Poemas : 

A semente na taça inventada

 





Germina no peito
uma semente.
Pousada numa taça inventada.
De pedra
ou de silêncio.
Por vezes, engana a razão.
Outras vezes, é como trigo imaturo,
ondula quando tocada.
Muitas vezes, abre em chaga,
em tremor oculto.
Leva dentro a passiflora,
em toada,
de canto de canora.


A semente tece
a rama do sangue.
É berço e é esquife.
Lugar de poentes sonolentos,
vive em conluio,
com os trevos ausentes.

Semente que respira,
o ar fechado
do espelho.
De paixão, nem sempre.
De dor
ou rosa em brasa, por vezes.

O futuro cava-lhe
o tempo, que velozmente esmorece.
Palpita...
Palpita...
Palpita.
Bate fundo e perece.











Zita Viegas















 
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atizviegas68
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 13/02/2022 07:58  Atualizado: 23/02/2022 14:41
Usuário desde: 06/11/2007
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Mensagens: 1935
 Re: A semente na taça inventada
Começo por afirmar que adoro “ter” de fazer este comentário.
Zita Viegas é, neste site, um caso raro de lirismo e qualidade. É sempre muito bom sinal quando ela volta. E escreve, e muito.

Começo, também, duma forma que me é pouco habitual. A análise estrutural quanto ao número de versos é, de certo modo, peculiar. A primeira estrofe tem 13 versos e as restantes 3, 6.
Descobri, via google, que há um termo para o medo ao número 13, a triscaidecafobia. Dizem dar azar. Não me vou alongar nessa superstição.
A conjugação do número 666 também não costuma ser bom augúrio. A associação a forças do mal tem sido divulgada mais recentemente do que o primeiro.
Ambos têm algo de negativo.
Mas será este poema assim tão negativo?
Em matemática pura, quando se junta dois números negativos surge um positivo (menos com menos dá mais).

Lendo o poema, o título é bastante intrigante.
“ A semente na taça inventada” é uma metáfora que pode ter várias interpretações.

A “...taça...”, como receptáculo pode ser um recipiente simples (mas com elegância, não um simples caneco), como pode ser o útero, ou o santo Graal.
Os recipientes simples podem levar todo o tipo de substância. Desde a água, o vinho, a terra (ser um vaso).
O útero é o ponto fértil para a reprodução animal (desde o Homem ao rato), portanto de representação de crescimento, evolução.
O santo Graal é o recipiente da espiritualidade.

“ A semente...” é símbolo do projecto, do começo , da criação. Nas plantas é o início e a certeza da flor (fim) nas circunstâncias certas de solo e clima.

O “...inventada...” é a palavra mais literal do conjunto. Mas nem por isso menos bela.
Os inventos são o brilho do engenho, são criação pura e dura, mas pela mão do Homem. E, se muitas taças são cópias que advém de processos industriais, cada modelo original foi inventado.
Assim como a primeira das primeiras, o arquétipo.

Não há como não achar este título poético.


A primeira estrofe começa com um verbo na primeira pessoa.
Portanto o princípio é de presença. E o verbo é germinar. Ora o verbo vem do Latim germen, derivado de gen-men,  descendência, crescimento. Faz-me pensar em germes e a doença (estranhamente).
A conjugação “Germina no peito\uma semente...” parece ser referência metafórica ao coração, para ser no “...peito...”. Gosto desdes dois versos na melodia, no ritmo que a métrica permite. Um começo BOM.
Segues com um “...Pousada numa taça inventada...”. O pousada faz-me lembrar os locais que usamos que não são as nossas casas, mas que usamos para re-pousar. A invenção da taça parece pertencer a um debate poético acerca do papel do coração nas relações, ou no amor\ódio. Não será sempre o cérebro a ter esse papel?

Os dois versos seguintes são talvez um indicador. “...De pedra\ou de silêncio...” coração de pedra ainda pode ser sem sentimentos, mas de silêncio?! Mais complexo... Será que sente, mas esconde?
Quando me ponho a fazer perguntas é bom sinal.
“...Por vezes, engana a razão.\ Outras vezes, é como trigo imaturo,\ ondula quando tocada...”. As emoções, as endorfinas, afectam um bocado o normal funcionamento cardíaco (coitadas das coronárias). O “...ondula quando tocada...” tem uma forte carga sensual. De novo emoções (ou sensações?).

Mais dois versos que reparo: “...Muitas vezes, abre em chaga, \ em tremor oculto...” os angófonos usam a expressão heartbreak para os desgostos amorosos e para a depressão que deles advém. A metáfora da “...chaga...” para fugir è desgastada ”dor” é mais uma prova do lirismo supracitado, ou no mínimo, empenho. O “...oculto...” repete o silêncio e funciona quase como um pleonasmo escondido (lol).

A primeira estrofe segue cheia de possibilidades e os versos seguinte desafiam.
“...Leva dentro a passiflora,\ em toada, \ de canto de canora....” A passiflora é a flor do maracujareiro (palavrinha difícil) em inglês (de novo) passion fruit. E aqui a paixão volta ao de cima.
Sendo a paixão, aquela da duplicidade amor\dor. Emoções fortes, refere o sujeito poético, quase sem eu. O canto é outro nome para poema ou escrita. A suavidade que o “...canora...” implica entra em contrasenso com a “...passiflora...”, o “...em toada...” podia-se juntar e dizer entoada, que riqueza...

Da segunda estrofe destaco uma expressão “...os trevos ausentes...”. Gosto de trevos e azedas dão para mastigar o caule.
Os trevos, e os de 4 folhas são, como o número 13, um convite à superstição. Dão boa sorte, logo se ausentes determinam a sua falta. Belo.

A terceira estrofe começa como a segunda. A repetição do elemento primordial “...semente...” persiste.
Mas gostaria de destacar os seguintes versos que vou tentar ler:
“...Semente que respira, \ o ar fechado \ do espelho...”
Temos de fazer a leitura de trás para a frente.
Há um espelho que tem ar fechado.
O espelho é algo que serve para refletirmos e para nos refletir. Um olhar para nós mesmos. Uma alusão ao auto-conhecimento.
O ar é um dos elementos de vida( como a água). Estando fechado, estará preso? Ou guardado? Protegido?
Escolham.
E a semente já decifrada (parcialmente) respira esse ar.

Na última estrofe o poema acaba, em perda. Há quase um desinteresse que notamos quando “...esmorece...”. O poema como o futuro e como o tempo.
Do ponto de vista sonoro o “...palpita...” tem o efeito interessante de parecer um coração a palpitar, com os verso muitos curtos e leituras breves.


Obrigado pela leitura

Como é óbvio um dos favoritos é meu

PS.: estava cheio de saudades tuas e de poemas como estes. Pensava que não ias mais voltar. Espero genuinamente que estejas a ser editada pois o que tu escreves eu compraria.