https://www.poetris.com/

Poemas, frases e mensagens de Rogério Beça

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Rogério Beça

bordão Alunar

 
Na minha terra não há violência
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não se humilha
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não há a guerra
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não há mesquinhos, nem hipócritas
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não há ladrões, assassinos, violadores
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não há corrupção, nem crime
usamos a inteligência noutras coisas,

na minha terra não há pura maldade
usamos a inteligência noutras coisas...

A minha terra é diferente.
Na minha terra
não há
gente.
 
bordão Alunar

a paixão do silêncio

 
Como dizer, por parcas palavras, o silêncio?
Mudos,
os sons perdem-se no palácio do Sono.
Escassa forma de vida.
Espaço de túmulo,
intervalo de lápide.

Caverna fechada, reverbada a brilhos
sós,
esquecida pelo vento.
Quedo, o semblante,
povoado de medo e repouso
e lagos estagnados,
falho em esgares e sorrisos.
No langor, horizontes nocturnos,
horizontais leitos,
direitos.
As sombras,
fantasmas parados, caprichos
dalguma estrela longe.

A eternidade mora perto, infinita,
amaldiçoada
a desconhecer
o momento
e a sua cara-metade,
o grito.

Segundo contributo para o sarau "o grito da poesia".
Inspirado, de certo modo, na personificação do Sono, magnífica, das "metamorfoses" de Ovídio, do verso 591 ao verso 632 da edição bolso cotovia.
 
a paixão do silêncio

Por extenso

 
Não dá para abreviar
o mar
o sol
a lua

viver não tem
algarismos

nem sumários

mesmo que te escondas em recantos
escusos
encolhas os dias no medo

escolhas o pouco

no teu obituário deitarão as vírgulas do
costume
 
Por extenso

Onde houver chão há cama

 
No calor do azulejo,
até no cinzento cimento,
há um aconchego que vejo.

No meio do feno,
até no branco vago dum banco,
há um leito terreno.

No pé de solo
esburacado, se couber o corpo deitado,
como planta, como um cão, há colo.

No lado de dentro da minha porta
cada palmo
é sulco calmo que o frio corta.

Não esperes fama de relento à minha guarda,
onde houver chão há cama,
um encosto, uma farda...
 
Onde houver chão há cama

porta da cozinha

 
lugares incomuns
espreitam ao virar da esquina, num canto do lar

avessa à planta, ao plano duro
atravessa a porta dos fundos
no coração da casa

entradas e saídas
confundidas na mesma dobradiça

segunda hipótese mais frequente
profunda missa
seguida de lareira de fogão

sem tapete nem batente
guarda uma ranhura e aguarda sua chave
 
porta da cozinha

Solo do manatim

 
Era uma esfinge estranha
no alto do seu pedestal.
Nascera com um invulgar dom
encostado à sua voz.

- Dentro da sua timidez
deixara as perguntas para trás -

Com clareza cantava
duras dores,
ensombrando os pobres de espírito
estrangulados com a sua beleza.

Importava-lhe o seu lado felino
na imprecisão do abraço,
na eminência da ferida
às garras dos homens.

E a cada resposta errada com triste sina,
no calor das melodias que criava
num mero segundo ausente,
infinito.
 
Solo do manatim

Dez Sonetos da Guerra da Crimeia parte dois

 
1. Afinal, agora, são drones

De lança, espada, a pé, a cavalo,
andam em cada guerra no intervalo;
carabina, canhões e nas trincheiras
matam-se, e morrem, doutras maneiras.

De tanque sem roupa, vem um estalo;
de aviões e suicidas, tem-se calo.
Bombas atómicas, cidades inteiras,
Americanos e as suas asneiras.

Agora virão os drones, bombas porcas,
senhores a carregar o botão do comando,
que já não enlameiam as suas botas.

E o cavalo de há cem anos, sem mando,
a morte cheia de parafusos e porcas,
sangue igual ao de todos os idiotas...

2. Mitos

Nenhuma guerra tem a verdade,
todas têm apenas apenas vencidos,
mortos e feridos, de toda a idade,
não há verdade, só lados feridos.

Toda a guerra é mortalidade,
mentiras que contamos sofridos;
e dor, miséria, dura realidade.
E nada é real, duplos sentidos.

É o pior do pior na defesa
de ideais, com mais ou menos razão.
Perguntem às famílias dos mortos.

Desde 2014 com esta incerteza,
sob balas, sob medo, sob vil canhão,
todos os barcos vão, sem ter portos...

3. poema do deixar

deixem cair uma bomba ali junto aos meus pais
e outra, por um drone mandado, junto aos tios;
todas as comandadas têm os mesmos assobios
deixem cair uma, e outra, e outra ainda, mais

de morte adiada somos todos iguais e desiguais,
ainda que nos enchamos de ouros, terras e brios
vãos, dos mais polutos, infames, aos mais pios;
soe nascer, crescer, viver, morrer, estátuas carnais

onde houver chão, há cama, mas também guerra.
depende do homem de má ou de boa vontade,
independentemente do que se possa dizer, pensar;

os machados são para a terra,
o amar o próximo é a verdade
para a paz manter, ou alcançar...

4. Bom

Bom era poder as armas baixar
com elas limpar o chão, vassoura,
as balas, bombas todas encravar,
dedicar as armas todas à lavoura.

Bom mesmo era poder até deixar
de escrever sonetos, a salmoura
salgar outros motes, sem salgar.
E os sonetos da guerra que agoura.

Bom era a paz e muito amor, sexo;
bons os beijos nas irmãs e irmãos.
Bom era o silêncio, uma ode ao amor.

A liberdade de escolher o sem nexo,
nunca mais sujar de sangue as mãos.
As armar baixar, com fogo e ardor.

5. Arruar

Ruir devia ser coisa de rua,
da calçada, do pó, do alcatrão.
Da alma, dos poemas, é que não.
A ruína devia ser só na lua.

Até na lua alma haver, nua,
despida de fel, de ódio, e do trovão.
Se na lua houver alguma emoção,
acabe de ruir o que continua.

Mas é o que tudo o que começa,
no fim ao cabo e o tudo merece:
que acabe!

Arruinados, na paz, sem pressa.
Tudo rui, tudo desaparece.
Esquecendo, finge-se que não se sabe...

6. a Marte até ao fim ou, até que se me acabem os Ares

Levantei mais outra máscara uma
do chão do pinhal cheio de caruma
e enterrei, no seu lugar, só lodo
feito de lágrimas e de sangue, todo...

Correm os dias, como espuma
duma maré de balas que se esfuma.
Falta tinta na pena, deste modo,
perco a tesão, até quando fodo.

Como se guerra fosse ar, ou O Pão
nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje...
E eu fosse foragido do nada.

Quando uivo, gano como um cão,
será que ela me ouve e foge?
Máscara que vives desmascarada...

7. Escaras em Estalinegrado

Estava ruço de tanto roçar
na roça; sem roceiro roceirar
(uma demência perto do louro)
as cãs vivas, as rugas no couro.

Estava ruço, ao velho, a entrar;
sem os filhos, sem netos, sem par:
o tempo mais breve, o vindouro
jazia num leito branco, a soro...

Estava ruço, cheio de remorso,
olhando, sem ver, as searas
e cheiro a pólvora e esturro.

Estava, ele, russo sem dorso
sentindo a dor das escaras
dos outros. Como um asno, burro.

8. Para uma aldeia da Crimeia

Estou farto de ver ucranianos à frente,
estou farto, mesmo muito farto, desta gente.
Eles que voltem, depressa para a sua aldeia,
de preferência, uma das da Crimeia.

Estou cheio da populaça triste, que se sente;
de refugiadas no Intendente.
Que sorriam, ao mais, de boca cheia
de sorrisos. Que sorrisos falsos venham à veia.

Estou farto de ucranianas, ucranianos
a povoarem os apartamentos vazios,
a trabalharem nos empregos que ninguém quer...

Estou farto de presidentes. E seus enganos.
Farto de países doentes, antes sadios.
Vão para a vossa terra, ide para lá viver!

9. Balada da Bandeira Branca

Já chega, peço por favor, já basta...
Um povo sombrio que se arrasta,
implora uma pausa sem ironia;
amarra, sem causa, a poesia.

Rendidos a uma força nefasta
de dez para uma ainda casta,
que se defendeu como podia,
morrendo, matando, no dia-a-dia.

Já chega! veem de baixo a bandeira
ao alto, sem vento, que se abana,
se humilha, pálida se rende.

Rosa de sangue, de luto se estende,
é a marca do Homem que se dana,
repete, do asno cego, a asneira.

10. Palmas e palmos

Sete palmos acima o sol brilha,
o luar, à noite, é armadilha;
sete palmos acima a ave canta,
o mar marulha, o vento levanta...

Sete palmos acima fervilha,
queima, açoita, cresce, maravilha...
Sete palmos acima adianta;
e a noite é curta, e tanta.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete
palmos que me separam da Terra,
ainda que de terra viva cheio...

Há uma promessa que se promete,
que se quebra nos horrores da guerra:
o fim, para o que ia a meio

Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu outro eu, o cheiramázedo.
Como devem estar recordados, ele só sabe comentar na forma de soneto e anda muito activo, com esta história da guerra.

Era bom que não houvessem mais...
Esta merda já está na parte dois, alguém anda a foder isto da paz....

Um título interessante de um autor que aprecio:
"Paz traz paz" de Afonso Cruz

(parece às três pancadas, mas não é, cabrão!)
 
Dez Sonetos da Guerra da Crimeia parte dois

Anís

 
De lágrima espessa,
escorre lenta na garganta
até à boca estomacal;
na papila um travo desigual
que espanta,
e nos atravessa.

Nesse pequeno gole
que nos lábios se cola,
lá se acha e perde a doçura,
perto, muito perto da loucura,
do fogo que imola
numa cadência mole.

Tem o sabor a antigo,
a passado de moda
ainda que moda nunca fosse,
com essa saudade doce,
licor que nos deixa à roda,
castigo...
 
Anís

limpo

 
na mira do fuzil o chão. o fora e o dentro lustroso, brilho. transparente a lente, a cruz que a segue. a luz. na solidão do cano, arriscado, nem pó. sem causa, espera, pausa. hábito de gatilho. um pombo verde esvoaça. esvoaçam os ramos finos das oliveiras que compõem a serigrafia, presos, contudo, pelas raízes. ao ar, onde tudo voa, anda e corre, há que ser leve. iludir a pedra, livre no arremesso. as Mulheres cheias de histórias e de dias. os dias cheios de Tudo. na carreira de tiro habita o fim. outro nome para recomeço. o muro baliza o muro do corpo, a sede da alma, do pensamento, penso invés. penso. hoje não é dia de sentença, não aqui. na guerra nada se limpa. a mira mira o chão.
 
limpo

Povo

 
Num cacho
não há
duas uvas iguais...

Estranho
o vinho.
 
Povo

o hálito da espera

 
tem o peso do que é leve
a nuvem, a pluma, o sorriso

o ar do ar preso

tem o corpo do arvoredo
por podar
e o toque liso dum abraço
prenhe de mãos e dedos

alcance

o hálito da espera...
 
o hálito da espera

Rota da seda

 
Apesar de remotos,
ainda criamos laços,
como se nos pescássemos numa rede fina,
procurando uma autofagia que se alarga aos outros.

Ainda que ermos,
tememos as mesmas desgraças,
queremos.

Temos.

Somos peças de relojoaria
à procura de espaço.

Embora sós,
seguimos sentenças alheias
por opção nossa, numa via que nos engrossa,
tece.

Entre o fio e o tecido
espera a fibra.

A linha imaginária que nos une.
 
Rota da seda

Fio condutor

 
O que antes bastava
agora já não chega,
sorrisos airosos, montanhas de luz,
melodias,
espelhos de água no remanso das estações,
dívidas pagas em sangue,
rimas...

Não chega
o perfume das manhãs, a melancolia,
a definição das cores,
dos ruídos, das memórias...
Mas,
o que fito no horizonte?
Se não é suficiente o passado, nem o futuro.
Agora já não chega.
 
Fio condutor

Sem nunca ser

 
O Perto é tão incerto
como o Agora.

Vive
mesmo à nossa frente, rente,
tão à vista
armada.
Um dentro tão fora.

E nos quandos que nos habitam,
presentes nos passos,
no futuro,..
há um toque que se pressente,
requer o nosso tacto.

Perto.

É
sem nunca ser
de facto.
 
Sem nunca ser

Terceira idade

 
[de uns e outros]

Para uns
a idade é um posto,
para outros
um oposto.
 
Terceira idade

Nas páginas do silêncio

 
Nas páginas do silêncio eram inscritas trovoadas
carregadas de vento, de uivos, de piares
e pios Homens,
fartos de olhares mudos.

Nas páginas do silêncio,
o verbo agrilhoava-se à acção, adjetivava o tempo,
quedo e preso,
e as horas eram leves incertezas.

Nas páginas do silêncio dobravam-se as memórias,
reclusas e moldadas, como barro,
e os lugares
eram onde os segundos ainda esperavam.

Nas páginas do silêncio pregava-se a igualdade,
o mesmo rugido não ouvido
atento a cada rosto,
e por todos multiplicado e dividido.

Nas páginas do silêncio cheirava a começos
e o perfume
selava as narinas de monstros,
como nos primeiros dias de escola.

Nas páginas do silêncio mora o descanso
prestes a terminar.

Para dar voz
ao poema.
 
Nas páginas do silêncio

Não há pontão no Guincho

 
Não há pontão no Guincho,
o mar picado só quer dunas.

Um meio só;

além do vento urtigado
a lamber os pés nus e os olhos cerrados,
o rubor das bandeiras.

O gelo salso do oceano
oferece a voz aguda
salpicada a temor,
ao voo planado do albatroz.

Das criaturas
à beira-mar plantadas...

Praias de Cascais
 
Não há pontão no Guincho

habitar o habit(u)ar

 
Cria raízes
mas não é árvore,

é a repetição do gesto que se renova,
indigesto resto, a cada prova,

acção sem acto.

É.

E, como o espinho no cacto,
calo sem protesto,
nem pensar

anda andando
sem ver o caminho.

Vai.
Sem parar…

[um passado presente futuro. declino esse retorno que me foge da memória. a fuga do pensar e do ser. com que mão começas por apertar o atacador do sapato? e por qual pé? são sempre duas perguntas que me faço, por hábito. e porquê? a memória ainda a reconheço como um esforço mental para regressar. e esse outro regresso, incessante? a economia neuronal é absolutamente necessária para a sanidade mental, mas deixa-me sempre com dúvidas acerca do momento. quantas vezes deixei a esse ser que me habita, fazer? nem faço a menor ideia, já, com que dedo puxo o trinco de cada porta...]
 
habitar o habit(u)ar

cura de Sal

 
salguei-te
porque te quero ao ar
palavra cheia
e sem querer dei-te o sabor,
o perfume a eternidade, sem querer

salguei-te
para te guardar do frio
e ignóbil, ignoto, palavra que incendeias
dei-te o calor,
a luz, o fogo, o ódio, o amor

salguei-te
para que dures, sejas as cores do infinito,
palavra crua,
dei-te o sal que não tenho, dei-te o querer
em que acredito.
 
cura de Sal

o origami do cisne

 
Dobrou em quatro
a folha gatafunhada de papel pautado.

Pelos seus dedos passara
o mais agudo haicai,

tinha uma ironia e meia metáfora
no segundo verso,

no idioma de sua majestade
triplicou uma alegoria fabulosa
de desdém e abandono;

o resultado final,
de pescoço elegante e altivez,
vogava no lago das mãos do garoto
que apenas pedira
um pato

feio...
 
o origami do cisne

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.