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FEVEREIRO Fevereiro de 1990 – Sexta-feira

 
FEVEREIRO

Fevereiro de 1990 – Sexta-feira
Renascendo dos sonhos, pretendo iniciar a pretensa obra literária. Há pouco li, um artigo sobre o lançamento do novo livro do genial colombiano Garcia Marquez, fiquei excitadíssimo com a ideia de escrever o “grande” romance maranhense e assim alcançar o meu verdadeiro lugar na literatura nacional. Vanerrima, minha musa e companheira atual não acredita que eu faça tal coisa. As vezes eu mesmo implico-me com pensamentos negativos. Não sei, as vezes penso que irei pirar se não fazer determinada e pretensa obra.. A minha prosa continua fraca. A poesia aflora de vez enquanto, numa linguagem cem por cento minha. O projeto P parou por falta de grana. O meu vizinho estar encarregado de xerocara o original. Ainda estamos na primeira fase. Vejo melancolicamente “Os Embalos Continuam...” na expectativa da chegada de Sra. Vanerrima, que se encontra desenvolvendo seus trabalhos de cobrar os inadimplentes, os seus eternos devedores.
Concluir que Joyce é Joyce e eu tenho muito caminho a percorrer. Devaneio a esperança de um dia ao menos experimentar a sensação de escrever algo substancioso para engradecer a arte literária. As ideias fervilham eletricamente e sempre que tento passa-las para o papel, ocorre o fenômeno que atormenta todo aspirante, o de não saber desenvolver o tema como concebido mentalmente. Existem barreiras que tem de serem superadas. Uma dela e a continuidade do exercício.
Fevereiro de 1990
Segunda, uma das milhares de segundas que vivi e vivo modorrentamente despojado de frescuras do mundo, tento mais uma vez compor logo que já virou rotina. Chilar-me numa segunda, não ir a oficina a tarde e escrever até cai profundamente no sonho sobre os meus sonhos.
Sabado passado, enquanto bebíamos umas cervejas no boteco de Zequinha Rabelo no canto da Rua Afonso Pena com a travessa da Lapa. Dona Van despachou a primeira remessa por uma carroça da mudança trazendo uma geladeira. Um momento histórico, mais uma nova residência, desta vez ao lado de minha nova musa Dona Vanerrima, uma lourinha branquinha cearense de trinta anos, modelo perfeito dos meus sonhos. As sete horas da noite, quando os foguetes explodiam brilhantemente no céu do Desterro, anunciando a saída da sua extrovertida banda, na rua Afonso Pena, a do Grafite descia com uma enxurrada de seres e espécies multiformes e bicolores como nos filmes de Felini. Nós, eu e Karrin descarregávamos e ajustávamos os moveis da sra. Nérrima na nova e acolhedora casa localizada na Rua da Saúde – uma porta e janela bastante ampla: uma sala onde ficará a improvisada a pequena boutique, um corredor que leva até a copa-cozinha e banheiro, passando logico pelo nosso ninho, um quarto de bom tamanho e no fundo um exíguo quintal todo encimentado com uma caixa d’agua de amianto. Os outro moveis vieram num pequeno caminhão e conseguimos uns amigos que nos ajudaram a transferi-los para dentro do nosso novo lar.
Antes das nove horas da noite, recebemos a primeira visita oficial, do mestre Salomão Solon e a família com uma amiga da esposa que procurava uma casa ou quatro para lugar. Vanerrima banhava-se nua no quintal as escuras perto do tanque.
- Não, não sei – respondi ligeiramente e se despediram. Depois do banho fiz uma surpresa para a minha amada a convidei para jantarmos num restaurante gra-fino Xique-Xique no São Francisco para devorarmos uma saborosa tabua de carne de sol ao leite, uma delicia que dava agua na boca dela ao ver a propaganda na tv. Fomos e viemos de taxi e na manhã seguinte almoçamos sardinha de lata com ovo e macarrão. Gastei todo o meu salario de uma semana como soldador no barracão da Turma do Quinto. Mas valeu apena ver os olhos dela brilharem de alegria.
Estamos a véspera do Carnaval e trabalho noturnamente e nesses últimos dias tenho voltado cedo, devido a falta de material. Van chegou ontem de viagem e trouxe novidades. Na sala ouço as vozes das clientes extasiadas, exilo-me na cozinha, tento recompor o meu diário, mas uma preguiça braba me acompanha, sinto-me inútil literariamente. Não sei o que esperar do futuro. Abasteci-me na tranquila tarde que se desenrola-se entre a balada nostálgica da finada Elis. Preocupo-me com o não pagamento dessa semana. Venceu o lauguelk da oficina e não aparece nenhuma boa encomenda. Lord Karl desdobra-se na ociosidade com sonhos de um dia ganhar na loto e ficar milionário. Sonho no sonho do sonho que nada me leva, a poesia envolve-me no próprio poema.
SETEMBRO DE 90
Uma sexta-feira
HOTEL SÃO MARCOS, letras azuis pintadas no paredão branco, barram a minha visão. Da janela vejo e contemplo essa rua que há muito habita dentro de mim. No fundo musical um Philiips – F 1340 entoa um lento chorinho. O cego de azul e uma bolsa preta pendurada no pescoço, a frenagem de uma Kombi interrompi-lhe o passo. Espero ansiosamente o retorno da minha amada, há uma semana estou solitariamente só, sozinho no nosso ninho do amor. Aproveitei e também tirei umas folgas da oficina, entregue a gerencia ao senhor Lib, um neguinho bosquímano, atarracado como Mike Tyson e esperto como uma lebre. Cesar Gambó, vizinho do lado, exalta-se em vos alta a vendeta contra um agressor que lhe deu umas pauladas sem nenhum motivo parente. Em frente colégio alternativo de menores abandonados ou melhor uma escola para marginalizados ‘cheira-colas’. No F-1340, um ritmo afro, na voz original de algum ébano dançarino, louvando como sempre a beleza da terra ou as peripécias de algum caçador.
De todas as ruas que já morei, essa daqui e a melhor, não tem barulho de radiolas como no Inferninho. Um rua tranquila a começar pelo sugestivo nome Rua da Saude, começa na Avenida Magalhães de Almeida e termina na rua 28 de Julho ou Rua do Giz. Daqui da minha janela, obeservo tranquilamente as minhas sofridas irmãs, as outrora rainhas da noite, depois da Rua Afonso Pena ou Rua Formosa, começa a antiga ZBM ou Zona do Baixo Meretricio.
Anoiteceu, os meninos brincam em algazarra entre berimbaus e palmas, vão participar de uma romaria para São José de Ribamar em homenagem aos sem-terras. O F 1340 emite um puro e delicioso jazz nesse começo da noite na ânsia maior – esperando a esperança. A cada carro que sobe, corro para a janela, na esperança de ser que eu tanto amo e espero. Um clássico, a betria, o contra-baixo, um trompete e um piano. Os cadernos sobre a mesa de madeira, encostada na parede azul, a pequena televisão portátil na prateleira da estante, a metade de um manequim feminino. Concentro-me, o meu pensamento voa a milhares – Vito Marsalis é o nome da fera do trompete.
UMA SEXTA NA CESTA
O F1340 atormenta=me com o sibilar romântico de Simon. A rua descansa na solidão de seus paralepidedos, as ervas vicejam nas brechas das calçadas, um barulho de dominó em batidas em cima da mesa. Tento enganar-me. Ela não chegará hoje, talvez na segunda. Escrevo debruçado sobre o balcão de vidro, em cima da bonequinha e presentes a venda, o sofá no espaldar, sento eu, um copo de cerveza e Simone sussurrando:
You love
Coço a cabeça no intuito de encostar alguma coisa que valha ser escrito. Sorvo um gole de cerva, tendo delinear alguma coisa, mas penso num crespusculo numa praia deserta, ouvindo o barulho do mar. Isolei-me do mar. Simone envolve-me, entorpecendo a minha alma, o poeta pede a volta de sua musa. O álcool fermenta a mente. Um avião corta o ceu escuro com seus poderosos holofotes, uma voz rouca sintoniza-me com a beleza desse escocês. Sozinho na penumbra de uma sexta na cesta. Um melodia, Renato Russo embala-me com sua poética sem precedente no rock nacional.
“Angie” na voz dopada de Jagger, decido comprar mais uma cerveza, espero o canção terminar. Preocupo-me com Dona Van, sacolejando num ônibus vindo do Paraguai. Tento me conectar mentalmente com ela. Nem sinal e o tempo escorre na noite e eu embebedo-me generosamente. Assisto do grande Wagner no canal 2, a opera “Navio Fantasma”. Outro avião e acerveja chega ao fim.
Sabado, 15/09/90
Uma pequena ressaca e uma fome assustadora e desesperada de sexo e amor. O passeio madrigal como há muito não fazia – era mais ou menos uma hora da madrugada, a rua jazia no silencio sepulcral. Atravessei a Rua Afonso Pena ou Rua Formosa, as cadeiras das minhas irmãs recolhidas. O silencio quebrado pelos resmungos, arrotos, peidos e gozos vindo dos quartos as escuras,
Domingo, 16/09/90
O locutor conta o histórico das decisões entre o Moto e o Sampaio Correa. Ainda pouco chamei Padam para vermos a saida de alguns jogadores do Moto Clube do Hotel São Marcos, onde estavam concentrados, pedimos bravamente a vitória do rubro-negro. Pã dormiu aqui, uma hora da madrugada chamou-me abruptamente, pedindo a chave, espantei-me, contou-me uma estória estranha, disse-me que ouvia uns sonhos estranhos como vozes. Na tv, um filme insosso, sem pé e nem cabeça, preferi voltar a dormir. Ao sair, entrei em sofrimento, andar aquelas horas, sozinho pelas ruas desertas e mal iluminadas, uma vitima em potencial, Tentei acompanhar o filme. O segundo “Rede de Intrigas”, apesar de ser melhor dos dois, preferi continuar a dormir até o retorno inesperado de Padam, o que tranquilizou-me um pouco, levantei-me da rede e deitei-me na cama até despertar nessa linda manha de domingo.
Ele foi o convidado especial desde ontem quando flanamos umas voltas ao passado, uma passeio sentimental pelo centro, subindo a rua grande e depois demos um pulo até o Espaço Cultural na antiga Reffesa onde haveria um show. Tentamos como nos velhos tempos darmos uma de penetra, mas não deu certo, segurança reforçada e retornamos, antes uma café no abrigo da Praça do Carmo, onde ele comprou meio maço de Plaza.
A rua calma, apenas a vizinha Conceição sentada de pernas cruzadas na porta, observando o final da tarde.
A noite chegou como de costume nos pegando de surpresa no meio de um restaurante chic na Avenida Dom Pedro II – simplesmente fomos convidados a nos retirarmos, não servem só bebida. Mr. Robertson como de costume, interpretou instantaneamente a mensagem do garçom, que foi bastante polido e um pouco rude. Saímos os três em fila indiana; eu na frente, Robert mas atrás e o velho Padam de lado disfarçando, ainda bem que tinha poucos fregueses. Cabisbaixo seguimos, descemos a montanha russa e fomos afogar nossas decepções num barzinho na Beira-Mar, próximo o antigo Baixo-Leblon. Onde mamamos duas Antárticas contemplando o movimento do transito na Ponte do São Francisco, o asfalto molhado e brilhante e ouvindo Robertson falando de seu novo projeto plantar mamão.
NOVEMBRO DE 90
Segunda-feira, 19.11.90
Chove desesperadamente, o dia escureceu. O Philips executa o mais puro som afro. Há exatamente um mês que não escrevo nada, apenas respondendo pelo materialismo, nenhuma poesia brotou nesse lago estéril, a qual encontro-me bem no meio, ilhado por sonhos incertos.
São dez e meia, assim marca o meu Cardin de segunda linha do Paraguai, a minha adorável musa encontra-se numa de suas viagens a negócios na fronteira. Sozinho tento compor um mosaico da minha incerta vida. Os livros continuam sendo a minha obsessão. O sonho de publica-los, ainda enche de esperança na linha de meu irritante cotidiano. A treze dias estou solitário e espero ansiosamente a volta de Dona Van. Karl voltou a trabalhar na oficina, após uns dias prestando serviço para o megaempresário do ramo da navegação Jesus Salomão. O cheiro de terra molhada, os pingos fortes rimbombam na calçada e a fúria sonora de um grupo africano. Tenho duas fitas gravadas com os sons dos meus Hermanos afro. Tanto tempo que não escrevo que a minha caligrafia estar péssima, assim como o meu parco vocabulário. Ultimamente não escrevo nada em prol do meu desenvolvimento literário


 
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Enviado por Tópico
Benjamin Pó
Publicado: 19/08/2025 16:41  Atualizado: 19/08/2025 16:42
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 Fevereiro 1990 p/ efemero25
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O importante talvez não seja "alcançar um lugar na literatura nacional" ou "escrever algo substancioso para engradecer a arte literária".

Escrever para viver o instante da criação e aprender mais sobre si e sobre o mundo parece uma missão muito mais nobre.

O reconhecimento público que não nasça dessa premissa rapidamente se torna vazio de sentido.

Penso eu, que avancei tanto na idade e ainda aprendi tão pouco...