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«« Pirilampos em noite de lua cheia ««

 
O Feliciano Mau Tempo é um rapaz um tanto ou quanto fora do normal, fala a vizinhança à boca pequena que em noite de lua cheia vagueia pela casa completamente ás escuras com uma rede na mão. Natural de Trás - os - Montes veio morar para o Alentejo de tenra idade, quando o seu pai fugido de um marido ciumento teve que se esconder por estas bandas, trazendo a família a reboque, por cá se instalaram os Mau tempo, sempre se comportaram de modo estranho e singular, para os costumes da região, sua mãe, Ermelinda, uma mulher sisuda,afastava-se das vizinhas, dada a poucas conversas, mantinha-se no recanto do lar, tomando conta do marido o Manuel calceteiro como ficou conhecido, ninguém lhe levava a palma a calcetar as ruas estreitas da vila, mas tinha o grande defeito de se embeiçar pela mulher alheia, e dos dois filhos, um rapaz o nosso Feliciano e uma rapariga sardenta tísica de aspecto, a Matilde, existia ainda uma avó mulher carrancuda mãe do Manuel e que lhe moía o juízo a torto e a direito.
Desta ilustre família só resta o Feliciano todos morreram uns atrás dos outros há quem diga que foi por pirraça quiseram deixar o rapaz abandonado à sua sorte, vá-se lá saber, mas que o rapaz é esquisito lá isso é, sempre sozinho, gosta de ler, escreve poesia e ainda por cima perde horas a fio perdido por esses matagais fora desenhando a natureza, diz quem viu que os desenhos até são jeitosos, mas onde é que isso leva comenta a Genoveva, rapariga mais ou menos para a idade do Feliciano a entrar na casa dos trinta, e em tudo contrario a este, namoradeira, pouco dada ás lide domesticas, mal sabe ler e escrever, porque o tempo que devia ter andando na escola passou-o na maior parte aos ninhos, com os rapazes da vila, dominar as letras na perfeição para quê? Se todos sabem qual vai ser o seu destino, trabalhar no campo, principal actividade da terra ou com um pouco de sorte alguns serão serventes e os mais prendados chegarão a pedreiros, as raparigas essas as que não forem trabalhar a terra encontrarão sustento como criadas de uma qualquer casa de família das muitas que por aqui existem, oram digam-me lá saber ler e escrever com mestria para quê isso lá enche barriga. Resmunga a Genoveva.
Genoveva, quem a conhece sabe o quanto gosta de falar da vida alheia, também pudera a dela é uma monotonia constante.
Aproveitando um dos passeios matinais do Feliciano embrenhou-se pelo carreiro que leva à casa deste e em surdina conseguiu entrar, arregalou o olhar, quando era criança tinha entrado uma meia dúzia de vezes naquela casa, nas alturas em que a mãe do Feliciano estava disposta a ouvir a correria e os risos das crianças, tudo estava igual, imaculada, parecia que tinha acabado de sofrer uma faxina total, nem um único objecto fora do sitio, lá estava o velho baú de madeira onde se gostava de esconder quando jogavam o jogo do esconde esconde, é isso, de repente Genoveva teve a feliz ideia, na próxima noite de lua cheia entra na casa esconde-se dentro do baú, será ela a desvendar o mistério das deambulações pela casa em noites de lua cheia na mais completa escuridão.
Nos dias que se seguiram a pobre rapariga mal conseguia comer, tal a ansiedade, a descoberta tinha um doce sabor ainda mais quando já passaram quase dois anos desde que o rapaz começou com aquele comportamento tão estranho e ninguém sabia o porquê de tal descalabro.
Finalmente noite de lua cheia, pelas dez da noite, tal gato vadio que não sabe o que é obstáculo para atingir os seus propósitos, a rapariga entra sorrateiramente pela porta dos fundos, assim que entrou aos seus ouvidos chegou uma doce melodia, parecia-lhe piano mas pouco entendida nessas coisas ficou na duvida, falou-lhe ao coração essa melodia, enquanto se enfiava dentro do velho baú, imaginou-se uma princesa de conto de fadas e o Feliciano o seu príncipe encantado, a arca essa era o castelo assombrado onde o rei maldito a mantinha cativa. A musica calou-se, passaram-se longos minutos que lhe pareceram anos, Genoveva manteve-se imóvel dentro da arca, chegou a passar pelas brasas, de repente os passos de Feliciano despertaram-na como se de um terramoto se tratasse, a medo levantou a tampa do baú a enorme sala apareceu-lhe fantasmagórica sob os reflexos frios da lua que inundava todo o espaço com a sua luz esbranquiçada, avistou Feliciano imóvel de rede em punho, os braços á altura da cabeça de onde pendia a rede, essa imagem recordou-lhe um soldado em pleno combate, tinha visto isso uma vez no cinema, um soldado de calções que se debateu até morrer numa luta desigual com um leão, pensando bem não era nenhum soldado, o nome era outro , mas que importa isso agora.
Num arremesso Feliciano jogou a rede pelo chão da sala, e caiu sobre si mesmo de joelhos, sem antes fechar as vidraças da enorme janela de sacada virada para nascente, lentamente retirou a rede, milhares de luzinhas elevaram-se por toda a sala, brilhantes de todas as cores, Genoveva, esquecendo-se que tinha entrado sorrateiramente na casa lentamente saiu da arca, seus olhos nunca tinham visto nada com tanta beleza, não sabia se chorava ou ria de felicidade, Feliciano tomou-a pela mão dando a impressão que sabia perfeitamente da sua presença e que não se importava nada com isso.
Passaram longos anos, Genoveva e Feliciano ainda hoje caçam pirilampos nas quentes noites de verão, ele ensinou-lhe tudo o que sabia, ela voltou á escola e amou-o com devoção, neste instante estão os dois de braços abertos cada um com a sua rede dando asas à fantasia.
Por incrível que pareça em metade da vila com as casas num silêncio total iluminadas pela luz da lua, apanham-se pirilampos, passou a ser normal andar no escuro com uma rede na mão por aquelas bandas, as pessoas gostam de poesia e os mais jovens aproveitam os anos escolares para adquirir sabedoria e conhecimento, tudo isto porque um dia uma jovem quase analfabeta meteu na cabeça que haveria de descobrir o que um certo rapaz fazia em noites de lua cheia.



Antónia Ruivo


Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado.

Duas caras da mesma moeda:

Poetamaldito e seu apêndice ´´Zulmira´´
Julia_Soares u...

 
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Antónia Ruivo
 
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Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 28/05/2009 20:34  Atualizado: 28/05/2009 20:34
Colaborador
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Mensagens: 4812
 Re: «« Pirilampos em noite de lua cheia ««
Eis um escrito na boa tradição contista alentejana, que tem, no meu modesto entender, em Manuel da Fonseca o seu expoente máximo. Parabéns.

Abraço.

arfemo


Enviado por Tópico
AnaCoelho
Publicado: 28/05/2009 20:41  Atualizado: 28/05/2009 20:41
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Usuário desde: 09/05/2008
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Mensagens: 11253
 Re: «« Pirilampos em noite de lua cheia ««
Estou a gostar dos teus contos venham mais.

Beijos


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 28/05/2009 21:07  Atualizado: 28/05/2009 21:07
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: «« Pirilampos em noite de lua cheia ««
Muito bem, Antónia, parabéns!
Bj
Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 29/05/2009 10:24  Atualizado: 29/05/2009 10:24
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Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3101
 Re: «« Pirilampos em noite de lua cheia «« p/ alentejana
A força imagética que trazes neste texto, transportou-me a universo paralelo onde ser diferente também é ser gente. Aliás, todos somos diferentes... «mas que importa isso agora»?

Beijo


Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 29/05/2009 10:26  Atualizado: 29/05/2009 10:26
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
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Mensagens: 11076
 Re: «« Pirilampos em noite de lua cheia ««
Antónia,
Gostei do teu conto, logo eu que ando a vender os pirilampos dos meus ,meninos.
Beijinhos na alma
Nanda