Poemas : 

o rito da maçã

 



A valsa anunciada
pelo instrumento do pedreiro.
À lua, uma valsa de diácono.
A brancura da luz, atinge
o incêndio da meia-noite.

Como se soletra a pedra?
Obra-prima.
Perfeição. 
Mulher.
Criação.

A mulher vai no interior. 
Segue o veio da terra.
Mulher que leva na memória a viagem.
Guardando a semente da fruta.
Para à meia-noite, nascer maçã.






Zita Viegas















 
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atizviegas68
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/04/2020 12:18  Atualizado: 19/04/2020 12:18
 Re: o rito da maçã
Uma linda poesia aplica em lindos e belos sentidos, maravilha


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/04/2020 15:35  Atualizado: 19/04/2020 15:35
 Re: o rito da maçã
Ritos de dança, numa aliança fundida, em que a mulher, leva de vencida, toda esta encenação, corte bem conseguida, num memorial belo, que a define, como sedutora.

Fernando.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 20/04/2020 15:08  Atualizado: 20/04/2020 23:04
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1946
 Re: o rito da maçã
A primeira estrofe é um tratado de metáforas e de imagens com significados possíveis, alternando o suave com o áspero, o claro com o escuro.
Reler, neste caso (não é novidade quando nos presenteias, ou seja, te tornas presente) é um assombro. Agradeço, desde já, à omnisciente internet a possibilidade de pesquisar as possibilidades que nos propões.
Entramos, então, com uma orquestra conduzida por um “...pedreiro...” a tocar uma “...valsa...”. Em vez de batuta ele usa o seu “...instrumento...”. A primeira imagem que me surge é dum tipo das obras, a espalhar cimento (ou massa) por um conjunto de engravatadinhos, armados dos seus instrumentos reluzentes. Teria a mesma impressão se fosse um violinista a rebocar uma parede.
Mas, a mesma valsa, feita para casamentos e encontros de alta-sociedade (nos dias de hoje), não é uma qualquer, é “...de diácono...”. E pronto. Mais um enigma, pelo menos para mim que tenho dois pés esquerdos de chumbo. Aqui a palavra chave é diácono, que por muitas referências religiosas que me provoque, não consigo entender a uma primeira leitura.
Pior, o que pode um pedreiro ter a ver com o segundo? Depois é que li (obrigado, mais uma vez) que a trolha (ou colher de pedreiro) em certos circuitos, simboliza a uniformização dos direitos de todos e o papel do diácono, nas sociedades tipicamente católicas, é de promover a igualdade, ajudando quem tem menos meios.
A lua (sobretudo a cheia) antes do advento da luz elétrica (e para quem não tinha dinheiro para velas, ou óleo de cachalote) era a luz da “...meia-noite...”, de todos, portanto. Branca.
Imaginando, então, que a igualdade é a introdução do “...rito...” acabamos com o incêndio, que a meio da noite só pode ser o breu, ou o silêncio, com algo que o interrompe, subentendido antes, mas que muda, porque o poema tem mais estrofes.

Aqui, o título que me tinha levado ao vislumbre da mitologia judaico-cristã, sobressalta-me.
Adão perante Eva, Eva ante Adão, todo um conjunto de emoções, amores, tesões, desejos, mortes, penitência, tudo em volta do castigo, da cultura do medo como organização do caos de que somos capazes enquanto bichos sem regras nem voz.
O preconceito, tantas vezes (para mim, “quase” sempre) errado e injusto, tornado conceito através da estatística (quantos homens não caíram, caem e cairão em tentação), erige quando as mulheres também o fazem!
(por momentos inverto as escrituras, e é ele quem lhe dá a maçã. Ela, quem come)
Neste título o fruto faz parte do rito, não a mão.

A segunda estrofe tem o dom de parecer “atacar” a primeira.
A pedra mostra-nos um pedreiro diferente.
Como as palavras têm a mesma raiz, a primeira soa a instrumento da segunda, ou pelo menos a matéria que ele trabalha. Das duas, uma, ou é um calceteiro (torna navegável a lama), profissão nobre, ou escultor.
“.... Como se soletra a pedra?...”
Engraçada a forma de trabalhar a pedra, soletrando. Será possível soletrar a pedra? Ou antes a palavra “pedra”. O sujeito poético ganha corpo ao interrogar(-se). Será como o linguísta que parte a palavra em letras? Acho o verso magnífico.
Mantendo o discurso num feminino que se generaliza, o poema mantém-se fiel a si mesmo e responde com “...Obra-prima.\Perfeição.\Mulher.\Criação...”. Todas palavras no género feminino.
Acentua assim o enredo.

A terceira continua, assim, a defesa da mulher, da fémea, sem nunca entrar no feminismo. O tom é elogioso, mas digamos que, há que contar com o mérito e nele, há justiça.
Há um verso nela que me cativa muito: “... mulher que leva na memória a viagem...” tem um quê de desconcertante, universal e invulgar, simultaneamente.
A viagem, ou a passagem, tem um continuum descontinuo, que entra na mitologia humana através do hereditário e da morte, inequivocamente.
E a mulher, com todos os nomes que tem (amante, namorada, irmã, esposa, tia, avó, prima e sobretudo mãe) tem um papel muito diferente de qualquer homem.

Obrigado Zita
Pelo regresso e pelo poema


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/04/2020 12:52  Atualizado: 21/04/2020 20:55
 Re: o rito da maçã
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Olá, Zita.

Gostei muito do poema, com um tom mais solene do que o habitual.
Apesar da ótima análise do mestre Beça, há um ou outro pormenor que acho útil acrescentar.

A leitura que fiz teve como ponto de partida duas palavras que associei ao universo da maçonaria (aliás, a "maçã" do título talvez tenha sido escolhida como feminino de mação/maçom, não sei).
Essas duas palavras foram pedreiro e diácono, que são designações de cargos ou etapas da organização maçónica.
Adotando esta linha de interpretação, li a valsa inicial como a ação do grande pedreiro, a Divindade, que usa os seus instrumentos para a criação do universo, em especial, o compasso que -- como na pintura do "Ancião dos Dias", de William Blake -- valseja pelo cosmos, descrevendo os círculos com que circunscreve a Criatura.
Desse ponto de vista, a maçã pode ser encarada também como o desafio do Homem ao poder divino (lembremo-nos da alegoria bíblica do Génesis). E, assim sendo, o ritual da maçã seria o segredo reservado aos Iniciados, aos Homens e sobretudo às Mulheres -- essas "degredadas filhas de Eva" -- que contêm dentro de si a semente para a desobediência e a emancipação, com todos os riscos e receios que essa ousadia implica.

When God commanded this hand to write
In the studious hours of deep midnight,
He told me the writing I wrote should prove
The bane of all that on Earth I love.

("The Grey Monk", W. Blake)