Poemas : 

BALADA DE UM VELHO ÓRFÃO

 
para a minha mãe, therezinha.

"Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração
Daquela que em vida foi
Cruz, âncora e coração."

- Roubado de uma canção do Mario Quintana, meu amigo -

não havia vida em teus olhos lindos
teu sorriso
se recusou a iluminar os meus dias
no entanto o coração pulsava
aprendi a ver no aparelho que te mantinha viva
donato
meu amigo padre
mesmo me sabendo ateu
entrou na unidade de terapia intensiva
olhou nos meus olhos num gesto de pai
foi direto:
- ela não pode engolir a hóstia que eu trouxe
(minha mãe era profundamente católica)
eu tentei abrir os olhos dela
que vida já não tinham
o bom padre despejou suas palavras:
- mesmo ateu você pode comungar. foi seminarista e meu aluno.

eu disse que sim
ele me fez uma cruz na testa
trazia nos ombros a estola roxa
como se num minuto me perdoasse de tantos pecados:
- eis aqui o cordeiro de deus. eis aquele que tira o pecado do mundo - me disse o sacerdote, estendendo a hóstia.
engoli a coisa branca
dei um beijo na testa do padre
- ela está dormindo - eu disse pra ele
fui ao bar em frente ao hospital
bebi duas doses e fumei um cigarro
meia hora depois o médico
com idade pra ser meu filho bateu em meu ombro
- sua mãe morreu...

(donato, nosso amigo de família, de graça,nos seus noventa anos, durante o velório, celebrou a missa de corpo presente. usava os paramentos litúrgicos roxos, obedecendo ao rito fúnebre. eu o ajudei na leitura,como razoável aluno dele de latim no seminário.engasguei um pouco, quando ele recitou o dia de ira, em latim, mandando a alma de minha mãe para o céu. é que eu já não lembrava mais da igreja. desculpe, mãe.)

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júlio


Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 04/01/2011 07:29  Atualizado: 04/01/2011 07:29
 Re: BALADA DE UM VELHO ÓRFÃO
Caro poeta,
gostei muito do seu poema, é um tema que me toca, porque minha mãe faleceu de mão dada comigo. E custa sempre! Cada um vive essa perda à sua maneira, mas o sentimento de perda é o mesmo.
Usufruí e cumprimento-o por isso!
Célia Gil