Rio
Sai a brisa da fonte
num arrolhar fugidio
percorre a rocha, o monte
e assim, começa a ser rio
Mói e massacra o cascalho
afaga o musgo de leve
esculpe, envolve o entalho
da boca que o poço teve
Escorre em gotas, corrente
na cascata barulhenta
o tempo fica dormente
na margem onde se senta
Abre os braços ao mar
abraça-o ternamente
São imagens a recordar
que ficam na nossa mente!
Felisbela Baião
A sul
Foi no sul dos meus olhos
que depositaste a entrega serena,
a palavra sémen
com que fecundaste o poema.
Vieste acordar-me o mar
marulhando letras adormecidas
há muito
nas minhas entranhas e,
mergulhando,
mesclaste de anil
a concha das mãos
cobertas de manhas.
Ah! Foi no sul da minha nuca
que enfrentaste a guerra solta
dos meus cabelos e, docemente,
murmuraste
a ladainha das sílabas,
suave novelo
das minhas emoções.
Vieste aconchegando
a tua voz nos meus ouvidos
como se a sul me rondasse a alegria
como borboleta dos sentidos
e me estimulasse a magia
do pólen presente nas rimas
dos tempos perdidos.
Foi no sul, no meu sul
que abriste a janela suspensa
no limbo do sonho de carinho
onde marcaste a diferença
quando fizeste do meu colo
o ninho
do nosso amor.
Invicta brisa fria
De janela aberta ao vento norte,
percorre-me uma invicta brisa fria
a pele…convite declinado
de uma emoção
que range
nas junções das portadas.
O sol incendeia os campos
neste “por de mar”
entre os vales
tristes e sós… enquanto
as nuvens escuras
se aproximam
do temporal
das minhas têmporas…
Fecho os olhos e afago-te
a mão invisível:
“Não te preocupes,
há de haver um novo sorriso,
um novo amor à poesia!”
Mas as letras não se conjugam
e a história mareia
na seara
que o verão morreu.
O silêncio entranha-se
como foice obrigatória
de um refrão
que perfura durante horas
as espigas d’oiro.
E brotam poemas nas pétalas
acriançadas
das papoilas
navegando-me
e naufragando-me
na boca.
Fui tão pouca praia
para tão grande oceano…
que transformei os grãos de areia
no rochedo do Adamastor.
Agora posso agigantar todo o meu amor.
Jesus
Vesti-Te do linho branco
que tem o dom da pureza
jamais pensei na tristeza
de Te renegar tanto
foi o medo, foi o medo
Ouvi o galo cantar
e o trote dos cavalos
e Teus olhos a chorar
e rejeitei o abalo
foi o medo, foi o medo
manchei minhas mãos
com os espinhos
que coloquei na Tua cabeça
choraram os pobrezinhos
Tua mãe sofreu de tristeza
Foi o medo, foi o medo
Coloquei-Te então na Cruz
preguei pregos com o martelo
apagou-se no céu a luz
trovejou em nós um flagelo
tive medo, tive tanto medo
PedisTe o perdão por nós
mesmo antes de morrer
a esperança
não ficou só
viesTe para nos defender
tive medo, tive tanto medo
RessuscitasTe ao terceiro dia
conforme diziam as escrituras
com Tuas mãos milagrosas
devolvendo a harmonia
e a fé
Obrigado Senhor, não tenho mais medo!
Marinheiro
Ergo em nuvens perfume a incenso
Escondido naquela solitária madeira
Do tal albergue prazenteiro na beira
Da praia dourada desse mar imenso
E lanço sinais na palavra verdadeira
Para teus olhos, mergulho suspenso
Num amor proibido, de odor intenso
Embriagante qual gesto a vida inteira
Inclino meus lábios em beijos morrentes
Para uma silhueta bailando nas ondas
Tão longe dos abraços que já não sentes
Miragem do marinheiro em luas redondas
Acenando o adeus em frases decrescentes
Veleiro da ausência na história que contas
Letras apenas
Sempre que me tocas com todas
as letras do teu olhar,
soltam-se estrelas-poemas
num céu por inventar
Sempre que acaricias com letras
os fios dos meus cabelos,
criam-se todas as lendas
em sonetos singelos
Sempre que afagas meus lábios
com letras de doce sabor,
nascem versos imaginários
elevando o nosso amor
Sempre que beijas a minha pele
com letras de puro encanto,
doa-se a frase que impele
as mentes ao espanto
Sempre que nos encontramos
nas letras do pensamento
aparece a poesia onde estamos
unidos em sol ternurento
Amo-te nas letras que escrevo
arrumadas em harmonia
onde estamos em relevo
por um caso de analogia
Quero dizer-te meu querido
com as letras do meu coração
que em cada verso diluído
emerge a nossa paixão
Acende-me
É esse olhar que me provoca
E me fascina, desatina o coração
Num segundo deixa-me louca
Noutro deixa-me em reflexão…
São as tuas palavras um desafio
Constante, maravilhoso e estimulante
Muitas das vezes (ai tantas!) arredio
Outras (não poucas) inebriante!
Só tu me viras do avesso
Absorves a minha tristeza
Com esse teu ar travesso
Sobressaltas a minha franqueza
Não quero que fiques sério
Quero a tua gargalhada
Conta-me histórias do teu Império
Como se eu não soubesse nada…
Dá-me o sabor da tua boca safada
Sente o céu que há na minha
E com a volúpia encontrada
Acende o fogo que se adivinha!
Mutismo seletivo
Mutismo seletivo
Mordo este mutismo seletivo de frases inacabadas
nas palmas das minhas mãos
e com cuidado, separo o grito aflito da navalha
acobardada
cortando cada pedaço de cicatriz cravada na solidão
sangram-me os verbos, doem-me as penas,
falta-me o hálito segredado
e fustiga-me esta ternura insone que me agrilhoa o pensamento
desbrava-me
silente
num desencantamento que me invade
mas tu vens, chegas de mansinho num poema,
desces os degraus do viço e enlaças-me
num abraço
inspiro ferozmente a amargura das lágrimas
e sobre as pedras, já gastas, de tão puídas
pelos meus pés,
coloco a missiva dentro da lâmpada
aguardando-te, Aladim na minha previsão,
que passes a tua mão no desejo
e descortines, de vez, a presença do sol
que tão bem conheço nas veias
num tartamudeado rubor
quando a frescura da primavera se levanta,
escondida há tanto tempo nas atípicas monções,
na missão cumprida em meu louvor
sinto-te sobreiro profícuo no teu versejar
atónito, nas sílabas saborosas das folhas
e até na cortiça dos lábios suaves…
magia da lavoura das letras que me fazem
curar o sonho de “Bela Adormecida”
ao picar o dedo na roca da paixão desmedida
sou a terra das frases
o barro das palavras, o húmus das raízes
o sol abrasador ou a chuva de gotas felizes
caindo mudas nas metáforas que digo
que dizes!
Promessa de outono
Combinemos o preâmbulo, pouco ético, entre a chuva e a terra molhada deste outono. Na verdade, todo ele será poético, uma vez que se sente o aroma das madressilvas impregnado do hálito de Pã, enquanto Chronos converte o tempo em fénix renascida. Sabemos que, enquanto houver uma romã, os lábios serão o alvo frágil do mosto proposto por Baco. E que as uvas amadurecem a inquietação no sangue, e os trovões obrigam o céu a relampejar incessantemente perante as letras do nosso dicionário. Tudo o que observamos tem a forma de uma castanha ainda refugiada no seu ouriço, com o receio do contágio das gotículas que caem nas folhas abertas às cores do arco-íris. Também elas caem agora, perante as propostas indecentes de Éolo, murmurando a ladainha do vento que arrepia a alma, trazendo consigo o mesmo olhar e o presságio do doce de abóbora que combate as desilusões espalhadas pelo chão. O único consolo são as vidraças da janela, de olhos marejados pela chuva e encantados com o arrulho das pombas no fio dos telefones, apesar do pranto dos céus. Na certeza, porém, de que o Oráculo da natureza será preservado enquanto as minhas mãos puderem escrever uma única palavra de apreço ao prazer de beber um chocolate quente. Não existe caudal mais lindo e puro do que esse preâmbulo aberto às palavras de um poema por nascer…uma promessa!
Promessas
Raiam promessas nas paredes brancas
e esta incompletude da casa cercada
de tanto crepúsculo, a sede encerrada
qual casulo de palavras vagas, francas
bamboleando a cortina à janela sonhada
num conto intenso pelo vagar das ancas
fechando vontades com todas as trancas
perecíveis num gesto de ternura adiada
e o teto abrindo a clarabóia ao luar
de dentro o melhor surgindo por magia
como chaminé erguida para respirar
divisões concertadas em todo e cada dia
num pouco de céu, num cheiro de mar
à benesse da mudança, à doce empatia