NO MEU SONO
No meu sono há cães que sonham
e choram encostados à poltrona verde
de uma sala antiga,
há a minha própria foto
em campa rasa
que nem sequer tinha sido aquela que eu gostava
mas precisamente a outra
em que estou com ar de parva.
No meu sono
há gatos enroscados ao longo das paredes
por todos os lugares onde habito,
e histéricas gargalhadas
pelas ruas onde passo.
No meu sono há génios.
Génios mutilados de alfazema,
sobreviventes ao massacre.
No meu sono há crianças paridas
e perdidas,
desdentadas,
enfermas
ao colo da vida,
por vezes também há meninos e meninas
felizes,
elas usam tranças com laços cor de rosa,
eles jardineiras de ganga…
No meu sono há inquietações,
alucinações,
há órfãos de todas as classes.
Encostado ao meu sono
há sempre um cão que chora
um cão que sonha.
© Célia Moura, a publicar “Terra De Lavra”
São para ti
São para ti
estes risos, rodopios que provoco
à raiz do sangue
São de ti meus dias de amoras silvestres
porque os outros urge torná-los doces…
Os olhos que trago, esses tentam fotografar
no tempo teu rosto
minha audição desperta a essa tua voz
que guardo e degusto
como um vinho de preciosa casta
Por ti
é esta Fénix que trago ao peito como um filho
e me agarra no vestido…
São para ti
todos os poemas -eu que sou uma aprendiz de qualquer coisa
que não sei ou não consinto – mas continuo a plantar árvores, flores
e insónias,
e nunca saberás que são um pouco de firmamento,
tão imperfeito quanto as margens do meu rio.
São para ti
as águas das chuvas que alimentam
todas as palavras que te não digo,
tal como o sorriso das flores em festa
e o cântico dos rouxinóis pelas manhã,
mas aí eu te grito meu Irmão
inaugurando dias novos
beliscando, brincando, dançado contigo
bem no epicentro do precipício,
novo ciclo.
© Célia Moura – A publicar “Terra De Lavra”
Quando te deitares comigo
Quando te deitares comigo
não pises as camélias
que trago no olhar
e me afagam a púbis
neste vale encantado
de luxúria
entre lençóis,
nem beijes a nudez
do meu silêncio.
É tarde meu amor,
tão tarde.
Peço-te
que teu cálice transborde,
enlouquecidamente
a saudade
que me morde as entranhas,
enquanto eu…
…eu apenas trago corais nos sentidos
e asas nos pés.
© Célia Moura – (a publicar) “No Hálito de Afrodite"
Dia Internacional Da Mulher
No dia em que a Mulher se considerar digna de ser amada, não pelo seu aspecto físico, não para agradar a ninguém que não seja a ela mesma e se valorizar mais a nível espiritual, social e laboral, nesse dia em que lutar afincadamente pelo que é e não pelo que aparenta ser, respeito será para ela terreno firme, ainda que continue a caminhar de saltos altos na sua feminilidade.
Célia Moura, 08.III.2016
As Mães Nunca Morrem
Não,
As Mães nunca morrem!
Mãe é Luz acesa
Na imensa escuridão da noite,
É vida primeira
Na nossa vida,
Bandeira de Amor hasteada
Em todos os palcos, prantos e sorrisos
De nós.
Mãe,
É pele primeira, é sangue, é cordão umbilical
É grito de dor e alegria maior,
Sublimação das esferas,
Deusa de todas as quimeras!
Mãe,
Poderá ser primeira e derradeira palavra.
É fragata em alto mar,
Sobrevivente,
A todas as preces.
Ainda que se despedindo
Em seu último fõlego,
Mãe não parte!
As Mães nunca morrem!
Sempre no Inverno, na Primavera, no Verão e no Outono
Elas estarão acolhendo seus filhos pela mão
Plantando flores diversas em seus peitos,
Sussurrando sábios conselhos
Na voz da maresia,
Em cada gaivota que passa.
Mãe,
É, e será sempre teu cais de silêncio
Tuas mãos entrelaçadas na berma da Ternura
Desafiando o Tempo.
Elas ficam do outro lado,
Fiando memórias,
Tecendo a eternidade,
Aguardando-nos.
© Célia Moura – (A publicar)
Mulher
MULHER
Repouso na ternura dos teus braços,
Mulher
E tudo em ti é púrpura
Longínquo
Amor, dor, poente ou nascente
Luz sem fim
Luz de ti.
Repouso na colina
Dos teus seios
Que me lembram minha Mãe,
Ó mulher que inflamas e esqueces qualquer dor!
Repouso todas as lembranças em teu ventre de açucenas brancas
És minha Virgem Santíssima,
Mas perdoai-me Senhor, és a minha Mulher digníssima
A mãe, a amiga, a amante, a companheira
A chama acesa
A canção mais triste
O meu maior tormento
Meu alento…
Ai Mulher
Meu cansaço não é teu repouso!
Teu repouso pertence a um reino mais distante.
Pertence à essência maior que de teu ventre brota
E eu não sei
Nem entendo.
Pertence aos montes e às planícies quando lhes sorris
E aos pardais que saltitando vão labutando em teu redor
Meu amor.
Teu segredo.
Teu repouso
Mulher
Pertence às eras mais distantes…
Às Tágides
E às sereias
Que só Camões
Sabia evocar!
…Ao piano e aos acordes de guitarra entre a tua dolorida voz
Quando eu te permitia com orgulho cantar
Para toda a gente
Meu amor.
Hoje, mais livre que eu
És tu quem repousas no meu ombro quando regressas a casa
Tão exausta, tão só
Quase finda de ti
Ainda assim sorridente
Ainda assim cantando, com as lágrimas escorrendo
Pelo teu rosto de marfim
Adormecendo nossos filhos
Mulher.
És o meu,
O nosso alicerce, bem firme
A coluna de mármore rosado entre
Todos os temporais.
E, o meu repouso já não é o teu repouso,
Mas ainda é a ternura dos teus braços
Que me elevam ao êxtase maior da sensualidade
De um cântico de sereia.
Ai mulher!
Fosse eu escultor dos tempos, de todo alento ou desalento
E tu serias minha única contemplação
Além da Via Láctea
Consagração plena, pura, divina
Para toda a Eternidade
Tão pura, tão púrpura de ti!
Mulher Amada!
© Célia Moura
Ainda hoje resplandeces
Ainda hoje resplandeces
Consolação bendita
Estremecendo Luz
Entre os cardos.
E, faminta exalto
Tua justiça
Ó Lei sublime talhada em alva
Num baptismo a transbordar inflamada graça!
Ainda hoje,
No Jardim do firmamento
Com a agonia gemendo entre as mãos
Te beijei.
E, no deleite de todas as fontes me saciei
De magnificência....
Entrelacei teu odor nos cabelos
E fui dançar,
Rebolar a aura no areal
Do esquecimento,
Espumando sal...
Sim, não cessei de dançar
Nas mãos do temporal
Só para te anunciar vestida de renúncia
Insubmissão rasgada
Oferenda sacra
Aos profetas do mar.
© Célia Moura, in "Enquanto Sangram As Rosas..."
CATIVO
Que não se percam teus braços
Em mim
Pois nós somos a antítese
De tudo que é normal e feliz.
Um de nós é lume
O outro é gelo que só machado quebra
Ou fogo poderá consumir,
E que isso não suceda,
Que nenhum lume queime tua paz,
Teu silêncio, teu morno sorriso…
Se fôssemos lume
E nos devorássemos paixão
Na cativa noite
Ainda que as lágrimas rodopiassem
O bailado dos ausentes,
Talvez a insónia não me visitasse assim,
Sempre tão contente,
Quem sabe ainda pudéssemos
Ser normais e felizes…
Mas tu olhas-me e já não me vês,
A venda que colocaste é opaca
E o meu toque um desconhecido sussurro
Que sentes grito imundo
Nesse teu reino de silêncio,
Então
Que se não percam mais em mim
Os teus olhos,
Digo-te adeus meu amor,
Parto de nós
Como uma mariposa louca.
© Célia Moura – A publicar “No hálito de Afrodite”
Exílios
Exílios
Que o teu sorriso me prenda
A este lugar incauto
Cravejado de olhares famintos
E prevaleça intacto
No semblante já exausto das ruas
Que minhas mãos afagam
Dignidade de ti
Entrelaçando memórias (in)certas
Exiladas
No jardim da espera.
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© Célia Moura (A publicar)
A Sophia de Mello Breyner
Aquela madrugada que irrompeu em nós,
*“dia inicial e primeiro”,
Esses ventos anunciando germinação
Aquela madrugada em que das cinzas renascemos
Sophia,
Repousa-me na garganta em estilhaços,
Aquele hino que ao colo do meu Pai
Há décadas ansiado
Sorrindo cantarolei,
Aqueles belos cravos vermelhos,
A transbordar o sangue fervilhante
De mim
Hoje são farpas rasgando-me as entranhas
Toda a quimera que inventei.
Aquela madrugada algures já perdida,
É como um denso nevoeiro
Onde ouço o grito da fome
Do meu Irmão
A sussurrar clemência pelo chão,
Passa por ele tanto capitalista
Mas nenhum lhe estende a mão.
Cegueira instalada e brutal,
Desdém!
Pobreza mais miserável que a própria fome
É a condenação à mesma!
Tal qual uma manta de retalhos
Velha e dolorida,
Fomos vendidos,
Hipotecaram nossas vestes
Cobrindo-nos de maldição e vergonha.
Vertem lágrimas
Os craveiros vermelhos que gritaram
No peito daquela madrugada
Repousa tu aí sabedoria eleita,
Teu leito de Liberdade,
Eu permaneço pela enseada
Nas asas das gaivotas
A cantarolar como se ainda estivesse
Ao colo do meu Pai.
(*Sophia de Mello Breyner)
É dedicado a Sophia de Mello Breyner este poema e a todos os que sonharam com aquele “dia inicial e primeiro”, um dos poemas mais lindos que li sobre o 25 de Abril.
C.M.
© Célia Moura