Poemas, frases e mensagens de Rogério Beça

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Rogério Beça

Dez Sonetos da Guerra da Crimeia parte três

 
1. A preto ou Branco

Lembra-te que sou um sacana sem medo
e além de sacana, sou um cabrão.
Se nos meus encostas um só dedo,
sentirás o peso todo da minha mão.

Conhecerás todo o meu avesso, o meu degredo,
um caralho cheio de tesão,
universos inteiros de pus e de azedo;
se só com um dedo tocares um meio-irmão.

Essas merdas, sei-as todas, o mal é todo meu, torturas
por desenhar, sou arquitecto;
deixa-me quieto

e às minhas curas.
Faz de mim o que te apetecer, até teu escravo.
Mas com o teu dedo, as mãos lavo.

2. Azulejo em pó, é só juntar água

Já guardei um tijolo dos destroços,
está num monte à minha espera
com vidros, azulejos e a primavera
e sangue, carne apodrecida, ossos...

Se fizer, à mão, um castelo e fossos
com esse entulho, onde antes era
um país, uma pátria, uma fera,
onde se bebia de tantos poços,

ou posso construir, repetir pontes,
de mais tijolos de outros montes:
um quebra-cabeças decapitado.

Neste eterno e escurecido inverno,
nas mãos apenas guardo o inferno
e todas as pontes sem o outro lado.

3. Triste cancro

Eu evito pensar, juro que evito,
nas células do corpo, com demónio,
que de Ramsés ao santo António,
habitam tudo, como eu habito.

De canto em canto tudo vomito,
estrago, desfaço, sou babilónio,…
e se uso apenas mais um neurónio,
tudo implode, queima, fica frito…

Arma em punho
sangue na foice,
força faz a guerra!

Vão testemunho
viver de coice…
Tumor da Terra.

4. mutismo

A guerra já acabou na Crimeia,
na televisão e nos cabeçalhos.
Um ano de bombas e mortalhos
ao almoço, ao jantar, à ceia...

Mas, sem dúvida, o que mais chateia
é fechado no cabo dos trabalhos.
O sangue, a morte em retalhos,
o conforto, sem fim, de quem a ateia...

Mas, já se acabou isso tudo.
Nem mais uma linha se escreva.
Se não se falar ninguém repara.

Mais um fulminante se dispara,
Mais um vivo a morte leva.
Falta-se-me a voz. Fiquei mudo.

5. paz é descanso

Em Kiev não há domingo há anos,
nem todos os outros dias de feira,
o tempo a nada se abeira,
nem para ontem haverá planos.

Os lugares são para os insanos,
a morada só na algibeira;
abre, finda da mesma maneira.
Só espaço para contar danos.

É a Ilíada e seus aqueus,...
o mundo não se farta de morte,
é de Homens do diabo.

Tudo gente sem destino, nem deus
que de tão fraca, passa por forte.
ao fim e ao cabo.

6. O segundo porquinho

E cais mais uma vez no caos,
sempre a achar que é demais.
Quer lhe chames porto, ou cais,
é onde vais, nas tuas naus.

A demanda vã por mil vaus:
torpe desculpa porque sais.
De menos és, e porque vais.
Bombas atónitas de paus.

Prego, sem dó, o vazio;
que o cheio nunca chega
esse buraco sem fundo.

Atravesso este rio,
de jangada que navega
com todos os paus do mundo.

7. Livros aos quadradinhos

Parece que, agora, na história,
nos livros das escolas da Rússia-mãe
os meninos russos da memória
aprendem que é a Ucrânia que vem

invadir a Rússia. Cultivam desdém,
até ao império ter a vitória.
Mas guardarão o que vivem também.
Não vem em livros a palmatória

que chega com toda a mentira.
Há de reinar o medo, o pavor
dum sistema que tudo pode.

Se ensina o que se respira,
ensinará algum dia o amor?
Quando será que a bomba explode?

8. bombinhas de mau-cheiro

Para ir da Ucrânia ao Sudão,
é perto, basta irmos de guerra.
Com tanta paz criada na Terra;
sempre em frente, não há confusão.

Não há guerra por pedaço de chão
que não desfaça: o feitor enterra.
Acertado pelo punho qu'erra,
o tratado assinado, sem mão.

Raspas e bombinhas de mau-cheiro
à venda nas lojas da esquina
onde fazem o troco em notas

de rodapé, bitcoin, ou dinheiro.
Chama-se guerra e s'assassina.
Não há vencedores, só derrotas.

9. barragem vazia

Barro com o teu nome as luzes,
pinto d'escuro a escuridão
e deixo às cegas a minha mão
com a grita mole que produzes.

Agarro o brilho que tu luzes
e sinto puro o que no escuro dão;
e mexo, toco as pregas em vão,
pregos no caixão, engole, não uses.

Sou um guardador, dor de vazios
dentro do peito, cheio de nadas;
dolente que passa o passo dado.

Esse nome é lago e não rios,
esse brilho é águas paradas.
É para o que fiquei guardado.

10. Solidão Bombardeada

O tempo ele caleja, castiga
e o seu castigo é o calo.
O seu fado a isso o obriga,
sina de ser só um intervalo.

Nem assim a memória é amiga,
que insiste, dó, em magoá-lo;
calo que não sente. Há quem diga
que à memória o tempo igualo.

Não fere a dor, a guerra alheia,
não magoa no quintal vizinho,
somente no tempo inda novo.

Não será já o mundo uma aldeia,
onde parece que estou sozinho?
Porque não escreve o meu povo?

Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não.
 
Dez Sonetos da Guerra da Crimeia parte três

De graus, ou o nome do meu gato

 
Uma questão de frio.
Já sei que devo de ser uma espécie de sofá, onde te abates, não só para dormir.

Nunca percebi bem o porquê. O onde, parece claro. Em qualquer lado. O quando, é igual.

Por vezes, ficas em sestas horárias.
Outras, pareces que vês televisão comigo. E ouves.
Ou perdes-te em pensamentos longos, ou curtos, que me excluem, para meu verde ciúme.

Sei ser um facto.
O meu erro, é correr a dissecá-lo ao sol. Discorrer.

Haverá algum cheiro meu que to obriga. Uma feromona?

Será algum osso, que encaixa num teu como quebracabeça, que nos faz bidimensionais? Ou será aí que carregas a bateria do teu ventre, do teu sorriso, da tua pele? Ou te descarregas?
Estará programado por algum algoritmo de inteligência artificial? Ou bioquímica?

Noto que, quando ficas, há uma transferência de algo que meço em graus, que me acalora. Chega a arder, no verão. Uma alta temperatura. Uma destemperatura fixa. Altura.

Se eu, por azar triste, vivesse do frio como vivo deste calor, teria de arrancar a ferros a fuga, e ser o longe.
O infinitamente longe.

De ti. Para sobreviver. Nunca um sofá, ou uma cama. Ou um sofá-cama (que ser confuso!).

Será que é porque te aqueço?
Também?
 
De graus, ou o nome do meu gato

Meio reles

 
Eu sei que sou meio reles,
mas não queiram saber do outro meio

sou feito todo de frio,
sou meio vazio
e cheio,
tenho partes de muitas peles.

Ainda que não haja gente às metades,
não fui para ser
inteiro,

não sei ser completo nem competente
como quase toda a gente,
desconheço qual virá primeiro,
o da bonança, ou se o das maldades.

Reconheço-me meio reles,
partido em muitos, ou até mais.

Desfeito com o brilho de ouro e sóis,
com o monólogo dos faróis,
bicho
entre animais,

criança no meio deles.

Na ausência total de luz,
sou um soterrado numa cova imensa, submersa,
lugar da inveja e dos cegos,
assim
sem meia escuridão

reles até mais não no meu
mei
o...
 
Meio reles

A burca tapava a bicicleta

 
Tinha o perímetro
dum tecido de cor aceti-nada.

Podia ter sido dada para toalha de mesa,
ou cortinado,

mas,
para surpresa amarela,

cobria da cabeça aos pés
uma bicicleta de corrida, de vinte e uma

mudança.
 
A burca tapava a bicicleta

a poesia leu-me

 
há vida no jogo
há jogo na vida

Vivo no princípio da incerteza
vivo no meio do nada
vivo no fim de cada começo

aprendi que tenho de aprender
as regras de todos os jogos,
o logro
a mentira que se mete

dados lançados
sem batota

perder ou perder

descascar cebolas sob água a correr

Inspirado no segundo Podcast.
Se querem compreender melhor as referências, vão ouvir, por favor ;)
 
a poesia leu-me

mandingo

 
construí o altar com as minhas mãos
e barro de gente por acabar
seco ao sol

e,

num belo dia,
nasceu em mim, em combustão, um busto,
uma poesia que dizia um dizer, confissão

numa língua antiga amiga plena de espuma
a ferver
de ver o dever e sem ver a fazia

fiz uma boneca, com duas tranças,
para me agarrar de quatro e parar

fiz um sinal da cruz invertida
e fez-se luz, fez-se vida, a giz

e

aos gritos, preso ao altar profano

fui conjurado
teu
 
mandingo

limpo

 
na mira do fuzil o chão. o fora e o dentro lustroso, brilho. transparente a lente, a cruz que a segue. a luz. na solidão do cano, arriscado, nem pó. sem causa, espera, pausa. hábito de gatilho. um pombo verde esvoaça. esvoaçam os ramos finos das oliveiras que compõem a serigrafia, presos, contudo, pelas raízes. ao ar, onde tudo voa, anda e corre, há que ser leve. iludir a pedra, livre no arremesso. as Mulheres cheias de histórias e de dias. os dias cheios de Tudo. na carreira de tiro habita o fim. outro nome para recomeço. o muro baliza o muro do corpo, a sede da alma, do pensamento, penso invés. penso. hoje não é dia de sentença, não aqui. na guerra nada se limpa. a mira mira o chão.
 
limpo

um dia a menos

 
Encalhava nos bancos de areia
apesar
da cartografia exemplar que seguia.

Mesmo que olhasse eternamente o fundo de si,
havia
sempre mais um rombo no casco cru.

Como prego
sem bico virado,
fundeava-se nas enseadas fartas de sorrisos magros.

Entre os corpos celestes dos corais rugosos,
as arestas rasgavam no momento
do toque.

No fundo
queria encostar-se
a cais mais dóceis, sempre levado pela maré
para mais
uma tempestade.

E ao sabor a verbo nas margens das vagas.
 
um dia a menos

mendigo dA CARNE

 
digo do arrepio
digo do ardor
sem frio
sem calor

digo do sofrer a bom sofrer
digo do ar que pega lume
sem doer
sem queixume

digo do sol e das estrelas
digo dos buracos escuros
sem vê-las
tão impuros

digo do bater das ondas
digo da maré
sem formas redondas
sem pé

digo dos dias e das horas
digo dos lugares
sem agoras
sem pares

digo do duro feito macio
digo do céu ao inferno
sem arrepio
sem caderno

digo tudo e nada digo.
 
mendigo dA CARNE

milagre do esquecimento

 
nunca mais pensei em ti
a raiva
ira de mentira
os gritos que gritei

não mais pensei

as juras de morte
e as outras de pior sorte
torturas
verdes de maduras que inventei

já não as sei

as lágrimas magras e amargas
a ferver no rosto
o desgosto
que hei

não te lembro, nem mais as pensei
 
milagre do esquecimento

"Um bode de guerra" ou, "Nirvana, a extinção do fogo"

 
Não sou ovelha, nem negra que se tresmalha,
talvez intratável bode, sem escarpas, longe de pasto.
As memórias de que me gasto, são do não.
Dessa montra do contra que nada aceita completo,
nem em metades, ou dízimos.
Na calma d'insecto
digiro o sangue do pensamento crítico, da opinião.
Oiço as vozes que me ditam o incerto planeta
em que rastejo e voo com o mesmo fulgor.
Ali com mágoa, cá com calor.
Estranho o meu fato de um.
Um estranhar que me comove, incomum e banal
e eu que luto, insano, em força, bruto, pra ser igual.
As cascas das árvores, as vertigens do penhasco,
o verde-seco do céu avariado de pôr ou tirar sol,
o ar puro do ar. São prazeres simples, dores texteis.
Sou, no emaranhado das solidões, réu; enclausurado
a céu aberto, fechado no fundo do mar vivo.
E como peixe sem cardume, sem brânquias, sem cor, com a massa flúida e espessa das águas
doces e salinas que não bebo nem respiro,
ingiro um pouco mais de medo.
Temo o desapego que adivinho perto. Desligado
do querer, do mais, do além, das rameiras
dos ramos mais longe da girafa que sou, menos
nas manchas. Esticando mais e mais o limite
da beira da beiça esfaimada.
Fugindo do menos,
do aqui e agora apenas.
Sem dor.
Não querer é nada.
Nada veio cedo, e foi-se-me esguio,
dentro desse menos que me medra; sei
ser meu.

Serei paz,
um bode de guerra.

O nirvana é um conceito apresentado pelo budismo, filosofia que aprecio, impossível de alcançar.
A sua tradução é " a extinção do fogo" e determina que a ausência de querer é a chave-mestra para o equilíbrio e para a completude.
Essa iluminação é acompanhada por um bem estar de excelência.
Buda foi um dos poucos que o atingiu.
Muito haveria a falar sobre o budismo, mas creio que eu, como tantos outros, não vou poder atingir o nirvana...
 
"Um bode de guerra" ou, "Nirvana, a extinção do fogo"

Senão traduzido

 
E então,
Senão pensou para consigo:

Sigo.

Quem sem a Bela sou?
Quem sou eu sem a Bela,
quem, quem?
Sem…

Que parte do verbo haver
em mim há,
ou há, enfim, em mim
então?

Andava Senão sem Bela,
num vasto
vazio.
 
Senão traduzido

o custo da vontade do povo

 
Até a necessidade se tranformar em disciplina
até a disciplina se tornar hábito,
até ao hábito se tornar dependência e vício,
até a pobreza ser algo que infeliz se ensina,
até a cetose se tornar o nosso hálito,
e a fome um pouco do respirar neste hospício.

Até os anéis acobreados sairem dos dedos,
até as mãos nuas perderem a gordura, o recheio,
e restar a magreza suave e pétrea do osso,
até a revolta ser cochichada em segredos,
e entre o esquálido e o gordo não haver meio,
e nos castelos encantados encherem o fosso,

Até a miséria ser uma forma normal de vida,
a que nos acostumamos por ser o comum,
por nos entrar na pele, como a merda e o ar,
olhamos a crise que não chega escorrida
por se arrastar insidiosa, de lado nenhum,
mas que parece que veio, sem recheio, para ficar..
.

Realidades alternativas que não podem ser alternativa.
No 25A comemora-se o quê?
 
o custo da vontade do povo

o hálito da espera

 
tem o peso do que é leve
a nuvem, a pluma, o sorriso

o ar do ar preso

tem o corpo do arvoredo
por podar
e o toque liso dum abraço
prenhe de mãos e dedos

alcance

o hálito da espera...
 
o hálito da espera

a minha saudade tem um nome

 
Está escondida algures no meu corpo

é um pesar
que não requer o pensar,

um carão, um carinho
que me aperta o sozinho, sem solidão…
rasga
sem me tocar,

esta agridoce fome…

queria esquecer a sede
desse nome.
 
a minha saudade tem um nome

falso poeta falso

 
Transmito o egoísmo doutro,
transcrevo-o e o narro,
esse outro que me imita e plagia.
Encontro
nesse facis o verbo e a sombra,
com os quais me escondo do Sol,
embora ele sempre me encontre.
Dou recado à sua presença,
na esperança de mais um fonema
e dou por mim a falar sozinho.
Copio-me.

Tenho de parir mais um verso
e, em cada contracção,
respiro devagarinho e sopro velas
que se apagam, que se queimam.
No momento da expulsão
o sangrento verso não chora,
somente expele mecónio.
Cada palavra arrancada a ferros
sai deformada.
A hipóxia fez-me perder o dia,
fecho as pernas.

O plástico das minhas mãos,
prótese alfabética,
retorce-se na fruta que não consigo trincar,
as flores que não têm cheiro,
nos manequins nas lojas que não riem;
e nos poemas que escrevo
com a mesma marca falsa
que sinto ao não sentir
e invento
hipócrita e baixinho.

Poeta?
 
falso poeta falso

Fra(n)queza

 
Sou um fraco
desistente,
um mui triste emigrante

que jamais se divorcia.

Sou de folha perene,
sou a própria erosão

e farinha do mesmo saco,
lume brando e ardente,
um Pedro sempre infante.

Sou o renascer de cada dia,
solene

e ilusão.
 
Fra(n)queza

Da esperança toda, é noroeste

 
Verde
amar
ela
e ciano

ciúme e esperança no mesmo tom
tomara sabê-la vestir, clorofilar-me, gostar
espero que a espera me espere

há uma perversão rosada, suave, eufemismo,
abismo,

que bom ter esperança, é a última a morrer

nem Oeste Norte
um meio sem virtude, um verde celeste

um noroeste, um NO.

Inspirado no poema de Jorge Santos

"A onze graus da esperança toda"
 
Da esperança toda, é noroeste

Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte cinco

 
1. vê

Na mão não há vê de vitória,
os dedos foram todos amputados.
Nos dedos dos pés não há agrados.
Não consigo contar a história.

Falta-me a voz, dedos, memória;
minas e balas de baleados,
de sobra. Cotos envergonhados,
doridos, onde fica a glória?

Um vê que faço, braços abertos,
a cabeça a estragar o desenho.
Mais parecido com um duplo vê.

Vê a dobrar, os olhos incertos
da miopia, que agora tenho.
Nada vejo, sinto, não sei porquê.

2. Placas ou parafusos

Há placas a mortos em cada esquina,
na baixa aquosa de Veneza,
há nomes em fila sem beleza,
pelos vistos, nada se ensina.

Têm uma data que as domina,
uma luta em cada chiesa
ao lado duma vela acesa.
1914-1918, alguém assina.

Só cem anos depois, na Crimeia,
ainda se mata, se odeia…
Esqueçam, desistam, não há mão nisto.

Em Gaza, no Sudão, ou em Troia
alimenta-se a paranoia.
Eu, não desisto.

3. Lua Velha

Dia sim dia sim mais um funeral
de vala comum, sem sequer comunhão,
já não há espaço qualquer, neste chão,
para fazer um enterro normal.

Nada de normal tem isto, é distal
e tão perto do peito, do coração
que tenho no lado direito, na mão...
que já não bate de maneira igual.

Fez-se noite, uma escuridão de pó,
sem estrelas, sem lua em quartos,
sem mesa posta para tomar a ceia...

Nada fica inteiro que não fique só,
tudo é sem. Sem dó, de guerra fartos,
a lua sempre velha, nunca cheia.

4. Parada Ausente

Já fui chamado de camarada,
agora sou apenas um soldado
sem solda, ainda que parado
sem batalhão, vida, nem parada.

Então, deserto, faltei à chamada,
sou cidadão, pai, filho deste fado;
das margens deste rio frio nado,
para qualquer lado daqui se nada.

Fiz a incontinência ao cabo raso
a saudação à saudade da paz.
Fiz silêncio debaixo dum grito.

Cada dia que passo é um atraso
nesta parada que já não se faz.
Um chão falso em que habito.

5. Fraco Capitão

Eu disse ao meu general que não,
não era mais capaz de fazer isso,
que me perdoasse o compromisso,
sou arte de guerra, fraco capitão.

O meu tenente anda com um carão
descontente, o major é omisso.
Os coronéis murchos e sem viço.
Não há quem aprenda esta lição.

Sou objeto repleto, um objetor;
a consciência que tinha, não tenho
e sinto um vazio tão completo.

Tiros aos pratos, tiro-lhes a cor.
Cacos e cacos, do chão apanho.
Aperto o cinto, miro o teto.

6. Mágua

Já fui cruzado, sou um herege,
depende do lado da batalha;
perco sempre que sempre calha
que a morte no campo me elege.

Em cada vida, não me protege
a armadura, a cota de malha...
O kevlar quase só atrapalha
apenas a promessa me rege.

Prometi proteger matar defender...
sobrevida é o que me sobra
na terra, no ar, paraquedas na água.

Já estou certo, apenas, sem querer,
a minha alma nenhum deus cobra.
Sou mágoa.

7. Reduções ao Mínimo Múltiplo Comum

Os voos rasam perto a cidade,
cresce o ódio em cada esquina,
cresce tanto que só se imagina,
os voos voam sem velocidade.

O silêncio entra e tudo invade,
reduz a esperança já pequenina;
não há música, risos de menina,
o ar, o sol, têm ar de grade.

O passo que conheço, é o fantasma,
ou o tambor poluto da explosão
(não tenho memória do meu meio).

Respiro, entre ataques de asma,
sem os meus momentos de inspiração.
Expiro este ar que tanto odeio.

8. recruta

Já matei mais um, vi-o a cair,
a bala bateu secamente, dura,
durante a queda sem estrutura,
morte violeta, já sem porvir.

Esse monstro que mostro, sem me rir,
tombou, coisa fraca, não se procura,
acabou na terra, esterco, agrura,
orgulho que me calha, flor a abrir.

Ninguém me avisou na recruta
do perfume a pólvora, a grito,
do quanto ele inebria, vicia.

Esta dependência pura, bruta,
hábito perverso que habito,
O meu pão nosso de cada dia.

9. bivaque

Pediram-me a auréola do santo,
mas sou todo feito de vil pecado.
A santidade mora mesmo ao lado,
mais do que risos, conheço o pranto.

Estacionado de pelotão ao canto,
espero pelo tão infinito brado.
A luta, sem metáfora, é o fado
e de terra desfeita é o meu canto.

Se o ataque é a melhor defesa,
nunca sei muito bem o que defendo.
Será a defesa, o melhor ataque?

Baioneta erecta, sempre tesa,
sangue a escorrer, negro, ardendo.
Não tenho auréola, só bivaque.

10. Traumas da carabina

no meio do mato o início
carabina rente ao corpo a tremer
e sob o céu de balas sobremorrer
assim me dou ao sacrifício

no fim da linha um precipício
que ainda não acabei de fazer
tremo na terra que me há de comer,
um tremor de ódio, de hospício

pesadelei pesadelos modernos,
armadilhados, sonhos, nem vê-los
esperam-me traumas da carabina

rezo para que não sejam eternos
que só pesadelo tais pesadelos
e contados, ninguém os imagina

Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não
 
Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte cinco

a paixão do silêncio

 
Como dizer, por parcas palavras, o silêncio?
Mudos,
os sons perdem-se no palácio do Sono.
Escassa forma de vida.
Espaço de túmulo,
intervalo de lápide.

Caverna fechada, reverbada a brilhos
sós,
esquecida pelo vento.
Quedo, o semblante,
povoado de medo e repouso
e lagos estagnados,
falho em esgares e sorrisos.
No langor, horizontes nocturnos,
horizontais leitos,
direitos.
As sombras,
fantasmas parados, caprichos
dalguma estrela longe.

A eternidade mora perto, infinita,
amaldiçoada
a desconhecer
o momento
e a sua cara-metade,
o grito.

Segundo contributo para o sarau "o grito da poesia".
Inspirado, de certo modo, na personificação do Sono, magnífica, das "metamorfoses" de Ovídio, do verso 591 ao verso 632 da edição bolso cotovia.
 
a paixão do silêncio

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.