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Pai José II -Meu amigo alemão Herr Kurt

 
II
Meu amigo alemão Herr Kurt



Levantei-me cedo, por volta das cinco da manhã, levaria para a Feira da Praia Grande uma carga de pescada. Desci pela Rua das Estrelas até chegar na Praça Poeta Nauro Machado ... O tempo estava bom ... Uma vista magnífica sobre a baía de São Marcos, os navios à distância, o rio de Bacanga, o mar azul, sob um vento frio, e as estrelas que brilhavam no céu limpo, sob um pedaço da lua. Meu cachorro Monsieur Faim (Fome) levantou-se também, e acompanhou-me feliz. No inverno passado, o telhado e o assoalho do fundo desabou, restando apenas a grande sala com as quatro portas-janela com sacadas de ferros para a rua ... A mobília é bem simples apenas uma mesa de madeira e uma cadeira de plástico, um guarda-roupa antigo sem portas, cheio de livros e cadernos, e em uma de suas prateleiras estão as panelas, os pratos e as colheres nas caixas ... A cozinha improvisada no fundo quintal. Bem num canto perto da casinha, arrumei os escombros, separei as pedras da madeira e armei uma escada de corda para subir e descer. À noite acendo uma vela, sento na minha cadeira de balanço e aperto um baseado e escrevo minhas memórias e contemplo o movimento dos transeuntes da avenida do Anel Viario e suas luzes ... Meu amigo Faim está aninhado sob um tapete velho e rasgado. Tudo é silêncio, na rua poucas pessoas ou carros.. e vou à varanda, acendo um carêta e volto para a mesa. Um gole de café. Abro o caderno e rebobino meu dia.
Esta manhã encontrei por acaso, meu velho amigo alemão, Herr * Kurt. Avistei-o do outro lado na calçada em frente da porta do Mercado Grande na Avenida Magalhães de Almeida. Gritei bem alto; "Guten Morgen, Herr Kurt!"! Fome imediatamente latiu. O movimento dos carros era intenso. Herr Kurt olhou-me com surpresa e sorriu, parou na frente do açougue, colocou as mãos nos bolsos da calças. Esperei pelo movimento dos carros para diminuir, e aproveitei para atravessar a avenida com cuidado, seguido de Fome, me aproximei dele, estava muito feliz, havia muito tempo que não nos víamos. Apertamos as mãos e abraçamo-nos lá no meio da calçada. "Mein Freund, Vater Joseph!" (Meu amigo, Pai José) -Disse-me contente, colocando a mão no meu ombro "Por quanto tempo não nos vimos?" Mein Freund? Wie gehts? " "Tudo está bem, meu amigo", falei, feliz também. "Olá, Sr. Kurt!, Meu velho amigo, como você está?" "Eu vivo agora na cidade de Alcântara, estou morando com uma mulher ..." Uma mulher?”Fiquei surpreso! Meu amigo alemão era solteiro e morava como um mendigo, dormindo nas calçadas do Mercado Central. "Sim, meu amigo, eu tenho uma esposa, a quem conheci aqui no mercado". Eu ouvi sem acreditar. Ele estava bem vestido, sua barba feita, muito diferente do alemão antigo, que eu vi na taberna do distrito de Portinho. "Gehen wir trinken ein Wein?"(Vamos beber um vinho?) Convidei-o e olhou –me com seus olhos verdes. passou a mão pelos cabelos loiros. Pensei que recusaria o convite. Ele permaneceu em silêncio, hesitante. "Ok, vamos então", disse-me. Fome parou perto de seus pés bem-calçados com um par de sapatos novos brilhando ao sol. Olhou-o para ele e seus olhos tristes disseram: "Ele não é meu amigo". Herr Kurt ajoelhou-se e acariciou-lhe a cabeça e Faim balançou a cauda, feliz. Agora sabia de quem era aquela mão, e perfume e entendeu que era seu amigo. Avançamos abraçados como nos velhos tempos,. Caminhávamos lentamente. Fome à frente todo serelepe e entramos no Mercado Central. Bebemos mais de três litros de vinho de São Braz e vários copos de conhaque. Embriagamos-nos, antes de nos separarmos, bebemos no Kiosk do Sr. Lelis, e contou-me sua história, como conhecera sua esposa, cujo nome era Maria e como apaixonara-se e ela convidou-o para morarem juntos em Alcântara.Era professora aposentada e viúva. Seus olhos brilhavam de alegria. Fiquei muito feliz era uma boa notícia, a vida do meu amigo alemão foi muito difícil. Ele morava como um mendigo. Um dia, bêbado e melancólico levei-o para dormir no casarão. Confessou-me que fora nazista, servira na SS e no campo de concentração de Auschwitz com o Dr. Mengele e que tinha muitos pesadelos, olhando os homens nus e mortos, um cheiro de carne humana assada. Essas lembranças o faziam chorar e sofria muito.

Agora vou preparar a nossa sopa. Fome espera impaciente, ainda não comemos nada e nem lembro como chegamos aqui. Bebo uma dose de cachaça, corto os ingredientes, os legumes, pé de porco salgado, carne seca (todos ajuntados na lixeira do Mercado Grande), salsichas e toicinho defumado e coloco tudo na panela. Desço a escada de corda, segurando-a com cuidado. Acendo o fogo e boto a sobre três tijolos. Jogo um pedaço de osso para Faim que gemia deitado no seu canto.

Meia-noite – cochilei depois da pesada sopa. Fome dorme de barriga para cima e de vez enquanto solta um pum fedorento. Acendo uma vela, bebo um copo de café, preparo mais um fino, fumo tranquilo na sacada, observando a rua vazia e volto para a mesa, abro o caderno vermelho e viajo para o meu longínquo passado.



 
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efemero25
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