Poemas : 

[Quando Estive Nu]

 
["...[os animais], e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber. Logo o fato de não estarem nus, de não terem o saber da sua nudez, a consciência do bem e do mal, em suma.
Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, na verdade, nus. Eles não estariam nus porque eles são nus." — Jacques Derrida — O Animal que Logo Sou]


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Quero mesmo é falar de uma certa falta esquecimento; mas que fique claro: longe de mim tentar acrescentar algo novo ao tema, longe... Eu já vivi muito, muito, e se me demoro numa aventurosa arqueologia da mente, eu — saído das tramas do sertão, da mesmice de uma cidade pequena, da indiferenciação de uma grande metrópole, e da agonia de ser estrangeiro —, acho-me no direito de pensar que tive uma vida densa, intensa... Tenho vivido tanto que, agora, aos meus olhos, a distância extingue os acidentes da paisagem da minha vida. E é assim, nesse perdimento do meu olhar, que eu vou me esquecendo das coisas... tantas pessoas, tantas faces, tantos lugares, tantas passagens, tantas ações ou inações... mas, e os tantos ridículos passados?!

Voaram longe, longe as futurações que, nas tardes calorentas, eu embalava no canto dos pássaros-pretos... caíram nos labirintos do esquecimento. Ah, mas tem alguma compensação: também foram esquecidos os longos suspiros das minhas volições não vingadas... e os lamentos solitários das perdas cravadas na minha'alma, aquelas exalações na agonia dos entardeceres de toda a minha vida. Tanto me esqueci que às vezes pareço estar dormitando à luz do dia... de mente vazia, sem conteúdos! Ah, lembro um velho cão... pernas fraquejantes que já não avançam os passos como antes... e o que sei eu dos conteúdos da mente de um velho cão?!

Sem conteúdos? Será? Nem tanto... eu queria que alguém me explicasse! — por que não me esqueci, e não me esqueço nunca, de cada instante, por mais remoto que seja, em que fui ridículo? Das vezes em que me senti como um animal que, de súbito, descobrisse que estava nu, literalmente, em pelo? Está gravada em minha mente, indelevelmente, cada circunstância em que estive ridículo! Nem vale a pena nomear: cada ser humano conhece muito bem o modo estar ridículo!

Mas há ainda algo pior: o ridículo parece brotar de uma espécie de olhar reflexivo, isto é, antes mesmo da manifestação do outro, a sensação do ridículo existe [somente] aos meus olhos... a falha, a vergonha revelada ao meu olhar. Pois, se eu não me vejo assim, no silencioso roer interior de uma vergonha, então, no "meio do momento", eu não estou ridículo... depois, talvez... Se eu descubro o meu ridículo, estou nu, nu no mundo!

Assim, eu não preciso do outro para me sentir ridículo; e ser descoberto ridículo aos olhos do outro apenas irrita ainda mais. O pior mesmo é sentir-me ridículo diante aos meus próprios olhos; aí sim... dói, queima; a cena é silenciosamente pirogravada n'alma... e corrói, e expõe, e... desnuda!

Quando estive ridículo, eu fui o animal que descobriu sua nudez! Nada a fazer, nada a prometer: os humanos somos irremediavelmente assim, ridículos, às vezes! Tantas palavras... tantas e não me fazem sentir melhor!
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[Penas do Desterro, 10 de janeiro de 2012]

 
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crstopa
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Enviado por Tópico
VCruz
Publicado: 12/02/2012 15:11  Atualizado: 12/02/2012 15:11
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 Re: [Quando Estive Nu]
Nesse momento em que me sinto exatamente assim, "nua"...desnuda de mim, por dentro...sozinha com meus ridículos, onde só eu me vejo...ou não...
Gosto muito de le-lo!
Obrigada,