Quarta-feira, 25 de março
Para além dos assuntos, à beira de um copo d’água, meu silêncio celebra a ressurreição dos pensamentos, sementes sem invólucros que anseiam germinar a despeito do travo que emperra a verdade à porta dos meus lábios.
Minhas palavras de amor querem cumprir agora o desapego, descansar entre a chuva e a vidraça, entre a pele e o arrepio, entre a lágrima e o sal.
Antes que os fortes me sintam igual, submeto-me a resoluções diárias que culminam sempre em porções pequenas de um grande medo, precursor de um novo momento tão vivido, o abrir e fechar de um coração criança, que nunca saiu da puberdade.
À beira de um copo d’água, uma noite de sono macio segue intacta dentro de uma pílula, sem acreditar em mim.
quarta-feira
hoje não me apetece escrever estou com uma puta de uma azoina que não aguento nem o barulho das teclas a bater – olho para trás e nada vejo que me possa aliviar o stress. olho para a frente e sinto que o drama do sangue nas pontas dos dedos vai ter o mesmo fim. vou acabar fodido comigo – estou parado em frente a um papel imaginário. existe. porque existe um fio que traz corrente eléctrica. e depois dentro desta caixa imensa. que um americano maluco vendeu ao mundo. há uma quantidade de porras interligadas que em faísca uns com os outros acende esta merda toda – o papel fica luminoso e as palavras nascem com um pensamento que afinal mais não são que mãos raivosas a excomungar o mundo – eu também sou uma puta de uma invenção foleira. não de um punhado de dólares imperialistas. mas de um escudo que deveria ser orgulho mas não é caralho nenhum – tenho aqui uma merda de uns bonecos dentro de mim que acendem com a libertação de uma energia que me deram ao nascer. creio que a corrente não é certa. falta um aparelho para manter a corrente contínua com o resto dos astros – estes bonecos com feitios distintos. muitas vezes pegam-se todos à galhetada uns aos outros – são fodidos! uns pensam que escrevem. outros que sabem ler. outros imaginam-se cientistas de régua e esquadro. dizem que inventam mas não vejo futuro no pensar. outros ainda são uns caralhetes alentejanos que não querem fazer coisa nenhuma – para estes. onde houver um chaparro alumiado por um fusível de 220 volts é onde dormem melhor. apenas fodem a cabeça aos outros – quando estes irmãos de fusíveis se incendeiam. bem. nada segura os bichos dos electrões e protões. comem-se uns aos outros – esta bonecada cheia de energia é mais intensa quando acordo fodido. mando tudo para aquela parte. falo sozinho. a barba são quatro naifadas com dois cortes profundos. e até a merda do shampoo tem um cheiro horrível – o dia vai ser do caralho. e de toalha à cinta seco o corpo com a leitura dos primeiros emails. em suma. discuto com todos e a todos digo que são uma bosta – tudo me corre melhor a partir do momento em que a electricidade se transforma em pimenta no cu dos outros. digo cobras e lagartos e viro o mundo de pés para o ar – os sonetos são uma merda. os poemas cheiram mal de tanto amor pegajento. o mar e as ondas enrolam-se na puta da lua prenha. que nunca conseguiu dar à luz a ponta de um corno – para achincalhar esta merda toda. os textos do luso estão todos fodidos – até o jornal regional que compro pela manhã para saber dos mortos da terra está uma cagada. hoje. não morreu chulo nenhum – faço ginástica com os dedos. parto lápis com as orelhas e apetece-me pelo menos dar uma desancada num filho da puta qualquer que passe à porta do meu computador de suíças cumpridas – começo a sentir-me mais mortiço. mando dois cafés expressos para dentro do embrulho e sinto novamente a ira a tomar conta de mim – sinto todos os nervos em curto-circuito. mas chego à conclusão que sem esta merda desta engrenagem não escrevia coisa nenhuma – começo a ficar triste. as palavras cada vez são menos minhas. é mais uma dor que sempre chega quando a energia não é suficiente forte para alimentar as mãos que teclam – é a merda da quarta-feira. o mar está para lá distante. e até as minhas gaivotas estão para a faina – estas. saem no começo da semana e seguem os barcos para dentro do nada. sabem apenas que têm que comer para poderem vir a terra de quando em vez – também eu. saio pela manhã. o livro dos afazeres tem na primeira pagina em letras grandes: ÉS UMA MERDA. MAS TENS QUE CHEGAR AO FIM-DE-SEMANA PARA VER AS TUAS GAIVOTAS.
Poema de quarta-feira
Guardo fantasias bordadas
e alegorias quebradas
numa tarde de domingo.
Tenho perfume de uma camisa
estampada de flores;
Na madrugada,o desfile
secou a derradeira lágrima...
Na quarta-feira,
descanso a alma.
O corpo se alonga
e desmaia num fevereiro
sem alegria.
A quarta-feira,
afoga-se e embala
uma nova folia.
Quarta-feira, 03 de março
Enquanto aguardo o trem do metrô que em boa hora me conduzirá a uma pilha de louças usadas, lembranças recicláveis de um jantar indigesto, sento-me vazia num banco e contemplo a escada rolante que, ao contrário de mim, desce incansavelmente sem fazer ruído. Uma boa hora é de se esperar para muito tarde e nesses momentos de compulsória resignação é que me sinto mais covarde, medo de interiorizar-me além dos limites incômodos da minha consciência... alcanço o fone de ouvido perdido entre os batons e permito-me sonhar...’a uma hora dessas por onde passará seu pensamento, por dentro da minha saia ou pelo firmamento? lá, lá, lá...’ Então, talvez para cumprir alguma anti-história de estranha magnitude, meus olhos encontram um pequeno ramo de flores cujo nome não sei, caído como quem dorme, aos pés de uma lixeira estrangeira e desnaturada. Alguém havia amado e chorado e se desesperado e morrido muitas vezes antes de partir. Ou diariamente nascem flores cujo nome não sei, à beira dos meus olhos sujos. Ou duas crianças apaixonadas se perderam na senda perigosa das primeiras perdas. Ou diariamente nascem flores cujo nome não sei à beira dos meus olhos sujos. O pequeno ramalhete toma-me de antigas conclusões e eu cismo que poderia ter sido minha a culpa pela rejeição mais imperdoável, pelos nãos mais sanguinários, pelas mutações mais dolorosas dos sentidos: abandono o poema que nascia prematuro na letra A da minha agenda, levanto-me num repente. Mas antes que eu o alcance é recolhido pela pá sem escrúpulos do serviço de limpeza. Uma dor moral insinua-se pelo meu corpo adentro, a verdadeira melancolia prostrada ali sabe-se lá por quanto tempo, invocando soberania sobre toda a plataforma, apenas à espera do momento solene em que se apossaria do meu único coração.
O holocausto aconteceu numa quarta-feira
Se bem me lembro,
Deve ter sido pelas seis da tarde.
Cumprimentei o anti-cristo,
Meu velho conhecido
Que vi pela primeira vez.
Vinha armado em demónio,
Com a mania que tinha forquilha.
Se não fosse toda aquela maldade,
Tinha aspecto para ser minha filha.
Primeiro possuiu-me.
Depois enfeitiçou-me.
Lá mais para o fim largou-me,
E eu estava capaz de jurar
Que o holocausto tinha acontecido.
E o que teria sido
Se o holocausto tivesse acontecido?
Nesse dia ficaria aparvalhado,
Pensava noutras coisas,
Alguém do outro lado do mundo
Morria com uma torradeira nos dedos,
Algum mineiro perderia os medos
Numa mina sem fundo.
Mas no dia seguinte,
Acordava sorridente,
Cumprimentava Jesus Cristo,
Comia o pequeno almoço
E tudo seria uma quinta-feira.
Seria como a regeneração
Do divino fígado.
Por mais diabo que lhe meta,
Nasce sempre um bocado fresquinho.
Há quem diga que estou um pouquinho
Viciado nessa religião sem profeta.