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Analise do Poema Viagem de Ricardo Maria Louro

 
⁠- Viagem -

A vida é uma viagem
Um retorno sem imagem
Nos espelhos do destino,
É um grito sem amarras
Um poema sem palavras
Que vivemos no caminho.

O que trago ou não trago
O que canto e dou ao fado
Só eu sei o quanto dói,
Ver nos olhos de toda a gente
O silêncio de quem sente
O quanto a vida nos destrói.

Visto noites e cansaços
No meu corpo, nos teus braços
Na distância, o teu olhar,
Roda a roda do destino
Acendo velas no caminho
Numa pressa de te amar.

Só há Fado e solidão
Esta dor e um coração
Nos meus olhos a bailar,
E no céu da minha noite
Já nem há onde me acoite
Tanta estrela sem brilhar.

1) Núcleo temático:

O poema condensa uma filosofia existencial: viver como deslocação contínua e, paradoxalmente, como “retorno” que não deixa rasto visível (“sem imagem”). O campo semântico privilegia movimento e mediação — viagem, retorno, espelhos, caminho — contraposto ao da ausência — “sem imagem”, “sem amarras”, “sem palavras”. A tríplice repetição de “sem” instala uma poética de falta: aquilo que importa (memória, liberdade, linguagem) é evocado precisamente pelo seu esvaziamento.

2) Arquitetura formal:

Estrofe única de 6 versos (sextilha) com versos curtos, de medida livre, mas cadência regular marcada pelas pausas e pelas vírgulas.

Esquema de rimas: A-A-B-C-C-B (“viagem/imagem”; “destino/caminho”; “amarras/palavras”). A disposição especular (B abre no v.3 e retorna no v.6; C duplica nos vv.4-5) reforça o motivo dos “espelhos do destino”: a forma encena o ir-e-voltar da própria viagem.

Sintaxe: verbos escassos e absolutos (“é”, “vivemos”) enquadram um catálogo de substantivos-ideia. O fecho em 1.ª pessoa do plural (“Que vivemos no caminho”) desloca o sujeito do impessoal para o comunitário, incluindo o leitor na marcha.

3) Imagens e figuras:

Metáfora mestre: a vida como viagem. O “retorno sem imagem” sugere memória falível ou experiência inefável — regressa-se, mas sem fotografia interior que fixe o vivido.

“Espelhos do destino”: imagem de reflexividade e predeterminação; ver o destino é ver-se, mas sempre mediado, nunca direto.

Paradoxo/aporética: “Um poema sem palavras” afirma o limite da linguagem; o indizível (místico ou existencial) só se toca por alusão e silêncio. A poesia aparece como gesto anterior ao dizer, “grito” antes de forma.

Anáfora semântica: a repetição de “sem” cria um trilho de ausências que funciona como negativo fotográfico da experiência.

4) Som e ritmo

Predominam vogais abertas (a/e) e terminações em “-agem/-arras/-avras” que alargam o fôlego e dão sensação de amplitude — uma respiração de estrada. As rimas emparelhadas C-C no centro produzem um nó sonoro antes da resolução final em “caminho”, que retoma a marcha.

5) Metapoética e horizonte cultural

Ao dizer “poema sem palavras”, o texto comenta o próprio ato de escrever: a poesia tenta fixar o que escapa. O léxico “destino” aproxima o poema do imaginário fadista (destino, fatalidade) e de uma tradição portuguesa em que a viagem é figura de conhecimento (o caminho mais importante que a chegada). Aqui, porém, a chegada é “retorno” impossível de ver — uma crítica suave à ilusão de meta final.

6) Movimento argumentativo (close reading)

1. Proposição: “A vida é uma viagem” — tese direta.

2. Contraponto: “retorno sem imagem” — desloca a viagem do exterior (turística) para o interior (sem representação).

3. Mediação: “espelhos do destino” — não há visão imediata; há reflexos.

4-5. Intensificação: do “grito” (força vital) ao “poema” (forma), ambos sem o que os prende: sem amarras, sem palavras.

4. Inclusão: “Que vivemos no caminho” — conclusão ética: viver é permanecer em travessia.

7) Sentido global:

A sextilha formula uma ética do devir: aceitar que a experiência excede a imagem e a palavra. Longe de negar a poesia, o paradoxo eleva-a: o melhor poema talvez seja aquele que organiza o silêncio e nos devolve ao “caminho” comum.

Eliot




Ricardo Maria Louro

 
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