II
No momento em que Pé de Pato atravessava a rua 17 para entrar no mercado, Matraquinha, um valetudinário amarelinho e carcomido pelo abuso de álcool, entregava a sacola de pão para a mãe de Dona Edila, e em troca recebia umas moedas. Com elas na sua mirrada mão seguia com dificuldade até o quiosque de seu Mundé, nos fundos da horta da família de Cata Vento ou senhor Miaqui. Pedia uma dose de temperada tão forte que descia rasgando e se alguém acendesse um fosforo era capaz de inflamar-se. Quem o atendia era o próprio proprietário, um homem rude e de poucas palavras, que enchia o copo. Matraquinha apanhava-o com sofreguidão, a mão trêmula, e o entornava num só gole e sem cuspir, lambia os beiços de prazer e os olhos mourejavam, queria engulhar mas se segurava, arrotava, se aprumava e caminhava todo empertigado.
Matraquinha era de Alcântara, morava com a mãe e os irmãos da parte dela, num quartinho fora da casa no corredor. Fora durante muito tempo ajudante de pedreiro com o padrasto e com um dos irmãos. Trabalhara numa reforma de um edifício no Rio de Janeiro. Na juventude fora garrote, descabaçador de moças donzelas, teve inúmeros filhos espalhados por aí. Então aos poucos o álcool foi tomando-lhe as rédeas até entregar-se totalmente a ele. Não trabalhava mais, o irmão não o convidava, alegava que mais atrasava do que ajudava.
Atravessou a praça do Bacurizeiro com seus passos trôpegos debaixo das árvores e seus galhos, entrou na feira pelo portão do comércio de Bruno, passaria por trás dos bares da rua dezessete e sairia na porta de seu Biné, em frente ao prédio de seu Toinho Cabeça Branca.
A sapataria Trindade e outras lojas ainda estavam fechadas. Mancando sempre, antes de atravessar a avenida estreita, olhou para a parada de ônibus debaixo da frondosa mangueira, os passageiros impacientes esperavam ansiosamente os ônibus que passavam lotados na direção do centro ou do terminal da Praia Grande e não paravam, obrigando alguns a caminhar até outras paradas mais abaixo. E os carros de lotação buzinando à cata de clientes.
Mordia os beiços, a fissura para beber mais uma dose. Sentou-se no banco e olhava para os lados em busca de algum conhecido ou parceiro. Foi quando uma reluzente moto Honda vermelha subiu na calçada e estacionou debaixo do toldo em frente ao bar de seu Carrinho Cotia. E dela desceu um bacana, balançando a chave e na ginga de malandro aproximou-se de Matraquinha.
- E aí camarada, cadê Pé de Pato? - Perlustrou para os lados. – E aí, já benzeu o corpo?
Matraquinha balançou a cabeça negativamente.
- Espera aí, vou pegar uns amendoins e na volta trago uma garrafa. E se Pé de Pato aparecer diz para ele mim esperar, certo?
- Na hora, Doutor Osvaldo – prontamente concordou com um sorriso nos lábios tristes.
Pé de Pato retornou com uma sacola de ovos vencidos que ganhara de um quitandeiro da feira. Cumprimentou Matraquinha e olhando a moto perguntou:
- Cadê Doutor Osvaldo?
- Ele foi apanhar amendoim e disse para tu esperar ele.
- Tá bom. Vou fazer o fogo para cozinhar estes ovos.
Arrumou três tijolos, jogou uns gavetos e um pedaço de papelão e acendeu o fogo nele que queimou. Botou uns pedaços de ripa que juntara na véspera em cima da brasa. Apanhou uma lata de leite grande, encheu de água da torneira e com cuidado despejou os ovos. Levou a lata, colocou sobre os tijolos onde as labaredas subiam das ripas.
Matraquinha alegrou-se ao ver o Dr. Osvaldo chegando com a garrafa de pinga e o copo plástico, que lhe entregou. Ele lambeu os beiços de contente, os olhos brilharam de prazer e sem perda de tempo serviu-se de uma generosa dose. Dr. Osvaldo foi para junto de Pé de Pato, que estava de cócoras e com um pedaço de cabo de vassoura cutucava o braseiro.
- E aí, camarada Pezinho, como estão as ‘coisas’ lá em baixo?
- Tá de boa, tá carregado – respondeu levantando.
Dr. Oswaldo meteu a mão no bolso dianteiro da calça social, puxou um maço de notas amarfanhadas e delas pescou uma cédula de dez reais e a estendeu para Pezinho, que limpou as mãos na bermuda e a apanhou com avidez.
- Descola dois ‘dólar’ pra gente.
- Na hora, Doutor – e virou caminhando para o extremo da praça, em direção à ladeira do Piancó.
Gato Guerreiro agachou-se perto de Matraquinha, pegou a garrafa, colocou uma boa dose no copo, bebeu num gole só e sentou-se ao lado dele.
- Tu tava tirando espirito, tá suado que nem chaleira – brincou Matraquinha com a língua enrolada.
- Tava fazendo um corre, fui jogar um cachorro morto lá em baixo. Oh! Bicho pesado. Cadê Pezinho?
Quem respondeu foi Dr. Osvaldo, sentado no outro banco, malandramente de pernas cruzadas, comendo os amendoins que surrupiou no Merete e jogando as cascas no chão.
- Ele foi ali e disse pra vocês olharem o fogo.
Gato Guerreiro ergueu-se e foi observar o fogo. Que queimava certo.
Dr. Osvaldo era também conhecido como Troira, Puxa Ovos, Mão de Paca e Bacana. Era aposentado por invalidez e para completar a renda fazia um bico como mototáxi. Nascera e se criara nos baixos do Bairro de Fatima. Teve vários empregos, o primeiro foi de ajudante de pedreiro, não passou da manhã, abandonou o serviço depois de descarregar uns sacos de cimentos e sentir a coluna. Mas antes passou no restaurante, almoçou e ainda bebeu umas doses na conta do patrão, que à noite foi reclamar para seu Donato, o pai dele.
Vendeu jornal nas ruas, mas nunca fechava a conta, sempre faltavam uns trocados, alegava que se enganara na hora de dar o troco. O velho Donato conseguiu-lhe um emprego no jornal O Imparcial como ajudante. Trabalhou como cobrador da empresa Taguatur e da Itapemirim nos ônibus intermunicipais pela baixada. E finalmente, graças a seu Donato, entrou para o tribunal de Justiça como boy e ali se aposentou depois de se chocar com um ônibus. Era separado, morava sozinho em uma casa na travessa da rua treze. Uma neta trazia-lhe, todos os finais de semana, a boia e a roupa lavada pela ex-mulher.
Minutos depois Pé de Pato voltava amarelo e ofegante.
- Porra, Bacana, sujou lá embaixo – desabafou jogando-se no banco entre Matraquinha e Gato Guerreiro.
- Me dá uma dose mano, ainda estou nervoso, corri que nem um condenado – e arquejava. Matraquinha pegou meio copo e entregou-lhe.
Dr. Osvaldo olhou-o de soslaio, levantou-se e ficou a sua frente.
- E aí, comprou?
Bebeu a cachaça, deu uma cuspalhada.
- Pelei foi uma porca. Ainda bem que ouvir o barulho das portas do camburão, peguei o bagulho da mão da boca e corri para o fundo e rasguei por dentro do mato.
Meteu a mão no fundilho e tirou dois ‘dólar’ bem servidos e colocou na mão de Bacana, que num gesto automático levou o bagulho ao nariz e espirrou.
- Valeu, Pezinho – dividiu um no meio e deu metade para ele.
- Agora vou me chilar no barraco e depois vou no BF. (bairro de Fatima) visitar Seu Donato.
Rumou para a moto, montou e deu a partida, antes de arrancar fez sinal para Pezinho que correu até ele. Deu-lhe uma cédula de cinco reais.
- Falou, Dr. Osvaldo – agradeceu, guardando o dinheiro no bolso da bermuda. (continua)
Um dia na vida da Praça Sete Palmeiras
Uma declaração de amor – talvez seja possível resumir, com essas palavras, o livro Vila Embratel – Praça Sete Palmeiras, de Raimundo Nonato Rodrigues.
O carinho transparece, por exemplo, na construção dos personagens. São, em sua esmagadora maioria, bêbados e usuários de drogas que se encontram, todos os dias, em um bairro pobre da capital maranhense. Mas as semelhanças entre eles param por aí. Com hábeis pinceladas, o autor traça retratos diferenciados para cada um, tornando-os inesquecíveis. Difícil olvidar, por exemplo, até mesmo personagens secundários como o Professor ou Poeta – “tranquilo, gostava de apertar unzinho, na quarta dose entrava em alfa e na quinta, em amnésia”. Não há julgamentos morais, e sim uma indisfarçável ternura por aquele bando de perdedores
Outro personagem tratado com extremo cuidado e delicadeza é a própria Praça Sete Palmeiras. O autor descreve à perfeição momentos sucessivos de um dia na praça – desde o alvorecer, quando as lojas para a gente pobre abrem suas portas, até o anoitecer, quando os bancos são ocupados por casais de namorados que se beijam sob o olhar indiferente dos viciados que apertam mais uma cabeça de crack. Com isso, a praça ganha vida, parece respirar, torna-se um espaço mágico, fascinante.
Um aspecto magistralmente captado é a delicadeza nas relações entre os habitantes da capital maranhense. A começar pelos bêbados, que se ajudam a atravessar a rua sem serem atropelados ou guardam alimento para um companheiro desmaiado; mas também entre as pessoas de mais posses e a gente pobre que lhes presta serviços, e que sempre recebe, além do pagamento, um sorriso e um presentinho – um pastel, um copo de guaraná, um peixe, um pouco de maconha. Gestos de solidariedade que por vezes provêm de fontes improváveis, como o PM que todos os dias alimenta os bêbados e drogados da Praça Sete Palmeiras. E há, sem dúvida, ovelhas negras, ainda mais perceptíveis contra o pano de fundo da civilidade geral.
Por tudo isso, por apresentar em todos os matizes um dia na vida da Praça Sete Palmeiras, as pequenas dores e alegrias de seus frequentadores, o livro de Raimundo Nonato Rodrigues merece ser lido. E dificilmente será esquecido.
Cadu Matos