1986
02.04.86 – Sexta-feira
Interrompendo as anotações para coçar a perna direita. O tinido do ferro batendo na calçada. Robetson passa correndo, entra na sala e liga a tv, senta na cadeirinha de Sarinha, na tela o locutor de cavanhaque apresenta o primeiro noticiário local, ele fecha e volta novamente para a porta, aguardando a chegada dos patrões. Um sabiá canta engaiolado em alguma sala do escritório da Cibrazem. Pisadas arrastadas de quem calça sandálias são ouvidas. Fama, o eletricista interfere, pedindo que não maltrate o passarinho, ele larga o serviço agora, depois de trabalhar a noite inteira na Fabrica de gelo da Cibrazém. O espirro forçado de mamãe na cozinha.
Ontem depois que me deitei, pensei em enviar os meus originais ao Pres. Sarney, pedindo uma ajuda para publica-los, ciente de que nunca irá lê-los, enviarei uma carta contando a minha historia. O homem que comprou o ferro, diz que o mestre da oficina o rejeitou, que não serve para o serviço dele. Dadá sobe e chama Careca, estre retruca dizendo que esta apenas deitado, levantando-se em seguida com Claudiano. A talha da Cibrazem entra em ação, é mais gelo sendo retirado das fôrmas, encaminhando-as para as câmaras frigoríficas. Pensei também em ir ao filho do pres. Sarney, Fernando diretor-presidente da CEMAR – uma serra elétrica em funcionamento, se não me engano deve ser lá pelos lados da Sematel. Os proprietários da Casa do Marceneiro chegaram, abrem as portas e os funcionários os acompanham. Guardarei o caderno, passarei Minâncora debaixo das axilas e descerei para tomar café e iniciar mais um expediente na oficina.
11:00 – a mão dolorida de tanto bater e segurar a talhadeira num corte de duas patas para uma âncora, que irei soldar mais tarde. Na copa, uma visita ilustre, D.Maria, mãe de Toinho, antigos vizinhos que moravam onde funciona o escritório da San-San, veio com a netinha. Papai chegou a pouco da rua, fora tratar assuntos referentes a sua certidão de nascimento, para aumentar a idade e aposentar-se. Dadá passa as roupas num canto da mesa enquanto saúda as visitantes.
Antes de iniciar o corte, tive que fazer uma senhora talhadeira, o pior foi amola-la, andei de um lado para outro, até que finalmente lembrei-me de seu Joca e dei um pulo até lá e a amolei. Antes perambulei pela comercio dos Rabelos e Casa do Marceneiro, avistei-me com mano Robertson na labuta, trocamos rápidas informações e sair como entrei, sem conseguir coisa alguma. Papai recebe outro cobrador ou vendedor. Será que devo escrever a assessoria do presidente, requerendo sua ajuda e influencia para a publicação do “Itinerário Espiritual e Poético do Desterro” – possivelmente receberei uma carta encaminhando-me para algum dirigente que nunca atender-me-á e por que não procurar o filho mais próximo, dizendo-lhe que fui enviado por Patronho. Afinal o que fazer? Vamos ver a burocracia presidencial em ação, enviarei uma carta para ver no que vai dar.
19:00 – O rascunho pronto para datilografar e mandar. Soldei os pés da minha cama que estavam soltos e os outros dois Robertson e Claudiano quebraram ao meio-dia. Antes soldei a ancora e mandei Negão pintar de verniz, depois esmerilhei duas pontas na cantoneira de Rabelo. Kleber chegou trazendo um fogão de duas bocas. Tia Lucilia, minha madrinha visitou-nos a tarde. Consertei o interruptor do corredor, trocando-o por outro.
Como combinei com o sobrinho de seu Nhozinho, o Roberto depois do expediente passaria na residência dele para ver um serviço. Ao sair começou a chuviscar, pedi o dinheiro do pão e segui rapidamente. Na Fonte do Ribeirão, a chuva engrossou, apressei os passos e em poucos minutos alcancei a casa na Rua do Ribeirão. Apertei a campainha, um senhor gordo atendeu-me, mandou-me entrar, fechei o guarda-chuva, balancei-o para secar e coloquei atrás da porta. Levou-me até a cozinha e para o portão, a chuva caia intensamente. Explicou-me como queria o serviço no portão. Combinamos o preço, pedi-lhe 150 cruzados..
A chuva diminui, despedi-me prometendo voltar pela manhã, se não chovesse. A rua estava intransitável para pedestre, dei a volta pela rua do Egito. Na Praça João Lisboa, aumentou pouca coisa. Duas lindas garotas do Santa Tereza passaram correndo na direção da Rua Da Paz. Na frente da Igreja do Carmo, ouvi a missa, deu-me vontade de subir a escadaria e assisti-la para agradecer a Deus, por essa súbita transformação. Os funcionários do Banco Econômico em pé na porta, esperando a chuva passar, uma senhora disse:
- Ainda tenho que apanhar o meu marido e o carro estar na Beira-mar – olhei para trás no intuito de ver a dona daquela frase, uma senhora bonita, trajava um lindo conjunto branco de um tecido chique, esquivei-me de uma moto e galguei a Rua Grande. Lojas abertas, pessoas nas portas, outras na maioria homens assistiam pela tv o noticiário extra dos jogadores cortados da seleção.
Dobrei a esquina da Edifico Duas nações, uma senhora puxando uma menina e disse para o marido que segurava o guarda-chuva:
- Você é egoísta, fica com o guarda-chuva só encima de ti – o homem nada disse e continuaram a andar.
Na frente, um boy sem camisa, com uma mochila nas costas e um guarda-chuva, passou na porta onde um menino moreno disse-lhe alguma coisa, ele parou olhou para trás e continuou. O moreno da porta continuava a xinga-lo:
- É tu mesmo, filha da mãe – o branquelo virou a esquina da Rua da Paz sem dizer nada.
Demorei uns quinze segundos, esperando e esquivando-me dos carros engarrafados. Várias pessoas aglomeravam-se nos degraus das portas do Supermercado Lusitana, esperando a chuva amainar. Ao alcançar a marquise, fechei o meu guarda chuva e o pendurei no bolso da surrada US TOP, rasgada no fundo, mas passa batido. Filas enormes nos caixas. Na entrada um guri mal trajado era inquirido pelo guarda sobre uma bisnaga de pão e o menor sacou do cós da calça a nota fiscal.. Na seção da farinha, entre uma gondola e outra, driblo um carrinho cheio de mercadorias, empurrado por uma linda moça de cabelos negros e blusa azul.
A fila no balcão dos pães, era pequena, depois aumentou e revi o velho resmungão que reclama feio quando alguém entra na sua frente.
- Quatro – peço ao empacotador.
Numa calma, vai até a prateleira apanha um saco de papel e pega os pães, grampeia e entrega-me. A rotisseria cinco clientes pedindo queijo e salame ao mesmo tempo e só um atendente.
Um aleijado barbudo que sempre mendiga no mercado, tenta filar Banzeiro cutuco-o no ombro esquerdo, ele vira o rosto para a direita, cumprimento lhe rapidamente e dirijo-me para a fila do caixa, uma tabuleta encima dela indica somente cinco artigos. Não estar muito grande, mais é muito vagarosa, a caixa registradora é a único manual. Fico atrás de uma menina de vestido de bolinha. Um menino reclama à caixa, que ela deu-lhe o troco errado, a mesma mandar chamar o Fiscal, este vem perguntar ao menino:
- Aonde tu moras?
- Na Rua do Alecrim.
- Onde? – insisti o Fiscal no intuito de intimidar o menino moreno com a camisa no ombro, encostado na porta defronte a caixa.
- Estar com pressa?
O garoto balança a cabeça negativamente. Terá que esperar até as oito, quando encerrar o movimento e fazerem a conta. Na frente uma senhora baixinha de olhos verdes esqueceu o saco com a galinha assada.
Puxo a carteira do bolso traseiro, e tiro os míseros seis cruzados- é a minha vez e dou caixa e ela devolve dez centavos de troco. No outro bolso uma pequena escala de alumínio de 1m, passo pelo empacotador e pelo Fiscal reencontro Banzeiro na porta esperando a sua esposa, trocamos gentilezas e comentários a respeito da chuva, piso na calçada e aperto o mecanismo, pluft e o guarda-chuva se abre como num passe de mágica.
20:45 – Botei Mãe Bentoca na rede e subi para cá, o pano do assento da cadeira de rodas, havia marca, parecia fezes, ela nega como sempre e diz que hoje não cagou. Dadá a repreende e sentou-se na sala para assisti a novela das oito e pede a Careca um favor, pra comprar não sei o quê. Na saída do portão, pediu a irmã Sara para fecha-lo. Ela argumenta que é melhor deixa-lo aberto. Irei ler Graham Greene.
23:25 – Acabei o livro, amanhã começo “Orlando” de Virginia Woolf. Amanhã será um dia cheio, tem o serviço na casa do Tio de Roberto no Riberão. Daqui do sótão ouço Marcos Hummel anunciando o resumo do dia.. A musica ao longe, provavelmente do Inferninho ou da Rua da Palma.
- Careca já levou o pinico? Pergunta Dadá a Sara, preparando-se para subirem. A virilha quase voltando ao normal, passarei a pomada Daktarin mais uma vez. Despi-me e coloquei o calção no cabide de madeira.
Elas sobem, acedem a luz do pequeno cubículo e matam os mosquitos, as palmadas ressoam. Um cheiro de vela acesa, pingos esparsos no corredor caindo nas poças de aguas da chuva.
14 de abril de 1986 – terça-feira
10:55 – O carvão acabou, esperarei dias até que venha novamente. O nosso carvoeiro mora longe e de vez enquanto aparece com latas e latas desse precioso produto – carvão de coco babaçu. Isto significa que essa semana a grana será curta com certeza. A janela de Patronho estar aberta, com certeza saiu e a deixou como sempre. Depois de ler Henry Miller, preferi pegar um bom sono. Acordei as 7:45 – o primeiro trabalho foi as ferragens. Um trabalhão danado, onde nada queria dará certo, principalmente na confecção dos olhás, gastei mais de trinta minutos. Tive que pedi carvão emprestado para poder termina-los. A forja apareceu um defeito, toda vez funcionando o fundo começa fumaçar, iniciando um incêndio, tala como aconteceu sábado passado, quando a metade do madeirame, do lado esquerdo, do fundo e embaixo pegaram fogo – destruindo parcialmente um lado da mesa. Encerrei os trabalhos do período da manhã, apaguei o fogo que destruí a boca do fole e reconstruir de maneira que impeça um novo incêndio. As ferragens esperam as soldas e os furos, que farei mais tarde, quando tiver as marcas das antigas, irei por volta das duas e pouco ao barco, marcara as peças para as furações. Um vento fresco é bem-vindo. Olho discretamente para o livro de Henry, embaixo da mesa, encima do velho e surrado colecionador, onde repousam todos os meus escritos de poemas e prosas. Um idéia apareceu, abrirei a caixa, onde estão os outros diários e darei uma lidinha. Guardando tudo que estiver no colecionador, inclusive o ultimo caderno. Apanhei o martelo e uma talhadeira, abrindo a caixa e retirando os cadernos que já escrevi. Lendo alguns trechos, excluindo apenas os números 6 e 5 – escritos recentemente. Fechei novamente a caixa com os cadernos.. Comparei uma sardinha, o ovo já tenho – farei uma fritada com gosto. Negão perturba batendo uma corda amarrada perto de mim. Um caminhão frigorifico liga o barulhento motor refrigerador. Robertson escuta Bill Harley e seus comets, o antológico Are The Clock. A fome aperta e o dedo doi. Penso no serviço a tarde, após faze-lo terei o resto a minha disposição, esperando que Bamba divida logo o fruto. O pênis escorregando ereto no sujo calção de nylon que uso na trabalho, como fede.
16:00 – Não perguntei as horas, deve ser mais ou menos. Pedi a Dadá que me chamasse caso alguém me procurasse. Respondeu-me mal e mandei-lhe uma porra bem grande. Mãe Bibi deitada. As ferragens prontas, depois de muito esforço fisco, conseguir fazê-las, estão no prato da balança, pesando 12 kilos e aguardo o dono seu Zé Lopes. Depois do jornal das 13 no quatro, fui até o deposito comprar solda. No caminho encontrei Patronho no Carlo’s, havia umas quatro pessoas discutindo sobre o bombardeio aéreo que o EUA fez ontem na capital da Libia, o assunto interessa a todos, pode haver um conflito generalizado. O barulho do motor é insuportável – por isso deixa as pessoas nervosas. Gaguinho apareceu, dando-me cinco cruzados – pedfieu-me emprestado uma broca de1/4 e não devolveu-me. Faleceu ontem em Paris, o escritor Jean Genet, ex-ladrão, condenado a prisão perpetua, conseguindo a liberdade, graças a um movimento dos filósofos e intelectuais encabeçados pelo grande Jean Paul Sartre e sua bela Simone de Beauvoir. Um dos grandes da literatura francesa. Arrependo-me de ter mandado uma porra, confesso que não pensei no momento. Acho que ela perdoará. Levantei-me para ver se o martelo e a talhadeira ainda estavam aqui e esqueci de leva-los de volta. Densas nuvens fecham o ceu, acabando com o lindo dia que fez hoje, bom para uma praia. Afago os cabelos do pênis, vontade de corta-los. Aposto dez contra um como Zé Lopes só vem amanhã, isto significa que não terei um centavo, somente os cinco de Gaguinho. Eta! Vida de gado.
21:15 – Tirei emprestado cinco cruzados da bolsa verde de mamãe de dentro do armário e adicionei com o meu e o resultado foi positivo. Furei os buracos errados e o sacana do Zé Lopes não veio apanha-los. Comprei os pães na Lusitana da Rua de Santana, na vinda caiu um toró, abriguei-me debaixo da marquise do Inamps na Fonte das pedras, defronte a Casa Santa Barbara. Enquanto aguardava a chuva passar, uma senhora ou senhorita veio em minha direção e pediu-me que segurasse o saco um pouquinho pesado do mesmo supermercado. Tinha uma sombrinha, parou para enrolar as pernas da calça e tirar as chinelas. Perguntei para onde ele ia, respondeu que seguia para a Rua Jacinto Maia, pedi-lhe uma carona, atravessamos uma enxurrada de água fétidas até a canela, molhou a perna da minha calça – caminhamos juntos um bom pedaço sem conversarmos até pergunte-lhe se ficaria no meio. Quando estávamos próximo da Rua da Manga, respondeu-me que sim, pensei em nos separarmos no canto do açougue fechado. Desisti ao ver a rua inundada até perto da casa de Marcus, então continuei com a moça até depois da casa de Delmiro, colega de farra de Euzabio. E corri até aqui, debaixo de uma chuva fina, catei a grana e voltei a grande velocidade até a casa de Lucia McCartney, onde encontrei Luis Adauto, o homem das pedras. Perguntei por elas e pelo preço. Respondeu que sim e que custava quinze cruzados. Disse-lhe que só tinha dez. Ok. Entrei e apanhei o’dolar’, bem servido, pensei que fosse palha, depois que mostrei o fumo a Pratronho que estava sem nada e perdera cincoenta fichas na sinuca pequena, disse-me que eu engara ele com a diamba – ela é da boa – legal. Fumamos o primeiro, depois do JN. Contei-lhe que tinha um pouquinho guardado, mandou-me buscar o resto. Vim correndo, subi rápido a escada. Peguei-a em baixo dos livros, botei na manga da camisa e voltei. Papai conversava com seu Oiama na porta de Seu João Gomes – apressei os passos. Patronho esperava da janela e quando aparecei, correu até a tomada da lâmpada do corredor e assim que fechava a pequena porta atrás de mim e desligou a eletrola. Rolamos o segundo. Billy Bernard correndo doidão de cana, diamba e o escambau na travessa com uma colher e uma faca, virando o canto da Afonso Pena. Patronho ainda tentou chama-lo com o assovio da moçada. Despois descemos e saímos juntos conversando sobre a sua perda na sinuca. Foi-se para os confins da Madre Deus e eu para cá, o meu sótão sagrado
06.04.86 – terça-feira
Entrei na Fonte das Pedras para descansar um pouco, enquanto olhava os peixes brincando no fundo, debaixo das carrancas de mármore. Umas estudantes brincavam perto deles agachadas. Demorei o necessário para recuperar as forças. Sai lançando um olhar para uma uniformizada, sentada bem na entrada. Subi o beco, que sempre esqueço o nome, saindo na Praça da Alegria, rua Santaninha, rua grande, rua do passeio, av. Silva Maia. Encostei numa banca e comprei a Veja e segui para a biblioteca. Dirigi-me a recepcionista, devolvi o livro e subi para apanhar outro no primeiro anador. Nas estantes dedicado a literatura e quase no fim, encontrei um Hamsun – “FOME”. Suava como uma chaleira, sentei-me num sofá e li duas páginas, amor a primeira vista, desci para preencher a cautela de empréstimo. Demorei uns cinco minutos até assinar a folha e sair, indo-me sentar entre as arvores do outro lado da Praça Deodoro. Folhei a Veja, enquanto refrescava-me do suor exagerado que escorria por todos os lados olhando as fotos da usina de Chenobil. A tarde bonita como há muito não fazia. Depois de um determinado tempo, desci para a compra diária do pão na Lusitana da rua de Santana. Antes de encarar a fila, entrei numa livraria na Rua Grande, comcei a ver os preços e os títulos – Um Greene, um J.J.Veiga e outros – sair rapidamente, antes que cometesse um crime, roubar um deles
07.04.86 – Quarta-feira
Comprei uma lata de sardinha fiado no Jurimango e o frito com ovos.
Vim pela ida. Na esquina de uma grande mercearia, duas amigas despediram-se e uma delas veio na minha frente. Trajava uma camisa de malha branca com uns desenhos de palmeiras em preto, uma calça jeans pre-lavada e um tênis branco. Na costa uma mochila jeans. A bundinha arrebitada balançava garbosamente a cada passo. Os homens desviavam-se uns minutos para admira-la. Cabelos lisos – linda menina. Eu sempre atrás, acompanhando cada detalhe minunciosamente e pensando mil e umas besteiras caso acontecesse algo impossível. Mesmo se ela parasse, ficaria mudo e não diria nada, o meu silencio falaria toda a minha timidez diante de certas meninas. Na esquina da Jacinto Maia com a rua da Manga, preferi virar para não me torturar e seguimos indiferentes, sem ao menos ver-me de frente e lançar um olhar de reprovação, como pensasse “esse cara feio e mal vestido não faz o meu tipo. Leio “Fome” de Hamsun.