Poemas : 

Caim

 
Chamo-me Caim,
um nome inesperado, escolhido pelos pais,
que não rima com serra, mas que a condenação confirmou.

Tenho Parkinson desde os quarenta e cinco anos.
Vivo sozinho desde os catorze.
Morreram-me todos num incêndio.

Lembro-me bem:
a minha irmã Lúcia a arder encostada ao muro,
com um rosto de espanto e dor, agarrada ao peluche
que os primos trouxeram de França;
o meu irmãozinho Luís a chorar no berço,
sem ninguém para o acudir;
a avó a balbuciar coisas da infância,
sem entender o que acontecia;
o pai desorientado a salvar as ovelhas
na vez da família;
a mãe a olhar para mim com uma lágrima
que o fogo não secou.

Visito-os todos os dias no cemitério, até que o corpo permita.
Levo
rosas
gerânios
crisântemos
lírios
para enfeitar as campas cruas.

Pedra. Sombra. Nada.
É tudo o que ouço quando falo com eles.

Mas sempre que falo com eles,
pássaros extraordinários voam do meu peito:
estorninhos de asas ruivas, melros azuis tristes,
chapins-reais sem trono, pardais de bico gasto,
corvos que declamam ao vento, andorinhas presas aos dias ímpares,
pombos que rezam em latim, garças condenadas ao silêncio,
perdizes que rodam em círculos, tentilhões perdidos,
milhafres que colecionam chaves, corujas que escondem livros nos telhados,
rouxinóis mudos.

Não casei, nunca tive pretendentes,
nem nunca pretendi ninguém.
A serra é demasiado árida para que o amor sobreviva.
Apenas os pinheiros, a custo, guardam seiva para respirar.

Guardo no bolso um livro antigo,
cheio de palavras que já não se usam:
ventriloquia, taumaturgia, soteriologia.
O livro chama-se Atlas das Palavras Mortas,
um nefando, quimérico volume
que respira como um esquife aberto sobre a mesa.

Toda a minha vida é um daguerreótipo zimbórico,
um morfema inútil, como diria o Atlas das Palavras Mortas.

O Atlas também diz que as palavras, tal como as pessoas,
morrem por não serem respiradas.

Ninguém respira basilisco,
ninguém respira heteróclito,
ninguém respira ictiófago.
Apenas palavras mortas.

Como eu.
Também eu morri no incêndio.
O Parkinson é a derradeira condenação que o fogo deixou.
O médico diz que não, mas eu sei o que vai cá dentro.

Dentro de mim todas as palavras estão mortas.
A única que ainda respira,
e que talvez tenha matado todas as outras,
é a palavra
saudade.

 
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Levant
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Enviado por Tópico
AlexandreCosta
Publicado: 09/09/2025 16:52  Atualizado: 09/09/2025 16:52
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Online!
 Re: Caim
sigo atentamente as sequelas.
A intensidade tem sido em crescendo, como que a crescer cada vez mais fundo!

Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 09/09/2025 18:48  Atualizado: 09/09/2025 18:48
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 Re: Caim
Olá.

Leio-te que nem a fome quando encontra o que comer.
Aprecio bastante.
Grata!

Abraço