Crónicas : 

Fugas

 
Emudecido e vidrado na janela da montra, toda ela ornada a chocolate, frutos secos e guloseimas, com cristais a fugirem ao olhar, embevecido estava o petiz de cara pintada de graxa, calças rasgadas por remendar e, para o tira-teimas, três berlindes no bolso, também ele já roto. Quem não se satisfazia, por lhe afastar a nata da freguesia, era o pasteleiro, gordo e foleiro, de verruga no nariz que se sobrepunha a um farto bigode mal aparado. A neve contornava as ramas dos abetos e o frio, cortante, cobria de gelo os parapeitos das janelas, era um Inverno rigoroso como não se conhecia nas redondezas, o branco disfarçava-se nos tons azuis das faces dos transeuntes, mais visível no olhar triste do miúdo da montra da chocolataria. Os passos apressados de Dezembro e o gosto colectivo e social pelo esquecimento e pela indiferença começavam a transformar, aos poucos, aquela criança num boneco de neve com lágrimas congeladas e desejos por alimentar. O ranger dos dentes competia com os assobios do vento que lhe afagava o cabelo nu, e as gabardinas dos alegres transeuntes que divagavam por ali, faziam-lhe ainda mais frio quando os olhava envergonhado de soslaio sem esquecer que a vergonha deveria pertencer a esses tais alegres transeuntes. Do outro lado da rua sobrevivia, numa caixa de cartão, um velho de ar septuagenário enganado pela vida na sua juventude, a própria vida tinha-lhe negado a morte por inúmeras vezes, era notório.
Ele olhava fixamente para o miúdo e começava a arrastar-se lentamente por entre a multidão que, atarefada com as últimas compras de Natal, o ia empurrando e pisando cegamente, era uma travessia dolorosa que empreendera e que procurava levar a bom termo. As buzinas dos luxuosos carros inundavam o ambiente decrépito e impessoal da cidade, os fumos poluidores davam-lhe um aspecto cinzento e mórbido enquanto a noite caía leve, as pessoas insistiam em não se conhecer e recusavam a vida em sociedade, como humanamente seria espectável. O miúdo continuava por ali, livre dos dramas de cada um, despreocupado com o que se passava em seu redor, com a crise disfarçada em sorrisos cínicos dos agiotas que prostituíam o seu próprio dinheiro, fazendo-o circular entre si, de luva em luva. O mundo estava à beira do abismo e a sociedade procurava sempre dar passos em frente numa tradição suicida. O Sol por vezes espreitava por entre os fumos e chorava raios de luz que, por entre a multidão desenfreada, procuravam atingir o septuagenário, para o guiar na sua demanda, e o pequeno boneco de neve que ali nascia, para que, pelo menos, derretesse um pouco. Mas o Inverno insistia em não perdoar e, rigoroso como se mostrava, forçava até os grossos casacos de peles de animais raros, alguns já extintos. O mesmo Inverno que tinha tomado para si os corpos das tropas de Bonaparte e, mais tarde, de Hitler, arrastava-se pelas ruas para reclamar os menos afortunados, aqueles que outros quiseram esquecer quando deixaram de ter uso para eles, os Homens descartáveis. Os ricos saciavam sentidos com os pobres sorrisos anunciados nas parangonas dos pasquins que flutuavam na rua, ao vento. Os pobres semearam a riqueza das poucas alegrias que lhes faziam lembrar a vida parca que os consumia. Entranhou-se na memória de alguns o mau hálito dos sorrisos amarelos e distorcidos. Este é o espelho contemporâneo da sociedade que nos consome, fecundada na falta de pragmatismo político dos nossos dirigentes mundiais, esses glutões que se espojam nas necessidades pessoais de cada um de nós. Chegará talvez o dia em que as políticas corruptas e sectaristas se desvaneçam no esquecimento e que nos seja permitido subir ao poder, nós poetas, para que rimemos leis com justiça e bem-estar com sociedade, cansam-me os que teorizam a prática sem que insistam na obrigatoriedade de a desenvolver, aqueles que induzem em erro os jovens abrindo-lhes a cabeça e dogmatizando-os sem piedade. O miúdo continuava ali, pregado ao chão, de olhos fixos na montra a imaginar como seria estar dentro daquela loja de chocolates, quentinho... sem neve. À medida que os dias correm, vêem-se cada vez mais luzes apagadas à noite, as casas da cidade definham num silêncio vazio e ouvem-se constantes disparos solitários que fazem coro com as lágrimas dos novos órfãos. As moradias definitivas que se amontoam nas imediações citadinas aumentam a olhos vistos, quando os mais ricos são agora os coveiros que colhem os frutos da sua simpática isenção de horários, fazendo com que a expressão «sete palmos debaixo de terra» se multiplique nos palmos para que caibam mais caixões e corpos queimados de cal nesses cemitérios semeados de tábuas uniformes onde se inscrevem os nomes dos idos. Este é o resultado previsível das recessões económicas que alimentam os alegres transeuntes, aqueles que ainda pisam cegamente o velho septuagenário que atravessa a rua barulhenta e apinhada, mostra-se a fraqueza dos fracos e a riqueza dos ricos em dissonância com o Sol que teima em aparecer, mas apenas para alguns. Também a vida definha. A tristeza esboça-se nos muros brancos de cal, numa terra que era outrora abastada em espigas que doiravam os campos e adornavam as festas de aldeia impregnadas com odores de carnes apimentadas e que, com pouco pão, se empanturravam de vinho e alegria fumada em cigarros de enrolar. Hoje em tudo ecoam religiões de magnatas que usam e abusam das fés conquistadas por lei de fogueira, nos tempos de inquisições que teimosamente perduram. Os homens comuns, se é que ainda os há, debatem-se em difusas ideias sobre o que é certo ou errado, sobram os que ainda se acham, de forma egoísta, políticos capazes de colocar uma nova ordem na moral dos bons costumes que se dissiparam com o perfume da fome e das carências sociais. As cavernas já são casas outra vez, os dinossauros somos nós, que ao caminharmos para um mundo de irracionalidade nos tornamos numa raça lúgubre e tinhosa que se suicida aos poucos. Visto que tenho a obrigação de me identificar com esta vertente da raça humana, entretenho-me a escrever cartas de desdenho pela civilização teórica a que pertenço, que me ignora a presença por saberem que estas palavras são o seu espelho. Sou um fantasma que procura esconder-se da procura incessante de motivos para matar e da fome canibalesca que ressaca nos olhos de cada um. Afundaram-me a vida na conversa enlameada de que me salvariam se me juntasse a eles... nunca! Jamais! As crianças, que já são poucas, pois a infância não dura mais que meia dúzia de anos, soletram os mesmos sonhos que tive quando rocei as suas idades. Também eu não tive tempo de ser criança, sou-o agora nesses seus sonhos. Vergo-me perante a ignorância pueril, perante o gozo de quem não sabe o que é ser adulto e errar. Vejo os polícias de giro, outrora exemplos de autoridade, a bater de porta em porta, desfraldados com as insígnias a cair, a mendigar um pouco de pão, qual pedintes de olhos fundos que dormem debaixo de cartões nas escadarias da capital. Os banqueiros, pais da crise constante, contam as páginas dos jornais e discutem as palavras cruzadas nos intervalos de um jogo de «bisca», patéticos andarilhos que já negociaram a cor do nosso dinheiro. A Europa torna-se um condado americano ou americanizado sob o jugo dos portentos morais da Ásia empobrecida pela sede da guerra e pelo extremismo das religiões desenvolvidas a extorquir mentalidades pobres e iletradas. A tendência cada vez mais estúpida de que a guerra é a solução para todos os conflitos ideológicos dos estadistas do nosso tempo, ou anteriores a nós, leva a que se trate o momento actual para que se exterminem povos inocentes e culturas em prol de um bem não comum, um bem-estar ariano e xenófobo. A neve parou, mas o miúdo ali continuava, parado a olhar a montra da loja de chocolates. Agora já tem uma pequena multidão a olhar para ele com ar reprovador, todos acham que a sua presença em frente da montra traz um efeito estético nocivo às suas vidas quotidianas e ralham-lhe, sempre sem lhe tocarem... provavelmente por temer uma qualquer contaminação. Apenas o velho, que ainda vem longe, teme pela dignidade daqueles encasacados sem um pingo de honra. Roubado o mundo aos homens, nada mais resta senão o último terço do seu sonho, a velhice merecida e descansada. Reinventa-se a verdade por entre erros caóticos que dizimaram consciências e modos de vida - modus vivendi, chamam-lhe alguns. Saudade de não olhar para trás para reescrever a história ou pelo menos parte dela. Este é o problema maior de conhecer o conteúdo dos vários dilemas da vida e optar por não lhes dar soluções ou, ao menos, aventar hipóteses que os possam resolver, minimizar. Aqui renasce a vontade de pensar, o prazer de viver os desafios.
A larga rua assemelha-se a um oceano de mares revoltos, mas aquele corajoso septuagenário, no seu arrastar trôpego vencia-o como se de um velho lobo-do-mar se tratasse, o miúdo olhava-o como se percebesse as suas intenções e sonhava que poderia ser salvo daquela selva de gelo e ignorância. O olhar agressivo do pasteleiro minava-lhe o corpo com medo, mas havia algo que lhe trazia esperança, os escassos metros a que se encontrava aquele velho vindo do nada, que do outro lado da rua se enrolava em cartões e pedaços velhos de jornal. A certo momento o corpo enregelado e hirto do miúdo deixou-se, aos poucos, derreter debaixo de uma manta de retalhos. O velho, em esforço, levantou-se e transportou o petiz para o outro lado da rua, para o aconchego do seu lar deixando os transeuntes respirar de alívio... esse miúdo sou eu, nasci – penso - em 1900 na cidade de Tsaritsyn (Цари́цын), cidade centenária do Império Russo desde 1598. O velho morreu de frio na noite seguinte, nunca soube seu nome, mas recordarei sempre o seu sorriso triste.
Vi o mundo a transformar-se inúmeras vezes e em cada uma delas vi sempre aquele olhar do velho a quem chamo de “Pai”, talvez tenha sido quem mais se aproximou desse parentesco, mesmo que tenha sido apenas por uma noite. Fugi sempre aos conflitos que teimaram em assolar o resto do mundo, preferi sempre as fragrâncias doces e amenas dos campos que se pintavam de mil cores a partir de Abril. Em Janeiro de 1917 fugi do Oblast de Tsaritsyn, pensava que, tarde ou cedo, o meu mundo iria rebentar, que nada sobraria depois da guerra infame que existia a ocidente, fugi ao alistamento forçado. As minhas batalhas foram sendo travadas pelo mundo fora, mas nunca com armas. O destino trouxe-me o prazer de viajar e de escrever, descrever o Mundo através dos meus olhos e assim aprender o muito que sei, fez-me sentir Rei, dono de um chão sem dono, enfermo e órfão. Sim, essa seria a palavra certa, o Mundo era ainda mais órfão que eu – ainda tive o meu “Pai”.
Tudo mudava a cada olhar, eram rápidos os movimentos das pessoas e dos tempos, fosse em que lugar fosse, assim como rápida se tornava a forma como estas adulteravam o seu pensamento. A vida tornara-se efémera e em curtos espaços de tempo, para homens e mulheres, a morte tornar-se-ia uma opção… de vida: nascia mais uma guerra. Aprendi com os meus passos a compreender a transformação, a entender o significada do título de Lev Nikoláievich Tolstói, “Война и мир” (“Guerra e Paz”), onde os poucos momentos de paz se revezavam com os muitos anos de guerra. A uma guerra sucedia-se outra.
Na minha amada Rússia, de onde saí, em Dezembro de 1917, a intensidade dos confrontos levou a que o caos durasse até 1922, cinco anos de miséria, somados a outros três da primeira estupidez mundial na Europa iniciada em 1914, nesse dia o vento salivava miseráveis gotas de chuva por entre o bailar inconstante das copas das árvores, ainda vingava o Outono. Deixei para trás um povo dilacerado, amputado física e emocionalmente com a tragédia da fome a atingi-lo em 1921. Malditos governantes, malditos ideólogos, maldito sangue. Por onde quer que passasse a cor cinza do céu roubava-me o horizonte, confundindo-se com o cinzento humedecido da terra coberta de corpos calcinados pelo ódio. Um olhar que se queria cego.
Em desgosto e em silêncio parti para longe da ruína europeia, era difícil decidir que rumo tomaria, toda a Europa estava em constante ebulição, fervilhavam os ânimos e aumentava o receio de uma nova guerra. De várias guerras.
O meu destino tornou-se África. Um passo no desconhecido, onde os Homens mandavam nos Homens de forma pouco humana, de acordo com o que me tinha dito um pároco que me acolheu em Espanha Treveléz numa conversa que tivemos certo dia. O padre Alfonso era singular, embora a religião nunca tivesse significado nada para mim. Alfonso quase me tornava um crente… creio ter conseguido evitar isso a tempo, não consigo ver-me agarrado a textos religiosos ou a ir à missa a cada Domingo, não encaixava nesse perfil. Dou-me melhor com coisas reais e palpáveis, coisas que me permitam sentir a emoção de estar vivo, gente a quem possa contar as minhas histórias, de quem possa aprender outras vidas.


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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