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Notas de um sem teto

 
NOTAS DE UM SEM TETO
Domingo
Vida de morador de rua não é nada fácil, principalmente nesta época – o período chuvoso.
Dormi no terminal da Praia Grande. Entrei a meia-noite, por trás tem um buraco na cerca e nesse horário os vigias estão dormindo. Acordei antes das seis, evitando assim ser despertado pelos funcionários, eles não aliviam e as vezes até nos agridem com pontapés nas costelas.
- Levantem! Levantem! – eles gritam e jogam até agua na gente. E não podemos reclamar que ainda corremos o risco de ser preso por desacato ao funcionário publico.
Há dois anos que vivo nessa penúria dos diabos, e ainda estou em fase de aprendizagem. A coisa desengrigolou depois que perdi o meu emprego de vigilante, a puta da minha companheira abandonou-me e fui despejado do quarto. Sem opção e sem ninguém a que pedi ajuda, os pseudos amigos despareceram cai na rua. Os primeiros dias foram péssimos e aos poucos fui me adaptando. Nunca pensei viver uma situação tão desagradável. Tudo que possuo carrego na minha mochila surrada – duas mudas de bermuda e camisas, meu copão de pet e a colher, o lençol encardido e fedorento. Nesse período aprendi que morador de rua não tem amigo, nada de parceria – Puta só, ladrão só.
Meio-dia –Diamante - Centro- pop
Passei no mercado do peixe, corri os olhos na lixeira, as vezes tenho sorte de encontrar uma fruta, um saco de salgados de alguma lanchonete. Também pode pintar um bico, carregar umas sacolas até a parada de ônibus. Um troco para o café. No mercado grande é complicado, é cheio de sem-teto, a maioria viciados em crack e outros roubam, não marco muito e segui pelas ruas deserta até aqui no Bairro Diamante. Aqui bebo um café, banho e espero almoço. Hoje domingo não tem Popular. Umas cozinheiras preparam o rango que é servido em marmitex. Tens uns bagunceiros que chegam dopados ou bêbados, mas entram logo na linha. E assim depois do rango, cada um procura seu destino. Nos dias uteis, enquanto esperamos o café, nos dão uma pulseira para almoçarmos de graça nos Populares.
Tarde – Praça Odorico Mendes – centro
Um lugar tranquilo e aplausível, onde posso dormir sem temer ser roubado. O clima é agradável e bem arborizado, os passarinhos gorjeiam nos galhos das arvores. Tenho o meu papelão guardado debaixo do banco. Bem no canto com a avenida Rio Branco, uma delegacia de policia me protege. Tem uma torneira, onde encho meu litrinho com água. Fico até as seis e as vezes tem uma alma bondosa que me dar uns trocados.
Começo da noite – Praça Deodoro - centro
As lâmpadas dos postes acesas. Os casais de namorados espalhados, assim como a rapaziada que vieram esperar a Kombi do sopão. Estou sentado no alto da escadaria da biblioteca, uma vista privilegiada de toda a praça.
- Lá vem! Lá vem! – grita alguém lá da esquina
Então apressados corremos para organizar uma fila. A Kombi estaciona e as irmãzinhas abrem as portas. Os panelões fumegantes – cada com seu copo na mão e vamos chegando devagar, a gororoba tem o cheiro bom que anestesia os nossos narizes. Uma das irmãzinhas nos serve com uma concha enchendo nossos copos e a outra nos entrega os pães e assim somos pulverizados. Volto para a escadaria e saboreio a sopa bem suculenta. Terminado lavo o meu copo numa torneira no meio da praça. O céu estrelado sem prenuncio de chuva. Mas o tempo é traiçoeiro.
Quase meia noite – Praça Maria Aragão – centro
Deitado debaixo do palco de concreto armado, uns parceiros chegaram mais cedo e logico pegaram os melhores lugares. Improviso a minha cama sobre um papelão de caixa de geladeira, tiro o meu lençol fedido, amanhã se fizer um bom tempo vou lava-lo na pocinha atrás do Convento das Mercês, no Desterro. Tosses secas de quem está fumando uma pedra, o cheiro ocre de maconha. Um cachorro late ao longe, lá para as bandas da Praça Gonçalves Dias, um barulho de ônibus. A maré enchendo, ouço as ondas quebrando nas muretas da avenida Beira-Mar. Benzo-me e deito-me. Amanhã a guerra continua.

 
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efemero25
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