Crónicas : 

PECADO E PERDÃO

 



Voltei meus olhos em direção aos teus
e vi temporais e alvoreceres nas tuas retinas,
vi neles tudo que minh' alma queria encontrar
em outro ser de igual feitura e forma.
Voltei meus olhos em direção aos teus
por pura vontade de ver e ter.
Assim você também olhou pra mim
e construiu aquela que tanto lhe faltava.
Fomos então, projeções de nossas vontades,
construção de nossos desejos,
que por serem assim tão frágeis ,
tiveram suas asas cortadas
ao primeiro golpe certeiro da humana fragilidade,
da humana insensatez,
do desespero feito gesto,
de um momento insano em que me debati
atingindo teu coração, mas também teu orgulho.

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Quando nos tornamos seres reais, não mais sonhados, descobrimos que não existe perdão, pois os humanos não perdoam nunca , nós humanos e tão reais não perdoamos, pois na nossa suposta onipotência não há como sequer pensar alguém nela fazer um corte, deixar uma marca indesejada. Na melhor da hipóteses nos acomodamos ao irremediável e tentamos empurrar para o fundo do esquecimento aquele fato que nos feriu tanto, o que não o faz desaparecer de forma alguma. E somos tão pequenos por trás dessa fachada que morremos de medo de que ela caia em ruínas e que apareça a verdadeira face tão diminuta, tão medrosa e vulnerável. Viver essa mentira é uma cilada. Difícil é perdoar, porque difícil é descer de nosso orgulho protetor. Ele nos dá a falsa sensação de segurança e de auto-suficiência moral. Ele aparece travestido de várias maneiras, ora é satisfação por uma visão elevada de nós mesmos, ora é tranquilidade por julgar-nos a salvo de atitudes menos dignas, ora é compaixão pelos que erram (quando sem dúvida, nós estamos a salvo), ora é tristeza pelas tragédias provocadas pela humanidade, da qual, naturalmente, não fazemos parte dessa forma. Uma superestimação de si mesmos como defesa para o sofrimento que seria ter que se olhar de frente e não poder desculpar os próprios erros a qualquer custo. Porque somos na certa produtos de uma formação castradora da moral cristã que abomina o pecado. E nos tornamos hipócritas tentando nos adaptar a um modelo deformado cuja principal virtude é odiar o corpo e tudo que signifique prazer.

Assim a raiva, o ódio, a agressividade tornaram-se forças latentes reforçadas pela energia que, não podendo ser liberada pelas suas vias naturais, explode irregularmente em comportamentos neuróticos. Dessa forma, temos aquele que precisa acreditar a qualquer preço que não erra, o que se percebe no desespero de certas pessoas em estar sempre na defensiva e achando justificativas para qualquer atitude que é posta em dúvida. Um inferno viver neste brete moral o tempo inteiro, como se andássemos pela borda de um precipício sem nunca trilhar um caminho seguro. E pior do que isso é morrer à míngua tentando acreditar na grande falácia das verdades indiscutíveis. Pois para saber-se que o fogo queima, primeiro há que meter a mão na chama ardente. Ninguém pode viver das verdades alheias, aprendidas, decoradas. Gerações e gerações reproduzindo esse engodo que é a busca de uma perfeição através da obediência cega a preceitos baseados em uma ética falaciosa que não leva em conta a nossa verdadeira natureza. Supor que sejamos criaturas dotadas de livre arbítrio é desconhecer as profundezas da mente humana onde se escondem as raízes de todas as nossas formas de comportamento. Seremos "ensinados" de fora pra dentro o que é correto e o que não é. A civilização se constrói sob regulamentos e normas, mas este verniz mal esconde o que podemos ver em situações de exceção como nas guerras ou nos locais onde os excluídos do convívio social são mantidos.

Por outro lado, aqueles que revidam com violência a um ataque sob a alegação de estarem se defendendo com todo direito, não passam de alguém que usa o verniz da boa educação, que finge socialmente como sendo pessoa compreensiva e incapaz de ser grosseira, um "bom cidadão", mas que evidenciam comportamento rancoroso e vingativo, mostrando não ser melhores do que aquele que os atingiu. Haja visto as tais campanhas CONTRA a violência, que trazem em seu âmago o desejo de bater e de se vingar. Fazer justiça pode ser um ato mais violento do que aquele praticado pela pessoa que está supostamente sendo justiçada.

Não nascemos prontos, o chamado caráter não vem por vias milagrosas. Se alguém viveu em meio à violência e onde a vida tem pouco valor, não achará que tirar a vida de um semelhante possa ser algo tão condenável. Isso põe por terra qualquer argumento de que temos uma natural noção de que não podemos matar, ou provocar sofrimento a outrem ou que possuímos uma voz interna que nos condena pelos erros e nos impele a ter compaixão. Poderíamos dizer que existe algo que torna os seres humanos melhores e tal coisa é o amor que recebemos daqueles que nos rodeiam. Daria pra apresentar o amor como capacidade sobre a qual não temos nenhum controle e que passa ao outro, independente de palavras ou ações, como uma energia acolhedora e benéfica, algo que só pode transmitir aquele que realmente recebeu tal benefício e o preservou. Ser uma pessoa melhor se traduz em ser alguém que foi mais intensamente amado apesar dos equívocos cometidos por todos os adultos em relação às crianças. Trazer essa bagagem emocional permite a nós uma imunidade diante dos percalços e dificuldades da vida, uma predisposição à felicidade e força vital para resistir ao sofrimento. Uma criança muito amada é um adulto emocionalmente forte.

E assim como toda a matéria é feita de partes muito pequenas e invisíveis, mas que estão unidas e agindo em conjunto, da mesma forma as pessoas não existem desconectadas e as ações de umas interferem nas ações de outras. Sendo assim, por mais que pensemos ser nós mesmos e nada ter a ver com os erros alheios, ou com as fatalidades provocadas supostamente por algumas pessoas, a nossa presença, movimento, pensamentos e ações se refletem no cosmos como elo de uma corrente e por isso precisamos ter a humildade de aceitar que direta ou indiretamente, as situações em que nos vemos envolvidos, os acontecimentos à nossa volta, podem ser reflexo e consequência do modo como os encaramos, pensamos sobre eles, sentimos e interferimos. De maneiras diferentes, a nossa forma de existir atrai ou afasta eventos agradáveis e desagradáveis.


 
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tania orsi vargas
 
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