Alguns gostam de poesia (de Wislawa Szymborska)
Desejo tudo de bom para todos os Luso-Poetas.
Mas sobretudo desejo o cotidiano milagre da poesia.
O meu presente de Natal é esse poema de Wislawa Szymborska “Alguns gostam de poesia”.
Idealmente abraço e agradeço todos os/as poetas deste site por esse mar de poesia.
Manuela
Alguns gostam de poesia
Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.
Wislawa Szymborska
(tradução de Regina Przybycien)
Auto-retrato (Júlio Saraiva)
Faz três anos que o inesquecível poeta Júlio Saraiva nos deixou.
Quero relembrá-lo, postando aqui um poema seu.
Ciao Júlio, onde quer que você esteja,
Manuela
auto-retrato
só por acumular erros antigos
já nem dou conta que a velhice é fato
ao longe avisto amadas e amigos
todos sorrindo no mesmo retrato
não temo a morte nem temo castigos
vou procurando manter-me sensato
planto maçãs onde nasciam figos
se hoje ressuscito amanhã me mato
torto é o meu andar como este soneto
pouco se me dá se é de pé quebrado
a linha reta transformei em arco
não quero regras nem branco no preto
sou absoluto não troco de lado
e sigo só por conta do meu barco
Sombras (Victor Motta)
SOMBRAS
E, FEZ-SE O SILÊNCIO EM MEU QUARTO;
DO FUNDO DA NOITE VIERAM TREVAS.
A MEU LADO, SUAVE PERFUME MARCAVA
TUA PRESENÇA EM MIL PRESENÇAS,
MAS TU NÃO ESTAVAS.
O CALOR TERNO QUE ME ENVOLVIA
NÃO VINHA DE TEU CORPO
TANTAS VEZES MEU.
O HÁLITO QUE ME ACARICIAVA
O PEITO, TÃO PRÓXIMO,
TÃO ÍNTIMO,
NÃO TINHA A AUTENTICIDADE
DO TEU BEIJO.
E, EU PENSAVA NA NOITE.
VINHA ROLANDO DO PASSADO
O CLAMOR DE UMA PRESENÇA
USURPADA.
E, EU PENSAVA NA NOITE.
ATÉ AONDE TUA PRESENÇA
ME ALCANÇARIA?
QUANTOS CORPOS IDENTIFICARIA
AO TEU, SEM TE ENCONTRAR?
E MINHA MÃO DESLIZAVA SUAVE
PELO DORSO NÚ, QUE NÃO ERA
O TEU.
DENTRO DO SILÊNCIO DE MEU QUARTO,
PERDIDO NO FUNDO DA NOITE
QUE ERAM TREVAS.
Autor: Victor Motta
Blog: cariucho.wordpress.com
FIM DE FESTA (Victor Motta)
Fim de festa
Louca confusão!
É o final da festa.
Pontas de cigarro
pelo chão,
marcam a realidade
do gosto amargo
pelo sarro,
que ficou na boca,
do cigarro.
Um vazio imenso
ao ambiente empresta,
a presença do arrependimento.
Foram risos,
foi música,
foi farsa.
Busca infeliz de um nada,
estampada, agora,
nos olhos cansados,
descrentes e perdidos.
Copos derramados,
paredes marcadas,
por mãos suadas.
Tudo já é passado.
Alegria-mulher que invadiu,
motivadora, minha solidão.
E nada ficou,
nada de profundo,
de definitivo.
Nada que valesse a pena,
apenas um passo
a mais,
na busca do ego
do eu interior,
que não conhecemos.
Século da cibernética,
das máquinas infernais,
computadores,
robôs,
órgãos artificiais.
Homem-mecânico
do século vinte.
Tudo foi pesado,
balanceado,
meticulosamente dosado!
Para que?
Para nada!
Se teu coração vai mal,
nada de anormal,
terás um novo,
a pulsar vigoroso,
injetando sangue
em teus tecidos.
Genial!
E teu sistema nervoso,
teu cérebro,
tua consciência,
tua vivência
anterior?
Século da genética,
da potência energética.
Situação patética,
o vazio da alma,
no vazio da sala,
que me embala
em mil pensamentos,
em arrependimentos,
que são angustias.
(1967)
Autor: Victor Motta
Blog: http://cariucho.wordpress.com/
Respostas (Victor Motta)
RESPOSTAS
POR QUE BUSCAR A LUCIDEZ
FRIA E LINEAR DO RACIOCÍNIO PURO?
HAVERÁ LUCIDEZ NA BRISA QUE SOPRA
E CASTIGA MEU CORPO CANSADO?
E, POR QUE FOSTE, ASSIM COMO A BRISA,
ME FUSTIGAR, MORNA E TERNA,
A ESPERANÇA DE MEUS SONHOS?
POR QUE SER LÚCIDO SE A LUCIDEZ
ESTÁ EM TUDO QUE NOS CERCA?
NO VENTO,NAS ÁRVORES, NO SOL
QUE DESCE AGORA ATRÁS DA LINHA
DO HORIZONTE QUE NOS SEPARA.
QUERO FICAR ASSIM, EMBRIAGADO
NA SENSAÇÃO DE ESTAR CONTIGO,
NOS CAMINHOS QUE NUNCA PERCORRI.
OLHAR COM TEUS OLHOS E VER DENTRO
DOS MEUS AS MESMAS PAISAGENS
QUE JAMAIS NOTEI OU SENTI.
PERCORRER COM TEUS SENTIDOS
TODA A CERTEZA DA FELICIDADE.
PELA PRIMEIRA VEZ ME RECONHEÇO
TRANQUILO, A OLHAR EM FRENTE
O CAMINHO ABERTO PARA A VIDA.
TODOS OS FANTASMAS QUE CRIEI
E ME ATORMENTAVAM NAS SOMBRAS
NÃO MAIS HABITAM MEUS CASTELOS.
COMO TE DIZER TUDO ISSO?
COMO TE CONDUZIR PELA MÃO
E POR TI SER CONDUZIDO?
COMO REACENDER DAS CINZAS
TUDO O QUE DEIXEI APAGAR?
NESSA BUSCA, AGORA EU SEI,
QUE SÓ EM TI ESTÁ MINHA RESPOSTA.
Autor: Victor Motta
Victormotta's Blog
http://cariucho.wordpress.com/
AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS (Wislawa Szymborska)
AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS
Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.
Autor: Wislawa Szymborska
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves
Nada acontece duas vezes (Wislawa Szymborska)
Nada acontece duas vezes (Nic dwa razy)
Nada acontece duas vezes
e nem acontecerá. Por este motivo
nasceremos sem prática
e morreremos sem rotina.
Mesmo que fossemos os mais estúpidos
alunos do mundo na escola,
não vamos repetir
nenhum inverno, nenhum verão.
Nenhum dia se repete,
não há duas noites iguais,
dois beijos do mesmo jeito,
duas mesmas trocas de olhar.
Ontem, que alguém pronunciou
teu nome alto perto de mim,
foi como se uma rosa me tivessem
atirado por uma janela aberta.
Hoje, que estamos juntos,
virei o rosto para a parede.
Rosa? Como é uma rosa?
É uma flor? Talvez uma pedra?
Por que tu, hora ruim,
te confundes com um medo desnecessário?
Se és – então tens de passar.
Se passarás – então será bela.
Sorridentes, abraçados,
tentaremos buscar um acordo,
mesmo que sejamos diferentes
como dois pingos de água limpa.
Autor: Wisława Szymborska
Trad. Tiago Halewicz
A COLHEITA (Victor Motta)
A COLHEITA
UM RELÂMPAGO
AZUL DE ILUSÃO
RISCOU, NO NEGRO
DE UM CÉU DE DÚVIDAS,
O BRANCO DE SEU NOME…
AFAGO
DE NUVENS,
CARÍCIAS,
DERRAMADAS
EM GRANDES GOTAS,
QUE CRESCERAM
E INUNDARAM A VIDA.
ONDA DE TERNURA
TÃO PURA
TÃO QUERIDA!
MAS, QUANDO O SOL
BRILHOU NO HORIZONTE
AS ÁGUAS
TINHAM LAVADO A TERRA,
E NÃO MAIS VINHAM
DO ALTO ROLANDO,
OS RISOS DAS MÃOS
QUE PLANTARAM AS SEMENTES
DAS JURAS
DO AMOR-ETERNO.
E A TERRA LAVADA
SECOU AO SOL,
PARTIU-SE,
PEDAÇO-POR-PEDAÇO,
DESFAZENDO-SE
A ILUSÃO-ENGANO,
PASSO-A-PASSO
NO CAMINHO
DE UM OUTRO ANO.
Autor: Victor Motta
Autor: Victor Motta
Blog: cariucho.wordpress.com
Amor à primeira vista (Wislawa Szymborska)
Amor à primeira vista
Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?
Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.
Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo ao acordar desvaneceu.
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
Autor: Wislawa Szymborska
(tradução de Júlio Sousa Gomes)
NOITE DE UM INVERNO (Victor Motta)
NOITE DE UM INVERNO
DE REPENTE, SINTO QUE ESTOU TRISTE.
TRISTE PELO QUE SOU,
TRISTE POR TUDO QUE NÃO FUI.
MAS, NÃO ME ABORRECE
ESSA TRISTEZA, QUE VEM
E QUE FLUI ATRAVÉS
DO CINZA-AZULADO DA FUMAÇA
DO CIGARRO, PROJETADA NO TETO
MAL PINTADO DE MEU QUARTO.
O SILÊNCIO AMIGO QUE HABITA
MEU APARTAMENTO
DIVIDE COMIGO O FRIO DA NOITE,
QUE TAMBÉM SE VAI.
PENSO EM VOLTAR, PENSO EM PARTIR,
EM ESTAR CONTIGO,
EM DIVIDIR ESSA TRISTEZA
A DOIS…
QUE GRITA DENTRO DE MIM,
DENTRO DO QUARTO QUIETO,
FRIO, DE AR VICIADO
DE TETO MAL PINTADO.
VEJO AS MARCAS INCERTAS
DO PINCEL,
COMO A ARRANHAREM
TAMBÉM DENTRO DE MIM
A SAUDADE DO QUE ERA
E A ANSIEDADE DO QUE SERÁ.
FECHO OS OLHOS,
MOLHADOS
E PENSO NUM POEMA QUE FARIA,
SE MEUS OLHOS MOLHADOS
NÃO ESTIVESSEM CANSADOS,
FECHADOS,
TENTANDO ESQUECER
ESSA TRISTEZA….
Autor: Victor Motta
Victormotta's Blog
http://cariucho.wordpress.com/