Meti-me numa cápsula do tempo e viajei sem destino. Achei-me no mesmo lugar de sempre, de onde, na verdade, nunca cheguei a partir...
Aquele lugar é refém das minhas memórias e é para lá que fujo em segredo tantas e tantas vezes quando me quero esconder da loucura deste tempo de agora. E vou pelos carreiros que conheço como as minhas próprias mãos. Tanto na ida como na vinda, tenho a companhia sempre pronta e desinteressada dos pardais e dos cucos esquivos, que me seguem lá no alto dos ramos dos pinheiros que me levam pela sombra. Demoro-me com as pequenas coisas que vou encontrando no caminho. Hoje pode ser um formigueiro e eu, sem pressa, a observar as formigas com os carregos maiores do que elas às costas. Ligeiras como se aquilo não lhes pesasse nada!
A velha casa de pedra serve-me de abrigo aquando da trovoada inesperada. Existe lá uma prateleira com livros. São Almanaques Bertrand antigos, já meio desfeitos e aos quais faltam muitas folhas. Arrancaram-se com o uso demasiado. Mas, nas que lhes restam, há sempre qualquer coisa nova que ainda não tinha visto nem lido. Um hieróglifo comprimido por descobrir ou uma anedota que já li uma data de vezes, mas que me volta a fazer sorrir. Uma quadra ou uma simples frase. Qualquer coisa.
Vou até ao algar e entro na mina escura, a ver até onde ela vai dar… nem três metros e um barranco a impedir-me de ir. Mais adiante, á sombra do velho abrunheiro ao fundo da quelhada grande, lá está o meu pai deitado numa saca a dormir a sesta. Há joaninhas que se misturam com morangos selvagens, salpicando de vermelho o ervascal abandonado por onde me entretenho a brincar enquanto a minha mãe trata da rega dos feijoeiros ali ao lado. Pela noitinha, de volta a casa, eu e os cabritos saltitamos contentes pelos muros adiante ou não fossemos todos, crianças!
É dia da matança do porco. Levanto-me mais cedo que o costume e corro para o mais longe que posso. Sento-me numa pedra, meto os dedos nos ouvidos porque não quero ouvir os guinchos do pobre animal. Estou por ali um pedaço... depois volto. E eu a adorar toda aquela azáfama em torno do animal morto e já esquecida do seu sofrimento. Porque é, afinal, normal e sem outro remédio.. E depois havia os torresmos do almoço com batatas cozidas com grelos de nabo e sangue cozido esfarelado por cima. O arroz doce da sobremesa…
Ao serão, um pau aguçado na ponta e pregado a uma tábua onde os pés a segurarem, um pedaço de carne espetada e toca a migar miudinho com a faca bem afiada, para as chouriças.
Duas ou três gamelas cheias de carne migada e os temperos pela mão certeira da mesma que lhe aparou o sangue ao golpe na garganta a mexer, a mexer, a mexer com a colher de pau para não coalhar. De maneira que, ela a deitar duas mãos cheias de sal, umas colheradas de colorau, um pedacito de cominhos...
Um outro serão mais quente e o canto dos grilos a cortar o silêncio. Um petromax na mão alumia-nos o caminho e vamos ali adiante à eira, ajudar a prima Laurinda à debulha do milho na casita. E outro candeeiro pendurado no barrote e as espigas do milho a verem-se tão bem. Eu a ajudar a descasularos grãos que ficavam nos casulos macios.
De tamancos com sola de pau, sobe ligeira a escada encostada aos ramos da oliveira grande do pomar. A mãe, aflita, chama-a. Mas ela, teimosa, finge que não ouve e sobe cada vez mais depressa. Sobe até ao fim, até ao último banço da escada comprida de madeira, armada, porque a azeitona em tempo de se apanhar.
A fogueira crepitava e erguia labaredas altas, tal como ela gostava. Sentadas no bordo, de mãos e pés esticados em direcção ao lume, riamos despreocupadas. Talvez o nosso riso se devesse apenas ao conforto de ver aquele lume a arder ali mesmo à nossa frente, a aquecer-nos por fora e por dentro. Nunca mais comi uma sopa de couves, aferventada, tão saborosa como aquela... Ao lado, num prato poisado no bordo, um naco de broa com toucinho cozido no caldo da sopa e uma malga de vinho para consolar. E eu, pequena, a tomar-lhe o gosto e a fazer: “Ah…!”(e foi um caso sério para te tirar o vício...) a minha mãe a dizer mais tarde e eu a não me lembrar de nada disso já...
Noutro dia, no telhado da mesma casa, sentadas nas lajes aquecidas pelo sol de Março, pedia-me que lhe enfiasse as agulhas com linha preta porque toda sua roupa era negra, de viúva e os seus olhos cor de mar rasavam-se de água e não a deixavam vislumbrar o buraco minúsculo da agulha. Estava sempre a coser qualquer coisa, ou a pregar um colchete ou uma mola que se haviam despregado, enquanto me ia contando histórias de lobos e de crianças no alto da serra, a tomarem conta do rebanho sozinhas.
Cleo