecânico, uma espécie de aprendiz, mas não deu certo. Depois, foi ser bedel da faculdade de direito da UFRGS, aquele cara que fica cuidando dos corredores, faz serviço para os professores. Nessa profissão, ele ficou muito tempo – lembra o diretor.
Seu melhor amigo era um boxeador que cantava na noite
– O maior amigo do Lupi era o Orlando Silva, um cara conhecido como Johnson. Eram corda e caçamba. O Johnson era boxeador, teve até grande destaque em Porto Alegre. E o cara era um doce de pessoa: chegou a apanhar de um amigo em comum deles, e apanhou quieto, porque sabia que era muito mais forte que o outro. O Johnson era um dos maiores intérpretes das composições do Lupicínio, cantava na noite. Era um grande amigo, tanto que as pessoas contam que, no enterro do Lupi, o Johnson não conseguia aceitar que ele estava morto, perdeu totalmente a noção da realidade, a referência.
Era o culpado por falir todos os investimentos em que punha a mão
– Ele foi proprietário de alguns bares e restaurantes. Era sócio do Rubens Santos. Alguns não deram certo, outros duraram mais algum tempo. Mas nenhum existe mais. O Rubens Cardoso reclamava muito, porque o Lupicínio ia de bar em bar e aproveitava para dar uma canja, cantava um pouquinho, e os fãs iam de bar em bar com ele. E acabavam não indo no bar dele! Por essas, que ele faliu algumas vezes...
Foi quase aposentado pela bossa nova e pela jovem guarda
– Na década de 1960, ele foi quase ao ostracismo, sofreu muito com a invasão da jovem guarda, do rock, da tropicália, da bossa nova. O gênero em que ele compunha ficou em segundo plano, principalmente em Porto Alegre. Ele foi voltar só depois, nos anos 1970.
Foi salvo por Caetano Veloso
– Uma vez, ele encontrou Caetano num bar aqui em Porto Alegre. Caetano saiu de um show todo maquiado e a gauchada ficou com o pé um pouco atrás. Baiano, de batom, não foi bem recebido. Mas Lupi o acolheu, eles ficaram uma madrugada inteira conversando. Caetano gravou Felicidade. Foi um marco, porque depois ele começou a ser gravado por Bethânia, Gal, Jamelão, Elza Soares, Elis Regina. Ele acabou voltando. Quando morreu, em 1974, estava no auge de novo.
Aos 14 anos, já circulava pelas rodas de samba (e compunha)
– Lupicínio era um papa-prêmio. Onde ele colocava música, ganhava troféu. Com 14 anos, já estava fazendo samba. O pai viu que o guri não era flor, gostava de samba, de mulher, de noite, já tinha roda de amigos... Tanto que ele gravou o primeiro samba com 14 anos. Gravou e já ganhou prêmio. A música se chamava Carnaval. O pai dele, seu Francisco, preocupado com o futuro do guri, alistou o Lupi no exército. Achou que ia mudar a personalidade dele, só que não deu muito certo. Em Santa Maria, onde ele foi ser praça, acabou formando um grupo de amigos, formou um grupo para passar a noite inteira tocando samba no quartel. O que fazia com que ele passasse o dia inteiro dormindo pelos cantos do quartel, muito mais do que trabalhar.
A dor de cotovelo tinha muito de marketing
Nervos de Aço, Cadeira Vazia e Se Acaso Você Chegasse. A cada experiência amorosa, ele fazia música para sublimar a dor. Mas acho que essa história de dor de cotovelo foi uma escolha bastante profissional, nem tanto de catarse artística. Porque ele viu que fazia sucesso, as pessoas gostavam e compravam, e ele se firmou no gênero. Música de dor de cotovelo era muito bem aceita, as pessoas curtiam – conta Arthur.
Deu o troco em um dono de restaurante racista da melhor maneira possível
– Ele costumava ir ao restaurante de um português em Porto Alegre. Certo dia, o garçom se recusou a atendê-lo, informou que o dono não queria mais receber negros. Lupicínio protestou, chamou a polícia e citou a lei Afonso Arinos (assinada por Getúlio Vargas em 1951, que proíbe a discriminação racial no Brasil), que tinha sido aprovada havia pouco. Isso foi interessante, porque era quase inédito um negro protestar dessa maneira, como também era muito difícil que um delegado acatasse a queixa. O dono do restaurante foi citado judicialmente, respondeu processo. E a vingança do Lupi foi ir em um outro restaurante do mesmo dono, para ser servido por ele.
Este ano comemoramos o seu centenário nascimento.
Fonte: Wikipédia e http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/ |
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Este Não-Futuro que a Gente Vive |
em 29/05/2014 20:01:14 (3618 leituras) |
Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (...) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (...) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.
Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)" |
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Uma Nação só Vive porque Pensa |
em 24/05/2014 23:21:40 (4240 leituras) |
Uma nação só vive porque pensa. Cogitat ergo est. A força e a riqueza não bastam para provar que uma nação vive duma vida que mereça ser glorificada na História - como rijos músculos num corpo e ouro farto numa bolsa não bastam para que um homem honre em si a Humanidade. Um reino de África, com guerreiros incontáveis nas suas aringas e incontáveis diamantes nas suas colinas, será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da Civilização, os civilizados pisam e retalham tão desassombradamente como se sangra e se corta a rês bruta para nutrir o animal pensante. E por outro lado se o Egipto ou Tunis formassem resplandescentes centros de ciências, de literaturas e de artes, e, através de uma serena legião de homens geniais, incessantemente educassem o mundo - nenhuma nação mesmo nesta idade do ferro e de força, ousaria ocupar como um campo maninho e sem dono esses solos augustos donde se elevasse, para tornar as almas melhores, o enxame sublime das ideias e das formas.
Só na verdade o pensamento e a sua criação suprema, a ciência, a literatura, as artes, dão grandeza aos Povos, atraem para eles universal reverência e carinho, e, formando dentro deles o tesouro de verdades e de belezas que o Mundo precisa, os tornam perante o Mundo sacrossantos. Que diferença há, realmente, entre Paris e Chicago? São duas palpitantes e produtivas cidades - onde os palácios, as instituições, os parques, as riquezas, se equivalem soberbamente. Porque forma pois Paris um foco crepitante de Civilização que irresistivelmente fascina a Humanidade - e porque tem Chicago apenas sobre a terra o valor de um rude e formidável celeiro onde se procura a farinha e o grão? Porque Paris, além dos palácios, das instituições e das riquezas de que Chicago também justamente se gloria, possui a mais um grupo especial de homens -Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bonnat, Falguières, Gounot, Massenet - que pela incessante produção do seu cérebro convertem a banal cidade que habitam num centro de soberano ensino. Se as Origens do Cristianismo, o Fausto, as telas de Bonnat, os mármores de Falguières, nos viessem de além dos mares, da nova e monumental Chicago - para Chicago, e não para Paris, se voltariam, como as plantas para o Sol, os espíritos e os corações da Terra. Se uma nação, portanto, só tem a superioridade porque tem pensamento, todo aquele que venha revelar na nossa pátria um novo homem de original pensar concorre patrioticamente para lhe aumentar a única grandeza que a tornará respeitada, a única beleza que a tornará amada; - e é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrário ou sobre as suas muralhas erguesse mais um castelo.
Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes' |
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O meu carácter |
em 15/05/2014 11:41:57 (3116 leituras) |
O Meu Carácter Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo. Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente. Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) - por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.
Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil interassociações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.
O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção - enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus - mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.
Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose' |
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O Caminho da Felicidade |
em 02/05/2014 13:31:23 (3589 leituras) |
Um sábio perguntava a um louco qual era o caminho da felicidade. O louco respondeu-lhe imediatamente, como alguém a quem se pergunta o caminho da cidade vizinha: «Admira-te a ti mesmo e vive na rua». «Alto lá», exclamou o sábio, «pedes demais, basta já que nos admiremos!» E o louco respondeu logo: «Mas como admirar sem cessar se não nos desprezarmos constantemente?»
Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência" |
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Poema para grande orquestra parada – um silêncio bem alto |
em 26/04/2014 16:36:41 (2628 leituras) |
Você já amou uma mulher brilhante. Você já amou uma mulher formosa. Você já amou uma mulher Silenciosa? Que fala pouco. E bem, E baixo, Que não eleva a voz por raiva Nem má educação, Que anda com seus pés de seda Num mundo de algodão. Que não bate, fecha a porta, Como quem fecha o casaco De um filho (Ou abre um coração)? Que quando fala, se aproxima Ao alcance da mão Pra que a voz não se transforme em grito? E que absorve o mundo Sem re-percussão Num olhar de preguiça Num colchão de cortiça Como um mata-borrão?
Mas um dia ela sai Levando o seu silêncio De pingüim andando solitário em sua Antártica (ou Antártida), No eterno Gelo sobre gelo No infinito Branco sobre branco E dos cantos e recantos Onde habitou calada - entre oniausente - Brotam aos poucos, Os ruídos Pisados, Colocados embaixo do tapete Guardados na despensa Na gaveta mais funda De uma vida em comum. Os trincos falam, A cafeteira chia, A espreguiçadora range, O telefone toca, As louças tinem, O relógio bate, O cão ladra, O rádio mia, Toda a casa ressoa, reverbera e brada E a orquestra em pleno do teu dia-a-dia Ataca a algaravia Fabril Escondida no lençol de silêncio Com que ela partiu.
De Millôr Fernandes (1923-2012), em seu livro Poemas (1999)
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Uma Alma Amante e Terna |
em 13/04/2014 15:21:53 (2475 leituras) |
Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha — solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no mau carácter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.
Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação' |
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Sabedoria do Mundo |
em 12/04/2014 17:07:02 (2135 leituras) |
Não fiques em terreno plano. Não subas muito alto. O mais belo olhar sobre o mundo Está a meia encosta.
Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência" |
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SONETO 96 |
em 11/04/2014 14:44:37 (3298 leituras) |
Soneto 96
De almas sinceras a união sincera Nada há que impeça. Amor não é amor Se quando encontra obstáculos se altera Ou se vacila ao mínimo temor. Amor é um marco eterno, dominante, Que encara a tempestade com bravura; È astro que norteia a vela errante Cujo valor se ignora, lá na altura. Amor não teme o tempo, muito embora Seu alfanje não poupe nenhuma idade; Amor não se transforma de hora em hora, Antes se afirma, para a eternidade. Se isto é falso, e que é falso alguém provou, Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.
Fonte: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... toryid=1759#ixzz2vcHzPkVn |
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Elegia sobre os meus dias contados |
em 11/04/2014 14:40:29 (1878 leituras) |
Elegia sobre os meus dias contados
"De tão lúcido, sinto-me irreal." - Dante Milano -
meu barco navega sobre os meus dias contados com a calma de quem perdeu o medo do mar não careço bússola - deixo-me conduzir pelas estrelas e rio por saber-me um homem do passado
como prenda levo a lembrança dos meus mortos as muitas bocas que a timidez me impediu beijar as lágrimas que guardei e esqueci de derramá-las as inoportuníssimas gargalhadas de deboche alguns pedidos de desculpa levo comigo também
minha insaciável vontade de beber deixo por aqui quem se interessar por ela faça bom proveito (pode ser útil nos momentos de vazio absoluto) meu livro de sonhos e meu canivete suíço meu relógio que parou num meio-dia qualquer pensei em deixar mas por capricho mudei de ideia pequenos caprichos valem mais que uma fortuna
meu barco navega sobre os meus dias contados com a calma de quem perdeu o medo do mar
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Elegia sui miei giorni contati
La mia nave naviga sui miei giorni contati con la calma di chi ha perso la paura del mare non mi serve la bussola - mi lascio guidare dalle stelle e me ne infischio di passare per un uomo del passato
come ricordo mi porto la memoria dei miei morti le molte bocche che la timidezza m’impedì di baciare le lacrime che conservai e dimenticai di versare le inopportunissime risate di depravazione anche qualche richiesta di scuse porto con me
la mia insaziabile voglia di bere la lascio qui chi fosse interessato ne faccia buon uso (può essere utile nei momenti di vuoto assoluto) il mio libro dei sogni e il mio coltellino svizzero il mio orologio che si fermò un mezzogiorno qualunque pensai di lasciarli ma per capriccio ho cambiato idea piccoli capricci valgono più di una fortuna
La mia nave naviga sui miei giorni contati con la calma di chi ha perso la paura del mare
(Tradução italiana de Manuela Colombo)
http://www.currupiao.blogspot.it/sear ... 0:00-02:00&max-results=50
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Ainda que Mal |
em 05/04/2014 00:00:53 (2499 leituras) |
Ainda que mal pergunte, ainda que mal respondas; ainda que mal te entenda, ainda que mal repitas; ainda que mal insista, ainda que mal desculpes; ainda que mal me exprima, ainda que mal me julgues; ainda que mal me mostre, ainda que mal me vejas; ainda que mal te encare, ainda que mal te furtes; ainda que mal te siga, ainda que mal te voltes; ainda que mal te ame, ainda que mal o saibas; ainda que mal te agarre, ainda que mal te mates; ainda assim te pergunto e me queimando em teu seio, me salvo e me dano: amor.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' |
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O Engano da Bondade |
em 27/02/2014 21:16:15 (4968 leituras) |
Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra. Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos. Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre - ou quase sempre - mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez. Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida. E, assim, só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reinvindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.
Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer" |
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O Sonho é a Pior das Cocaínas |
em 13/02/2014 10:16:03 (3296 leituras) |
O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate – mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.
Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego' |
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Romance da Lua Lua |
em 30/01/2014 15:58:23 (5601 leituras) |
ROMANCE DA LUA LUA (frevo)
Sobre a frágua veio a lua com seus babados de renda. O menino mira, mira. O menino a está mirando.
No ar súbito, comovido, a lua move seus braços e mostra, lúbrica e pura, os seios de duro estanho.
Foge, lua, lua, lua. Se viessem os ciganos, com teu coração fariam anéis e colares brancos.
Oh, foge lua, lua, lua. Quando vierem os ciganos, te acharão sobre a bigorna, com teus olhinhos fechados.
Foge, lua, lua, lua. Que já sinto seus cavalos. Deixa-me, filho, não pises o meu alvor engomado.
Vinha perto o cavaleiro, o tambor do chão tocando. E, dentro da frágua, o menino tem seus olhinhos fechados.
Pelo oliveiral, bronze e sonho, eles vinham, os ciganos. As cabeças para cima e os olhos sempre-cerrados.
Foge lua, lua, lua,
E dentro da frágua choram, dando gritos os ciganos. O ar da noite vela, vela. O ar da noite está velando.
Ai!! Como canta a coruja, como canta no galho! Através do céu, a lua vai o menino levando
Foge lua, lua, lua.
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Biografia |
em 07/08/2023 19:37:10 (298 leituras) |
João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro, 24 de novembro de 1861 — Curral Novo, 19 de março de 1898) foi um poeta brasileiro. Com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, foi um dos principais representantes do simbolismo no Brasil.
Segundo Antonio Candido, Cruz e Sousa foi o "único escritor eminente de pura raça negra na literatura brasileira, onde são numerosos os mestiços".
Nasceu dia 24 de novembro de 1861, filho dos escravos alforriados Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição. João da Cruz desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada do ex-senhor de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa - de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa de Guilherme Xavier de Sousa, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos, e passou a proteger e cuidar da educação de João. Aprendeu francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais.
Em 1881, dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o preconceito racial. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em 1885, lançou o primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea. Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, colaborando também com diversos jornais. Em fevereiro de 1893, publicou Missal (prosa poética baudelairiana) e em agosto, Broquéis (poesia), dando início ao simbolismo no Brasil que se estende até 1922. Em novembro desse mesmo ano casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem teve quatro filhos, todos mortos prematuramente por tuberculose, levando-a à loucura.
Morreu a 19 de março de 1898 em Minas Gerais, na localidade de Curral Novo, então pertencente ao município de Barbacena. Em 1948, a localidade se emancipou e passou a se chamar Antônio Carlos. Cruz e Sousa estava em Curral Novo pois fora transportado às pressas vencido pela tuberculose. Teve o seu corpo transportado para o Rio de Janeiro em um vagão destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio, onde permaneceu até 2007, quando seus restos mortais foram então acolhidos no Palácio Cruz e Sousa, antigo palácio de governo do estado de Santa Catarina e atual Museu Histórico de Santa Catarina, no centro de Florianópolis.
Cruz e Sousa é um dos patronos da Academia Catarinense de Letras, representando a cadeira número 15.
Seus poemas são marcados pela musicalidade (uso constante de aliterações), pelo individualismo, pelo sensualismo, às vezes pelo desespero, às vezes pelo apaziguamento, além de uma obsessão pela cor branca. É certo que encontram-se muitas referências à cor branca, assim como à transparência, à translucidez, à nebulosidade e aos brilhos, e a muitas outras cores, todas sempre presentes em seus versos.
No aspecto de influências do simbolismo,nota-se uma amálgama que conflui águas do satanismo de Charles Baudelaire ao espiritualismo (e dentro desse, ideias budistas e espíritas) ligados tanto à tendências estéticas vigentes como às fases na vida do autor.
Embora quase metade da população brasileira seja não branca, poucos foram os escritores negros, mulatos ou indígenas. Cruz e Sousa, por exemplo, é acusado de ter-se omitido quanto a questões referentes à condição negra. Mesmo tendo sido filho de escravos e recebido a alcunha de "Cisne Negro", o poeta João da Cruz e Sousa não conseguiu escapar das acusações de indiferença pela causa abolicionista. A acusação, porém, não procede, pois, apesar de a poesia social não fazer parte do projeto poético do simbolismo nem de seu projeto particular, o autor, em alguns poemas, retratou metaforicamente a condição do escravo. Cruz e Sousa militou, sim, contra a escravidão.Tanto da forma mais corriqueira, fundando jornais e proferindo palestras por exemplo, participando, curiosamente, da campanha antiescravagista promovida pela sociedade carnavalesca Diabo a quatro, quanto nos seus textos abolicionistas, demonstrando desgosto com a condução do movimento pela família imperial.[4]
Quando Cruz e Sousa diz "brancura", é preciso recorrer aos mais altos significados desta palavra, muito além da cor em si.
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O Mapa |
em 08/07/2023 20:00:00 (168 leituras) |
Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar, Suave mistério amoroso, Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso... |
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Poema Sujo (Trecho) |
em 17/03/2023 12:14:53 (301 leituras) |
Poema sujo (trecho)
turvo turvo a turva mão do sopro contra o muro escuro menos menos menos que escuro menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo escuro mais que escuro: claro como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma e tudo (ou quase) um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas azul era o gato azul era o galo azul o cavalo azul teu cu tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para eu não sabia tu não sabias fazer girar a vida com seu montão de estrelas e oceano entrando-nos em ti bela bela mais que bela mas como era o nome dela? Não era Helena nem Vera nem Nara nem Gabriela nem Tereza nem Maria Seu nome seu nome era… Perdeu-se na carne fria perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia |
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Ausência |
em 16/03/2023 23:59:57 (301 leituras) |
Pode o Fado cruel com mão ferrenha, Eulina amada, meu encanto e vida, Abafar este peito e sufocar-me! Que pretende o Destino? em vão presume Rasgar do meu o coração de Eulina, Pois fazem sós um coração inteiro! alma impressa, Tu desafias, tu te ris do Fado. Embora contra nós ausência fera, Solitárias campinas estendidas, Serras alpinas, áridos desertos, Largos campos da cérula Amphitrite Dois corpos enlaçados separando, Conspirem-se até mesmo os Céus Tiranos. Sim, os Céus! Ah! parece que nem sempre Neles mora a bondade! Escuro Fado Os homens bandeando, como o vento Os grãos de areia sobre a praia infinda Dos míseros mortais brinca e os males Se tudo pode, isto não pode o Fado! Sim, adorada, angelical Eulina. Eterna viverás a esta alma unida, Eterna! pois as almas nunca morrem. Quando os corpos não possam atraídos Ligarem-se em recíprocos abraços, (Que prazer, minha amada! O Deus Supremo, Quando fez com a voz grávido o Nada, Maior não teve) podem nossas almas, A despeito de mil milhões de males, Da mesma morte. E contra nós que vale? Do sangrento punhal, que o Fado vibre, Quebrar a ponta; podem ver os Mundos Errar sem ordem pelo espaço imenso; Toda a Matéria reduzir-se em nada, E podem ainda nossas almas juntas, Em amores nadar de eterno gozo!
Em Paris, no ano de 1790 Publicado no livro Poesias Avulsas de Américo Elísio (1825).
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Fim |
em 14/03/2023 15:13:56 (263 leituras) |
Fim
Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza... A um morto nada se recusa, Eu quero por força ir de burro.
Mário de Sá Carneiro
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Cogito |
em 09/06/2017 03:14:43 (5200 leituras) |
eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim
(Os últimos dias de paupéria, 1982) |
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A casada infiel |
em 01/06/2015 17:20:27 (2658 leituras) |
E eu que fui levá-la ao rio Certo de que era donzela, Mas bem que tinha marido. Foi a noite de São Tiago E quase por compromisso. As lâmpadas se apagaram E se acenderam os grilos. Já nas últimas esquinas Toquei seus peitos dormidos, Que de pronto se me abriram Como ramos de jacinto. A goma de sua anágua Vinha ranger-me no ouvido Como seda que dez facas Rasgassem em pedacinhos. Sem luz de prata nas copas As árvores têm crescido E um horizonte de cães Ladra bem longe do rio
Após franqueadas as brenhas, Franqueados juncos e espinhos, Por baixo de seus cabelos Fiz um ninho sobre o limo. Eu tirei minha gravata. Ela tirou seu vestido. Eu, cinturão e revolver. Ela, seus quatro corpinhos.
Nem nardos nem caracóis Têm cútis com tanto viço, Nem os cristais sob a lua Alumbram com igual brilho. Sua coxas me escapavam Como peixes surpreendidos, Metade cheias de lume, Metade cheias de frio. Galopei naquela noite Pelo melhor dos caminhos, Montado em potra nácar Sem rédeas e sem estribos. As coisas que ela me disse, Por ser homem não repito Faz a luz do entendimento Que eu seja assim comedido. Suja de beijos e areia, Eu levei-a então do rio. Contra o vento se batiam As baionetas dos lírios
Portei-me como quem sou. Como gitano legítimo. Dei-lhe cesta de costura, Grande, de cetim palhiço, E não quis enamorar-me, Pois ela, tendo marido, Me disse que era donzela Quando eu a levava ao rio.
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As Iluminações |
em 17/04/2015 23:41:28 (1951 leituras) |
As Iluminações Desabo em ti como um bando de pássaros.
E tudo é amor, é magia, é cabala. Teu corpo é belo como a luz da terra na divisão perfeita do equinócio.
Soma do céu gasto entre dois hangares, és a altura de tudo e serpenteias no fabuloso chão esponsálício.
Muda-se a noite em dia porque existes, feminina e total entre os meus braços, como dois mundos gêmeos num só astro. |
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Os morcegos |
em 17/04/2015 23:37:27 (1585 leituras) |
Os morcegos se escondem entre as cornijas da alfândega. Mas onde se escondem os homens, que contudo voam a vida inteira no escuro, chocando-se contra as paredes brancas do amor?
A casa de nosso pai era cheia de morcegos pendentes, como luminárias, dos velhos caibros que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas. “Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.
Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige o suor do semelhante mesmo na escuridão?
No halo de um seio jovem como a noite esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do [farol o homem guarda as moedas douradas de seu amor. Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda o dia [ofendido.
ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos) a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas. Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos. E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.
(Lêdo Ivo em Textos Escolhidos - Academia Brasileira de Letras)
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A Queimada |
em 16/04/2015 02:13:07 (1614 leituras) |
Queime tudo o que puder: as cartas de amor as contas telefônicas o rol de roupas sujas as escrituras e certidões as inconfidências dos confrades ressentidos a confissão interrompida o poema erótico que ratifica a impotência e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas. Não deixe aos herdeiros esfaimados nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos: more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados. Viva e morra fechado como um caracol. Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos, as variantes e os fragmentos que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas. Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha. Não confie a ninguém o seu segredo. A verdade não pode ser dita.
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AS POMBAS E A CATEDRAL |
em 11/04/2015 01:15:58 (2427 leituras) |
as pombas da praça da sé falam um silêncio alto mas só as pedras da catedral conseguem ouvir
as pedras da catedral da sé relembram para as pombas histórias de um tempo nublado que trazem vivas na memória
ao anoitecer as pombas da praça da sé ficam tristes como as mulheres que perderam o paradeiro de seus maridos e filhos
as pedras da catedral da sé consolam as pombas recitando trechos de missas antigas as pombas respondem amém choram um pouco e vão dormir enquanto a catedral permanece acordada em sua eterna vigília
* http://currupiao.blogspot.com.br/
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Vida e Obra |
em 12/01/2015 19:43:47 (1757 leituras) |
Quinto ocupante da Cadeira nº 10, eleito em 13 de novembro 1986, na sucessão de Orígenes Lessa e recebido em 7 de abril de 1987 pelo acadêmico Dom Marcos Barbosa. Recebeu os acadêmicos Geraldo França de Lima, Nélida Piñon e Sábato Magaldi. Faleceu em 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, Espanha, aos 88 anos. Lêdo Ivo nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo. Casado com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo (1923-2004), tem o casal três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo. Fez os cursos primário e secundário em sua cidade natal. Em 1940, transferiu-se para o Recife, onde ocorreu sua primeira formação cultural. Em 1941, participou do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1943 transferiu-se para o Rio de Janeiro e se matriculou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, pela qual se formou. Passou a colaborar em suplementos literários e a trabalhar na imprensa carioca, como jornalista profissional. Em 1944, estreou na literatura com As Imaginações, poesia, e no ano seguinte publicou Ode e Elegia, distinguido com o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras. Nos anos subseqüentes, sua obra literária avoluma-se com a publicação de livros de poesia, romance, conto, crônica e ensaio. Em 1947, seu romance de estréia As Alianças mereceu o Prêmio de Romance da Fundação Graça Aranha. Em 1949, pronunciou, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, a conferência “A geração de 1945”. Nesse ano, formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, mas nunca advogou, preferindo continuar exercendo o jornalismo. No início de 1953, foi morar em Paris. Visitou vários países da Europa e, em fins de 1954, retornou ao Brasil, reiniciando suas atividades literárias e jornalísticas. Em 1963, a convite do governo norte-americano, realizou uma viagem de dois meses (novembro e dezembro) pelos Estados Unidos, pronunciando palestras em universidades e conhecendo escritores e artistas. Ao seu livro de crônicas A Cidade e os Dias (1957) foi atribuído o Prêmio Carlos de Laet, da Academia Brasileira de Letras. Como memorialista, publicou Confissões de um Poeta (1979), distinguido com o Prêmio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal, e O Aluno Relapso (1991). Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o título Snakes’ Nest, e em dinamarquês, sob o título Slangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemas seus, entre as quais La Imaginaria Ventana Abierta, Oda al Crepúsculo, Las Pistas, Las Islas Inacabadas, La Tierra Allende, Mía Patria Húmeda e Réquiem. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; na Espanha sairam La Moneda Perdida e La Aldea de Sal; nos Estados Unidos, Landsend, antologia poética; na Holanda, a seleção de poemas Vleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns). No Chile, saiu a antologia Los Murciélagos. Na Venezuela, foi publicada a antologia El Sol de los Amantes. Na Itália foram publicados Illuminazioni e Réquiem. Em 1973, foram conferidos a Finisterra o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (poesia) do PEN Clube do Brasil, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal e o Prêmio Casimiro de Abreu do Governo do Estado do Rio de Janeiro. O seu romance Ninho de Cobras conquistou o Prêmio Nacional Walmap de 1973. Em 1974, Finisterra recebeu o Prêmio Casimiro de Abreu, do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1982, foi distinguido com o Prêmio Mário de Andrade, conferido pela Academia Brasiliense de Letras ao conjunto de suas obras. Ao seu livro de ensaios A Ética da Aventura foi atribuído, em 1983, o Prêmio Nacional de Ensaio do Instituto Nacional do Livro. Em 1986, recebeu o Prêmio Homenagem à Cultura, da Nestlé, pela sua obra poética. Eleito “Intelectual do Ano de 1990”, recebeu o Troféu Juca Pato do seu antecessor nessa láurea, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Ao seu livro de poemas Curral de Peixe o Clube de Poesia de São Paulo atribuiu o Prêmio Cassiano Ricardo – 1996. Em 2004 foi-lhe outorgado o Prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro, pelo conjunto da obra. Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o título Snakes’ Nest, e em dinamarquês, sob o título Slangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemas seus, entre as quais La Imaginaria Ventana Abierta, Oda al Crepúsculo, Las Pistas, Las Islas Inacabadas e La Tierra Allende, Mia pátria húmeda, Réquiem, Donde La geografia es uma esperanza, Poesia en general, El mar,los Sueños y los Pájaros. Na Venezuela saiu El sol de los amantes. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; nos Estados Unidos, Landsend, antologia poética; na Holanda, a antologia bilingue Vleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns). Na Itália foram publicadas a antologia Illuminazioni e uma tradução do Réquiem e no Chile a antologia poética Los Murciélagos. Na Espanha, foram publicadas as antologias La Moneda perdida e La Aldeia de sal e os livros de poemas Rumor Nocturno e Plenilúnio. No plano internacional, Lêdo Ivo é detentor do Prêmio de Poesia del Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008), do Prêmio de Literatura Brasileira da Casa de las Américas (Cuba, 2009) e do Prêmio Rosalía de Castro, do PEN Clube da Galícia (Espanha, 2010). Ao longo de sua vida literária, Lêdo Ivo tem sido convidado numerosas vezes para representar o Brasil em congressos culturais e participar de encontros internacionais de poesia. É sócio efetivo da Academia Alagoana de Letras, sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, sócio efetivo da Academia de Letras do Brasil, sócio honorário da Academia Petropolitana de Letras; sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Condecorações: Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Grã-Cruz; Ordem do Mérito Militar, no grau de Oficial; Ordem do Rio Branco, no grau de Comendador; Medalha Manuel Bandeira; Cidadão honorário de Penedo, Alagoas. É Grande Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Alagoas. Pertence ao PEN Clube Internacional, sediado em Paris.
Contribuição de MarySSantos.
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O Amor |
em 06/10/2014 19:06:30 (3720 leituras) |
Estou a amar-te como o frio corta os lábios.
A arrancar a raiz ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas, de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas a boca mais vulnerável
A marcar sobre os teus flancos o itinerário da espuma
Assim é o amor: mortal e navegável.
Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio" |
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Daqui Pra Lá de Lá Pra Cá |
em 06/10/2014 15:15:12 (2955 leituras) |
Era um pacato cidadão sem documento não tinha nome profissão não teve tempo
mas certo dia deu-se um caso e ele embarcou num disco e foi levado pra bem longe do asterisco em que vivemos ele partiu e não voltou e não voltou porque não quis quero dizer ficou por lá já que por lá se é mais feliz
e um espaçograma ele enviou pra quem quisesse compreender mas ninguém nunca decifrou o que ele nos mandou dizer terramarear atenção o futuro é hoje e cabe na mão
vietvistavisão para azar de quem não sabe e não crê que se pode sempre a sorte escolher e enterrar qualquer estrela no chão
vietvistavisão terramarear atenção fica a morte por medida fica a vida por prisão
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As aparências enganam |
em 19/09/2014 16:19:40 (3041 leituras) |
Vejam como as aparências enganam Como difere a vida dos casais Não são aqueles que mesmo se amam Que sempre moram em lugares iguais
Uns se casam porque se querem Outros somente por comprazer Sem nem pensar que por mais que fizerem Nunca haverão de deixar de sofrer
Com seu criado que está presente Também se passa uma história assim Ela casou-se com outro vivente E eu tenho outra mulher para mim
Só uma coisa eu sempre reclamo E até hoje não me conformei Que quem casou com a pessoa que eu amo Beije na boca que eu tanto beijei
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A Nossa Vitória de cada Dia |
em 02/09/2014 15:32:17 (4155 leituras) |
Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres' |
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Respeite a Você Mais do que aos Outros |
em 16/06/2014 15:35:27 (4032 leituras) |
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. (...) Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. (...) Pretendia apenas lhe contar o meu novo carácter, ou falta de carácter. (...) Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. (...) Uma amiga, um dia desses, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou essa calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos. (...) o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Clarice Lispector, in 'Carta a Tânia [irmã de Clarice] (1947)'
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Soneto - Carregado de mim ando no mundo |
em 26/05/2014 18:34:00 (4204 leituras) |
Carregado de mim ando no mundo, E o grande peso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bestas andam juntas mais ousadas, Do que anda só o engenho mais profundo.
Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo, mar de enganos, Ser louco c'os demais, que só, sisudo. |
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O Amor ao Próximo |
em 20/05/2014 18:27:38 (3252 leituras) |
Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e a vossa solicitude exprime-se em belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é apenas o vosso mau amor por vós próprios. É para fugirdes de vós que andais em volta do próximo, e quereríeis converter isso numa virtude; mas pus a claro o vosso «desinteresse». (...) Não suportais a vossa própria companhia, e não vos amais o suficiente; procurais então seduzir o próximo com o vosso amor e doirar-vos com o seu erro. Eu quisera que todos os próximos e aqueles que se seguem se vos tornassem intoleráveis: assim teríeis de extrair de vós mesmos o amigo de coração transbordante. Convocais uma testemunha quando quereis dizer bem de vós; e logo que a haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa. É mentiroso não só o que fala contra a sua consciência, mas também o que fala contra a sua inconsciência. Ora é assim que falais de vós no trânsito diário, e que enganais o próximo e a vós mesmos. Assim fala o louco: 'O convívio dos homens estraga o carácter, sobretudo quando não tem carácter'. Um procura o próximo porque se procura, o outro porque anseia perder-se. O vosso mau amor por vós próprios converte a vossa solidão num cativeiro.
Friedrich Nietzsche, in 'Assim Falava Zaratustra' |
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Pátria |
em 02/05/2014 13:33:49 (1956 leituras) |
Por um país de pedra e vento duro por um país de luz perfeita e clara Pelo negro da terra e pelo branco do muro Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a miséria longamente desenhou Rente aos ossos com toda a exactidão Dum longo relatório irrecusável E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas palavras sempre ditas com paixão Pela cor e pelo peso das palavras Pelo concreto silêncio limpo das palavras Donde se erguem as coisas nomeadas Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa Pranto dia canto alento Espaço raiz e água Ó minha pátria e meu centro
Eu minha vida daria E vivo neste tormento
(“Pátria” in “Livro Sexto”, 1962)
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Ah, que Olhos Pôs Amor na Minha Cara |
em 28/04/2014 17:16:10 (2641 leituras) |
Ah, que olhos pôs Amor na minha cara mas sem correspondência a fiel vista? Ou se a têm, meu juízo onde é que pára que em tão falsas censuras inda insista? Se é belo o que meus olhos falso adoram que quer dizer o mundo em negação? E se não é, amor mostra se goram seus olhos, menos fiéis que os homens: não, como pode? Como pode, se pranto e espera o afectam, ser fiel no olhar? De erros da minha vista não me espanto, o sol não vê até o céu limpar. Manhoso amor, com choros pões-me cego, mas vendo bem, a tuas faltas chego.
William Shakespeare, in "Sonetos (148)" |
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Os Fortes Aspiram a Separar-se e os Fracos a Unir-se |
em 16/04/2014 18:19:10 (2381 leituras) |
O crescimento da comunidade frutifica no indivíduo um interesse novo que o aparta da sua pena pessoal, da sua aversão à sua própria pessoa. Todos os doentes aspiram instintivamente a organizar-se em rebanhos, o sacerdote ascético adivinha este instinto e alenta-os onde quer que haja rebanhos, o instinto de fraqueza forma-os, a habilidade do sacerdote organiza-os. Não nos enganemos: os fortes aspiram a separar-se e os fracos a unir-se; se os primeiros se reúnem, é para uma acção agressiva comum, que repugna muito à consciência de cada qual; pelo contrário, os últimos unem-se pelo prazer que acham em unir-se; porque isto satisfaz o seu instinto, assim como irrita o instinto dos fortes. Toda a oligarquia envolve o desejo da tirania; treme continuamente por causa do esforço que cada um dos indivíduos tem que fazer para dominar este desejo.
Friedrich Nietzsche, in 'Genealogia da Moral' |
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Declaração de Amor |
em 12/04/2014 17:09:57 (3054 leituras) |
(e o poeta cai na armadilha)
Ó maravilha! Voará ainda? Sobe e as suas asas não se mexem? Quem é então que o leva e faz subir? Que fim tem ele, caminho ou rédea, agora?
Como a estrela e a eternidade Vive nas alturas de que se afasta a vida, Compassivo, mesmo para com a inveja... E quem o vê subir sobe também alto.
Ó albatroz! Ó minha ave! Um desejo eterno me empurra para os cimos Pensei em ti e chorei. Chorei mais e mais... Sim, eu amo-te!
Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência" |
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A Fragilidade dos Valores |
em 11/04/2014 15:05:53 (2233 leituras) |
Todas as coisas «boas» foram noutro tempo más; todo o pecado original veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como um atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a imprudência de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Cambodja o sacerdote, guarda dos velhos costumes, conserva o jus primae noctis). Os sentimentos doces, benévolos, conciliadores, compassivos, mais tarde vieram a ser os «valores por excelência»; por muito tempo se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual da brandura, como agora da dureza. A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O «direito» foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbio.
Cada passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que isto hoje nos pareça, já o demonstrei na Aurora, aforismo 18: «Nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece». Esta mesma vaidade nos impede de considerar os períodos imensos da «moralização dos costumes» que precederam a história capital e foram a verdadeira história, a história capital e decisiva que fixou o carácter da humanidade. Então a dor passava por virtude, a vingança por virtude, a renúncia da razão por virtude, e o bem-estar passivo por perigo, o desejo de saber por perigo, a paz por perigo, a misericórdia por opróbio, o trabalho por vergonha, a demência por coisa divina, a conversão por imoralidade e a corrupção por coisa excelente.
Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral' |
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A Diferença Que Há |
em 11/04/2014 14:42:54 (4053 leituras) |
A diferença que há entre os estudiosos e os poetas É que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto A ver se conseguem decifrá-lo, e estes Abrem o livro, lêem três páginas, farejam as restantes (nem sequer todas) e sabem logo do assunto o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que os estudiosos têm raiva dos poetas, capazes de ler tudo sem Ter lido nada ( e eles não leram nada tendo lido tudo). O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,
E desacreditam a gaya Scienza |
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Vida e Obra |
em 09/04/2014 17:47:54 (1949 leituras) |
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, 15 de Outubro de 1844 — Weimar, 25 de Agosto de 1900) foi um filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX.
Ele escreveu vários textos críticos sobre a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.
As ideias-chaves de Nietzsche incluíam a dicotomia apolíneo/dionisíaca, o perspectivismo, a vontade de poder, a "morte de Deus", o Übermensch (Além-Homem) e eterno retorno. Sua filosofia central é a ideia de "afirmação da vida", que envolve questionamento de qualquer doutrina que drene uma expansiva de energias, porém socialmente predominantes essas ideias poderiam ser. Seu questionamento radical do valor e da objetividade da verdade tem sido o foco de extenso comentário e sua influência continua a ser substancial, especialmente na tradição filosófica continental compreendendo existencialismo, pós-modernismo e pós-estruturalismo.
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu numa família luterana, em 15 de outubro de 1844. Filho de Karl Ludwig, seus dois avós eram pastores protestantes. O próprio Nietzsche pensou em seguir a carreira de pastor: entretanto, rejeitou a crença religiosa durante sua adolescência e o seu contato com a filosofia afastou-o da carreira teológica.
Iniciou seus estudos no semestre de Inverno de 1864-1865 na Universidade de Bonn em filologia clássica e teologia evangélica. Em Bonn, participou da Burschenschaft Frankonia, que acabou abandonando em razão de sua participação nesta organização atrapalhar seus estudos. Transferiu-se, depois, para a Universidade de Leipzig: isso se deveu, acima de tudo, à transferência do professor Friedrich Wilhelm Ritschl (figura paterna para Nietzsche) para essa Universidade. Durante os seus estudos na universidade de Leipzig, a leitura de Schopenhauer ("O Mundo como Vontade e Representação", 1820) veio a constituir as premissas da sua vocação filosófica. Aluno brilhante, dotado de sólida formação clássica, Nietzsche foi nomeado, aos 24 anos, professor de filologia na universidade de Basileia. Adotou, então, a nacionalidade suíça. Desenvolveu, durante dez anos, a sua acuidade filosófica no contacto com o pensamento grego antigo, com predileção para os Pré-socráticos, em especial para Heráclito e Empédocles. Durante os seus anos de ensino, tornou-se amigo de Jacob Burckhardt e Richard Wagner. Em 1870, comprometeu-se como voluntário na Guerra franco-prussiana. A experiência da violência e o sofrimento chocaram-no profundamente.
Em 1879, seu estado de saúde obrigou-o a deixar o posto de professor. Sua voz, inaudível, afastava os alunos. Começou, então, uma vida errante em busca de um clima favorável tanto para sua saúde como para seu pensamento (Veneza, Gênova, Turim, Nice, Sils-Maria: "Não somos como aqueles que chegam a formar pensamentos senão no meio dos livros - o nosso hábito é pensar ao ar livre, andando, saltando, escalando, dançando (... )."
Em 1882, encontrou Paul Rée e Lou Andreas-Salomé, a quem pediu em casamento. Ela recusou, após ter-lhe feito esperar sentimentos recíprocos. No mesmo ano, começou a escrever o 'Assim Falou Zaratustra', quando de uma estada em Nice. Nietzsche não cessou de escrever com um ritmo crescente. Este período terminou brutalmente em 3 de Janeiro de 1889 com uma "crise de loucura" que, durando até a sua morte, colocou-o sob a tutela da sua mãe e sua irmã. No início desta loucura, Nietzsche encarnou alternativamente as figuras de Dionísio e Cristo, expressas em bizarras cartas, afundando, depois, em um silêncio quase completo até a sua morte. Uma lenda dizia que contraiu sífilis. Estudos recentes se inclinam antes para um cancro no cérebro que, eventualmente, pode ter tido origem sifilítica. Após sua morte, sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche e Peter Gast, dileto amigo do filósofo, segundo um plano de Nietzsche, datado de 17 de março de 1887, efetuaram uma coletânea de fragmentos póstumos para compor a obra conhecida como "Vontade de Poder". Essa obra foi, amiúde, acusada de ser uma "deturpação nazista"; tal afirmação mostrou-se inverídica, frente às comparações com a edição crítica alemã, como denotaram os tradutores da nova tradução para o português, e especialmente o filósofo Gilvan Fogel, que afirmou que "é preciso que se enfatize: os textos são autênticos. Todos são da cunhagem, da lavra de Nietzsche. Não foram, como já se disse e se insinuou, distorcidos ou adulterados pelos organizadores".
Colapso mental e morte (1889–1900)
Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental. Nietzsche teria testemunhado o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto, e então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão.
Nos dias seguintes, Nietzsche enviou escritos breves conhecidos como Wahnbriefe ("Cartas da loucura")— para um número de amigos como Cosima Wagner e Jacob Burckhardt. Muitas delas assinadas "Dionísio".
Embora a maioria dos comentaristas considerem seu colapso como alheios à sua filosofia, Georges Bataille chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido ("'Homem encarnado' também deve enlouquecer") e a psicanálise postmortem de René Girard postula uma rivalidade de adoração com o Richard Wagner.
Durante toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, chegando à conclusão de que nascera póstumo, para os leitores do porvir. O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra 'Assim Falou Zaratustra' e, então, tratou de difundi-la, em 1888.
Muitos estudiosos da época tentaram localizar os momentos que Nietzsche escrevia sob crises nervosas ou sob efeito de drogas (Nietzsche estudou biologia e tentava descobrir sua própria maneira de minimizar os efeitos da sua doença).
Obra
A cultura ocidental e suas religiões, assim como a moral judaico-cristã, foram temas comuns em suas obras. Nietzsche se apresenta como alvo de muitas críticas na história da filosofia moderna, isto porque, primariamente, há certas dificuldades de entendimento na forma de apresentação das figuras e/ou categorias ao leitor ou estudioso, causando confusões devido principalmente aos paradoxos dos conceitos de realidade ou verdade.
Nietzsche, sem dúvida, considera o cristianismo e o budismo como "as duas religiões da decadência", embora ele afirme haver uma grande diferença nessas duas concepções. O budismo, para Nietzsche, "é cem vezes mais realista que o cristianismo". Religiões que aspiram ao nada, cujos valores dissolveram a mesquinhez histórica. Não obstante, também se autointitula ateu:
"Para mim o ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto" (Ecce Homo, pt.II, af.1)
A crítica que Nietzsche faz do idealismo metafísico focaliza as categorias do idealismo e os valores morais que o condicionam, propondo uma outra abordagem: a genealogia dos valores.
Friedrich Nietzsche pretendeu ser o grande "desmascarador" de todos os preconceitos e ilusões do gênero humano, aquele que ousa olhar, sem temor, aquilo que se esconde por trás de valores universalmente aceitos, por trás das grandes e pequenas verdades melhor assentadas, por trás dos ideais que serviram de base para a civilização e nortearam o rumo dos acontecimentos históricos. E, assim, a moral tradicional (e, principalmente, a esboçada por Kant), a religião e a política não são, para ele, nada mais que máscaras que escondem uma realidade inquietante e ameaçadora, cuja visão é difícil de suportar. A moral, seja ela kantiana ou hegeliana, e até a catharsis aristotélica, são caminhos mais fáceis de serem trilhados para se subtrair à plena visão autêntica da vida.
Nietzsche criticou essa moral que leva à revolta dos indivíduos inferiores, das classes subalternas e escravas contra a classe superior e aristocrática que, por um lado, pela adoção dessa mesma moral, sofre de má consciência e cria a ilusão de que mandar é por si mesmo é adotar essa moral.
A vida só se pode conservar e manter-se através de imbricações incessantes entre os seres vivos, através da luta entre vencidos que gostariam de sair vencedores e vencedores que podem a cada instante ser vencidos e, por vezes, já se consideram como tais. Neste sentido, a vida é vontade de poder ou de domínio ou de potência. Vontade essa que não conhece pausas e, por isso, está sempre criando novas máscaras para se esconder do apelo constante e sempre renovado da vida; pois, para Nietzsche, a vida é tudo e tudo se esvai diante da vida humana. Porém as máscaras, segundo ele, tornam a vida mais suportável, ao mesmo tempo em que a deformam, mortificando-a à base de cicuta e, finalmente, ameaçando destruí-la.
Não existe vida média, segundo Nietzsche, entre aceitação da vida e renúncia. Para salvá-la, é mister arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é: não para sofrê-la ou aceitá-la com resignação, mas para restituir-lhe o seu ritmo exaltante, o seu merismático júbilo.
O homem é um filho do "húmus" e é, portanto, corpo e vontade não somente de sobreviver, mas de vencer. Suas verdadeiras "virtudes" são: o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a inimizade, a veneração, os bons hábitos, a vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade de poder. Mas essas virtudes são privilégios de poucos, e é para esses poucos que a vida é feita. De fato, Nietzsche é contrário a qualquer tipo de igualitarismo e, principalmente, ao disfarçado legalismo kantiano, que atenta para o bom senso através de uma lei inflexível, ou seja, o imperativo categórico: "Proceda em todas as suas ações de modo que a norma de seu proceder possa tornar-se uma lei universal".
Essas críticas se deveram à hostilidade de Nietzsche em face do racionalismo, que logo refutou como pura irracionalidade. Para ele, Kant nada mais é do que um fanático da moral, uma tarântula catastrófica.
Para Nietzsche, o homem é individualidade irredutível, à qual os limites e imposições de uma razão que tolhe a vida permanecem estranhos a ela mesma, à semelhança de máscaras de que pode e deve libertar-se. Em Nietzsche, diferentemente de Kant, o mundo não tem ordem, estrutura, forma e inteligência. Nele, as coisas "dançam nos pés do acaso" e somente a arte pode transfigurar a desordem do mundo em beleza e fazer aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida.
Mesmo assim, apesar de todas as diferenças e oposições, deve-se reconhecer uma matriz comum entre Kant e Nietzsche, como que um substrato tácito mas atuante. Essa matriz comum é a alma do romantismo do século XIX com sua ânsia de infinito, com sua revolta contra os limites e condicionamentos do homem. À semelhança de Platão, Nietzsche queria que o governo da humanidade fosse confiado aos filósofos, mas não a filósofos como Platão ou Kant, que ele considerava simples "operários da filosofia".
Na obra nietzschiana, a proclamação de uma nova moral contrapõe-se radicalmente ao anúncio utópico de uma nova humanidade, livre pelo imperativo categórico, como esperançosamente acreditava Kant. Para Nietzsche, a liberdade não é mais que a aceitação consciente de um destino necessitante. O homem libertado de qualquer vínculo, senhor de si mesmo e dos outros, o homem desprezador de qualquer verdade estabelecida ou por estabelecer e estar apto para se exprimir a vida, em todos os seus atos - era este não apenas o ideal apontado por Nietzsche para o futuro, mas a realidade que ele mesmo tentava personificar.
Aqui, necessário se faz perceber que, ao que superficialmente se parece, Nietzsche cria e cai em seu próprio "Imperativo Categórico": por certo, imperativo este baseado na completa liberdade do ser e ausência de normas. Porém, a liberdade de Nietzsche está entre a aceitação consciente (livre escolha) de um objetivo moral superior (que transcende a racionalidade do ser humano) e a matéria, a razão material kantiana. Portanto, a realidade está na escolha consciente entre a moral superior (instinto, vontade do coração) e a moral racional (somatório de valores criados pelo homem). O que reside não nas palavras mas nos sentimentos (amor, música etc.).
Para Kant, a razão que se movimenta no seu âmbito, nos seus limites, faz o homem compreender-se a si mesmo e o dispõe para a libertação. Mas, segundo Nietzsche, trata-se de uma libertação escravizada pela razão, que só faz apertar-lhe os grilhões, enclaustrando a vida humana digna e livre.
Em Nietzsche, encontra-se uma filosofia antiteorética à procura de um novo filosofar de caráter libertário, superando as formas limitadoras da tradição que só galgou uma "liberdade humana" baseada no ressentimento e na culpa. Portanto, toda a teleologia de Kant de nada serve a Nietzsche: a ideia do sujeito racional, condicionado e limitado é rejeitada violentamente em favor de uma visão filosófica muito mais complexa do homem e da moral.
Nietzsche acreditava que a base racional da moral era uma ilusão e por isso, descartou a noção de homem racional, impregnada pela utópica promessa - mais uma máscara que a razão não autêntica impôs à vida humana. O mundo, para Nietzsche, não é ordem e racionalidade, mas desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e, por isso, se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade sem máscaras, para Nietzsche, é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante.
Nietzsche era um crítico das "ideias modernas", da vida e da cultura moderna, do neonacionalismo alemão. Para ele, os ideais modernos como democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência do "tipo homem". Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da pós-modernidade.
A figura de Nietzsche foi particularmente promovida na Alemanha Nazi, tendo sua irmã, simpatizante do regime hitleriano, fomentado esta associação. Como dizia Heidegger, ele próprio nietzschiano, "na Alemanha se era contra ou a favor de Nietzsche".
Todavia, Nietzsche era explicitamente contra o movimento antissemita, posteriormente promovido por Adolf Hitler e seus partidários. A este respeito, pode-se ler a posição do filósofo:
Antes direi no ouvido dos psicólogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto o ressentimento: hoje esta planta floresce do modo mais esplêndido entre os anarquistas e antissemitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro cheiro.
...tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismo, os antissemitas, que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e, através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afetação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo...
Sem dúvida, a obra de Nietzsche sobreviveu muito além da apropriação feita pelo regime nazista. Ainda hoje, é um dos filósofos mais estudados e fecundos. Por vários momentos, inclusive, Nietzsche tentou juntar seus amigos e pensadores para que um fosse professor do outro, numa espécie de confraria. Contudo, esta ideia fracassou, e Nietzsche continuou sozinho seus estudos e desenvolvimento de ideias, ajudado apenas por poucos amigos que liam em voz alta seus textos, que, nos momentos de crise profunda, ele não conseguia ler.
Ideias
Seu estilo é aforismático, escrito em trechos concisos, muitas vezes de uma só página, e dos quais são pinçadas máximas. Muitas de suas frases se tornaram famosas, sendo repetidas nos mais diversos contextos, gerando muitas distorções e confusões. Algumas delas:
"A filosofia é o exílio voluntário entre montanhas geladas." "Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmo somos desconhecidos." "Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia." "O amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são." "Como são múltiplas as ocasiões para o mal-entendido e para a ruptura hostil!" "Deus está morto. Viva Perigosamente. Qual o melhor remédio? - Vitória!". "Há homens que já nascem póstumos." "O Evangelho morreu na cruz." "A diferença fundamental entre as duas religiões da decadência: o budismo não promete, mas assegura. O cristianismo promete tudo, mas não cumpre nada." "Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida mas no "além" - no nada -, tira-se da vida o seu centro de gravidade." "Para ler o Novo Testamento é conveniente calçar luvas. Diante de tanta sujeira, tal atitude é necessária." "O cristianismo foi, até o momento, a maior desgraça da humanidade, por ter desprezado o Corpo." "A fé é querer ignorar tudo aquilo que é verdade." "As convicções são cárceres." "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras." "Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem." "Aquilo que não me destrói me fortalece." "Sem música, a vida seria um erro." "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." "A moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo." "O idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno." "Em qualquer lugar onde encontro uma criatura viva, encontro desejo de poder." "Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos." "Quanto mais me elevo, menor eu pareço aos olhos de quem não sabe voar." "Se minhas loucuras tivessem explicações, não seriam loucuras." "O Homem evolui dos macacos? É, existem macacos!" "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal." "Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura." "Torna-te quem tu és!" "Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar" "O desespero é o preço pago pela autoconsciência" "O depois de amanhã me pertence" "O padre está mentindo." "Deus está morto mas o seu cadáver permanece insepulto." "Acautela-te quando lutares com monstros, para que não te tornes um." "Da escola de guerra da vida: o que não me mata, torna-me mais forte." "Será o Homem um erro de Deus, ou Deus um erro dos Homens?" "É preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança."
Longe de ser um escritor de simples aforismas, ele é considerado pelos seus seguidores um grande estilista da língua alemã, como o provaria Assim Falou Zaratustra, livro que ainda hoje é de dificílima compreensão estilística e conceitual. Muito pode ser compreendido na obra de Nietzsche como exercício de pesquisa filológica, no qual se unem palavras que não poderiam estar próximas ("Nascer póstumo"; "Deus Morreu", "delicadamente mal-educado", etc… ).
Adorava a França e a Itália, porque acreditava que eram terras de homens com espíritos-livres. Admirava Voltaire, e considerava como último grande alemão Goethe, humanista como Voltaire. Naqueles países passou boa parte de sua vida e ali produziu seus mais memoráveis livros. Detestava a prepotência e o anti-semitismo prussianos, chegando a romper com a irmã e com Richard Wagner, por ver neles a personificação do que combatia - o rigor germânico, o anti-semitismo, o imperativo categórico, o espírito aprisionado, antípoda de seu espírito-livre. Anteviu o seu país em caminhos perigosos, o que de fato se confirmou catorze anos após sua morte, com a primeira grande guerra e a gestação do Nazismo.
Referências nietzschianas
Contudo, no próprio legado do filósofo podemos inferir suas opiniões em relação a outras filosofias e posições. É sumamente importante notar que Nietzsche perdeu o pai muito cedo, seus primeiros livros publicados até 1878, que não expunham suas ideias mais ácidas, ainda assim fizeram pouco ou nenhum sucesso. Que ele ficou extremamente desapontado com o sucesso de Richard Wagner, o qual se aproximou do cristianismo. Teve uma vida errante, com poucos amigos, e sempre perseguido por surtos de doença.
Nas suas obras vemos críticas bastante negativas a Kant, Wagner, Sócrates, Platão, Aristóteles, Xenofonte, Martinho Lutero, à metafísica, ao utilitarismo, anti-semitismo, socialismo, anarquismo, fatalismo, teologia, cristianismo, à concepção de Deus, ao pessimismo, estoicismo, ao iluminismo e à democracia.
Dentre os poucos elogios deferidos por Nietzsche, coletamos citações, muitas vezes com ressalvas a Schopenhauer, Spinoza, Dostoiévski, Shakespeare, Dante, Napoleão, Goethe, Darwin, Leibniz, Pascal, Edgar Allan Poe, Lord Byron, Musset, Leopardi, Kleist, Gogol, Voltaire e ao próprio Wagner, grande amigo e confidente de Nietzsche até certo momento.
Ele era, sem dúvida, muito apreciador da Natureza, dos pré-socráticos e das culturas helénicas.
Niilismo
O legado da obra de Nietzsche foi e continua sendo ainda hoje de difícil e contraditória compreensão. Assim, há os que, ainda hoje, associam suas ideias ao niilismo, defendendo que para Nietzsche:
"A moral não tem importância e os valores morais não têm qualquer validade, só são úteis ou inúteis consoante a situação"; "A verdade não tem importância; verdades indubitáveis, objectivas e eternas não são reconhecíveis. A verdade é sempre subjectiva"; "Deus está morto: não existe qualquer instância superior, eterna. O Homem depende apenas de si mesmo"; "O eterno retorno do mesmo: A história não é finalista, não há progresso nem objectivo". Ou ainda "...se existem deuses, como poderia eu suportar não ser um deus!? Por conseguinte não há deus." passagem que deixa evidente que a conclusão não decorre da premissa, mas sim da pessoal inaceitação do autor a um ente superior ao que ele próprio poderia conceber, ou seja: que, no mínimo, o autor é o ser de maior capacidade intelectiva que existe - isto portanto não o caracteriza como niilista. A superação do homem do seu tempo é o eixo de sua filosofia.
Outros, entretanto, não pensam que Nietzsche seja um autor do niilismo, mas ao contrário um crítico do niilismo. Na genealogia da moral o filósofo faz critícas abertas ao niilismo, que para ele seria uma "anseio do vazio", uma manifestação dos seres doentes aonde se conformam e idealizam o vazio e não um verdadeiro estado de força. Além disso, para ele o homem pode ser, além de um destruidor, um criador de valores. E os valores a serem destruídos, como os cristãos (na sua obra, faz menção à doença, à ignorância), um dia seriam substituídos pela saúde, a inteligência, entre outros. Tal afirmação se baseia na obra Assim falou Zaratustra, onde se faz clara a vinda do Além-homem, sendo criar a finalidade do ser. Tal correspondência é totalmente contrária ao niilismo, pelo menos em princípio. Ou um "niilismo positivo", para Heidegger.Todavia, Nietzsche, contrário ou não, não deixando escapar de suas críticas nem mesmo seu mestre Schopenhauer nem seu grande amigo Wagner, procurou denunciar todas as formas de renúncia da existência e da vontade. É esta a concepção fundamental de sua obra Zaratustra, "a eterna, suprema afirmação e confirmação da vida". O eterno retorno significa o trágico-dionisíaco dizer sim à vida, em sua plenitude e globalidade. É a afirmação incondicional da existência.
Talvez a falta de consenso na apreciação da obra de Nietzsche tenha em parte a ver com os paradoxos no pensamento do próprio autor. As suas últimas obras, sobretudo o seu autobiográfico Ecce Homo (1888), foram escritas em meio à sua crise que se aprofundava. Em Janeiro de 1889, Nietzsche sofreu em Turim um colapso nervoso. Nietzsche passou os últimos 11 anos da sua vida sob observação psiquiátrica, inicialmente num manicômio em Jena, depois em casa de sua mãe em Naumburg e finalmente na casa chamada Villa Silberblick em Weimar, onde, após a morte de sua mãe, foi cuidado por sua irmã.
Faleceu em 25 de agosto de 1900. Encontra-se sepultado em Röcken Churchyard, Röcken, Saxônia-Anhalt na Alemanha.
Escritos
Obras de Friedrich Nietzsche, na ordem em que foram compostas:
O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, 1872); reeditado em 1886 com o título O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie, Oder: Griechentum und Pessimismus) e com um prefácio autocrítico. — Contra a concepção dos séculos XVIII e XIX, que tomavam a cultura grega como epítome da simplicidade, da calma e da serena racionalidade, Nietzsche, então influenciado pelo romantismo, interpreta a cultura clássica grega como um embate de impulsos contrários: o dionisíaco, ligado à exacerbação dos sentidos, à embriaguez extática e mística e à supremacia amoral dos instintos, cuja figura é Dionísio, deus do vinho, da dança e da música, e o apolíneo, face ligada à perfeição, à medida das formas e das ações, à palavra e ao pensamento humanos (logos), representada pelo deus Apolo. Segundo Nietzsche, a vitalidade da cultura e do homem grego, atestadas pelo surgimento da tragédia, deveu-se ao desenvolvimento de ambas as forças, e o adoecimento da mesma sobreveio ao advento do homem racional, cuja marca é a figura de Sócrates, que pôs fim à afirmação do homem trágico e desencaminhou a cultura ocidental, que acabou vítima do cristianismo durante séculos. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen - provavelmente os textos que o compõem remontam a 1873 - publicado postumamente). Trata-se de um livro deixado incompleto, mas que se sabe ter sido intenção de Nietzsche publicar. Trata-se, no fundo, de um escrito ainda filológico mas já de matriz filosófica disfarçada por uma pretensa intenção histórica; mas o grande diferencial desta obra, sua inovação, consiste em sua interpretação psicológica dos pensadores originários. Considera os casos gregos de Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides e Anaxágoras sob uma perspectiva inovadora e interpretativa, relevadora da filosofia que é de Nietzsche. Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral18 (Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn, 1873 - publicado postumamente; edição brasileira, 2008). — Ensaio no qual afirma que aquilo que consideramos verdade é mera "armadura de metáforas, metonímias e antropomorfismos". Apesar de póstumo é considerado por estudiosos como elemento-chave de seu pensamento. Considerações Extemporâneas ou Considerações Intempestivas (Unzeitgemässe Betrachtungen, 1873 a 1876). — Série de quatro artigos (dos treze planejados) que criticam a cultura européia e alemã da época de um ponto de vista antimoderno, e anti-histórico, de crítica à modernidade. David Strauss, o Confessor e o Escritor (David Strauss, der Bekenner und der Schriftsteller, 1873) no qual, ao atacar a ideia proposta por David Friedrich Strauss de uma "nova fé" baseada no desvendamento científico do mundo, afirma que o princípio da vida é mais importante que o do conhecimento, que a busca de conhecimento (posteriormente discutida no conceito de "vontade de verdade") deve servir aos interesses da vida; Dos Usos e Desvantagens da História Para a Vida (Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, 1874); Schopenhauer como Educador (Schopenhauer als Erzieher, 1874); Richard Wagner em Bayreuth (Richard Wagner in Bayreuth, 1876).
Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres (Menschliches, Allzumenschliches, Ein Buch für freie Geister, versão final publicada em 1886); primeira parte originalmente publicada em 1878, complementada com Opiniões e Máximas (Vermischte Meinungen und Sprüche, 1879) e com O Andarilho e sua Sombra ou O Viajante e sua Sombra (Der Wanderer und sein Schatten, 1880). — Primeiro de estilo aforismático do autor. Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais (Morgenröte. Gedanken über die moralischen Vorurteile, 1881). — A compreensão hedonística das razões da ação humana e da moral são aqui substituídas, pela primeira vez, pela ideia de poder, sensação de poder, início das reflexões sobre a vontade de poder, que só seriam explicitadas em Assim Falou Zaratustra. A Gaia Ciência, traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882). — No terceiro capítulo deste livro é lançada o famoso diagnóstico nietzschiano: "Deus está morto. Deus continua morto. E fomos nós que o matamos", proferido pelo Homem Louco em meio aos mercadores ímpios (§125). No penúltimo parágrafo surge a ideia de eterno retorno. E no último, aparece Zaratustra, o criador da moral corporificada do Bem e do Mal que, como personagem na obra posterior, finalmente superará sua própria criação e anunciará o advento de um novo homem, um além-do-homem. Assim Falou Zaratustra, um Livro para Todos e para Ninguém (Also Sprach Zarathustra, Ein Buch für Alle und Keinen, 1883-85). Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886). Neste livro denso são expostos os conceitos de vontade de poder, a natureza da realidade considerada de dentro dela mesma, sem apelar a ilusórias instâncias transcendentes, perspectivismo e outras noções importantes do pensador. Critica demolidoramente as filosofias metafísicas em todas as suas formas, e fala da criação de valores como prerrogativa nobre que deve ser posta em prática por uma nova espécie de filósofos. Genealogia da Moral, uma Polêmica (Zur Genealogie der Moral, Eine Streitschrift, 1887). Complementar ao anterior — como que sua parte prática, aplicada — este livro desvenda o surgimento e o real significado de nossos corriqueiros juízos de valor. O Crepúsculo dos Ídolos, ou como Filosofar com o Martelo (Götzen-Dämmerung, oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, agosto-setembro 1888). Obra onde dilacera as crenças, os ídolos (ideais ou autores do cânone filosófico), e analisa toda a gênese da culpa no ser humano. O Caso Wagner, um Problema para Músicos (Der Fall Wagner, Ein Musikanten-Problem, maio-agosto 1888). O Anticristo - Praga contra o Cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum, setembro 1888) - Apesar de apontar Cristo, mesmo em sua concepção "própria", como sintoma de uma decadência análoga à que possibilitou o surgimento do Budismo, nesta obra Nietzsche dirige suas críticas mais agudas a Paulo de Tarso, o codificador do cristianismo e fundador da Igreja. Acusa-o de deturpar o ensinamento de seu mestre — pregador da salvação no agora deste mundo, realizada nele mesmo e não em promessas de um Além — forjando o mundo de Deus como a cima e além deste mundo. "O único cristão morreu na cruz", como diz no livro que seria o início de uma obra maior a que deu sucessivamente os títulos de Vontade de Poder e Transmutação de Todos os Valores: uma grande composição sinótica da qual restam apenas meras peças (O Anticristo, O Crepúsculo dos Ídolos e o Nietzsche contra Wagner) não menos brilhantes que a restante obra. Ecce Homo, de como a gente se torna o que a gente é (Ecce Homo, Wie man wird, was man ist, outubro-novembro 1888) — Uma autobi(bli)ografia, onde Nietzsche, ciente de sua importância e acometido por delírios de grandeza, acha necessário, antes de expor ao mundo a sua obra definitiva (jamais concluída), dizer quem ele é, por que escreve o que escreve e por que "é um destino". Comenta as suas obras então publicadas. Oferece uma consideração sobre o significado de Zaratustra. E por fim, dizendo saber o que o espera, anuncia o apocalipse: "Conheço minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo — de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. (… ) Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão que público este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo. (… ) Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremoto, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra de espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares — todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra."19 Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner, Aktenstücke eines Psychologen, dezembro 1888).
Manuscritos publicados postumamente
Escreveu ainda uma recolha de poemas, publicados postumamente, com o nome de Ditirambos de Dioniso.
Nietzsche deixou muitos cadernos manuscritos, além de correspondências. O volume desses textos é maior do que o dos publicados. Os de 1870 desenvolvem muitos temas de seus livros publicados, em especial uma teoria do conhecimento. Os de 1880 que, após seu colapso nervoso, foram selecionados pela sua irmã, que os publicou com o título "A vontade de poder", desenvolvem considerações mais ontológicas a respeito das doutrinas de vontade de poder e de eterno retorno e sua capacidade de interpretar a realidade. Entre essas especulações e sob os esforços de intérpretes de sua obra, os manuscritos de 1880 estabelecem repetidamente que "não há fatos, somente interpretações".
Contudo, está disponível a obra Fragmentos Finais, que é baseada na reestruturação feita aos seus manuscritos no Arquivo.
No Brasil, alguns trechos desses fragmentos póstumos podem ser encontrados no livro Nietzsche da coleção Os Pensadores, publicada pela editora Abril Cultural.
Composições Musicais
As composições de Friedrich Nietzsche não são tão conhecidas como seus escritos filosóficos ou seus poemas, mas o próprio Nietzsche, como um artista, pensou a música como seu principal meio de expressão.
Antes de se estabelecer plenamente como um filósofo, ele já havia criado uma miscelânea significativa de produções como poeta e compositor. A poesia permaneceu essencial para seus escritos filosóficos, e a composição musical tornou-se menos importante para ele na medida em que seu envolvimento com a palavra escrita foi adquirindo "nome próprio". Como conseqüência, as suas obras musicais são geralmente consideradas de pouca importância para a compreensão do seu pensamento filosófico.
Fonte: wikipédia e sites da internet. |
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Poema Melancólico a não sei que Mulher |
em 05/03/2014 18:18:29 (3721 leituras) |
Dei-te os dias, as horas e os minutos Destes anos de vida que passaram; Nos meus versos ficaram Imagens que são máscaras anónimas Do teu rosto proibido; A fome insatisfeita que senti Era de ti, Fome do instinto que não foi ouvido.
Agora retrocedo, leio os versos, Conto as desilusões no rol do coração, Recordo o pesadelo dos desejos, Olho o deserto humano desolado, E pergunto porquê, por que razão Nas dunas do teu peito o vento passa Sem tropeçar na graça Do mais leve sinal da minha mão...
Miguel Torga, in 'Diário VII' |
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O Egoísmo Pessoal Tapa Todos os Horizontes |
em 18/02/2014 21:25:51 (2625 leituras) |
O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona. Talvez um dia!
José Saramago, in 'La Verdade (1994)'
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À morte de F. |
em 05/02/2014 13:42:05 (5888 leituras) |
Esse jasmim, que arminhos desacata, Essa aurora, que nácares aviva, Essa fonte, que aljôfares deriva, Essa rosa, que púrpuras desata;
Troca em cinza voraz lustrosa prata, Brota em pranto cruel púrpura viva, Profana em turvo pez prata nativa, Muda em luto infeliz tersa escarlata.
Jasmim na alvura foi, na luz Aurora, Fonte na graça, rosa no atributo, Essa heróica deidade que em luz repousa.
Porém fora melhor que assim não fora, Pois a ser cinza, pranto, barro e luto, Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa. |
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Tirana |
em 30/01/2014 15:52:38 (3611 leituras) |
"MINHA MARIA é bonita, Tão bonita assim não há; O beija-flor quando passa Julga ver o manacá.
"Minha Maria é morena, Como as tardes de verão; Tem as tranças da palmeira Quando sopra a viração.
"Companheiros! o meu peito Era um ninho sem senhor; Hoje tem um passarinho P'ra cantar o seu amor.
"Trovadores da floresta! Não digam a ninguém, não!... Que Maria é a baunilha Que me prende o coração.
"Quando eu morrer só me enterrem Junto às palmeiras do val, Para eu pensar que é Maria Que geme no taquaral . . ."
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